Debora Diniz* via Correio Braziliense, no Cebes
Nascituro é um não nascido. A palavra parece ser um nó filosófico — como alguém pode reclamar ser uma negação existencial? Essa é a confusão ética em curso no Congresso Nacional com a proposta do Estatuto do Nascituro. Se aprovada, haverá mudança constitucional — o nascituro, hoje termo reservado aos dicionários e aos códigos jurídicos do século passado, será figura permanente entre nós. Os que defendem e os que se espantam com o Estatuto do Nascituro estão de acordo em um ponto: a discussão não se resume à controvérsia sobre como nominar células humanas fecundadas. É mais do que isso. A disputa é sobre dar ou não o estatuto de pessoa a células humanas.
Os defensores do Estatuto do Nascituro sustentam ser já pessoa humana um punhado de células recém-fecundadas. Por isso, insistem em descrevê-las como um “ser humano”. Importa saber se humano é descritor das células ou qualificador para direitos e obrigações. Como descritor, não há disputa: células produzidas por órgãos humanos são células humanas. Mas nem por isso um óvulo seria descrito como um “ser humano”. Mas, para os que entendem o nascituro como pessoa, as células recém-fecundadas são mais do que produtos do corpo humano: seriam personalidades jurídicas com direito a reclamar direitos e proteções ao Estado.
Nos meus termos e no de grande parte dos cientistas sérios, o nascituro é um conjunto de células com potencialidade de desenvolver um ser humano, se houver o nascimento com vida. Mas estamos falando de células humanas e de potencialidades. E é sobre as potencialidades que o Estatuto propõe direitos e obrigações absolutas ao Estado brasileiro. Algumas delas são superiores aos direitos das mulheres — uma menina que tenha sido violentada sexualmente por um estranho será obrigada pelo Estado a manter-se grávida, mesmo que com riscos irreparáveis à saúde física e psíquica. Os direitos e as proteções devidos à infância pelo Estatuto da Criança e do Adolescente serão esquecidos pela prioridade do nascituro à ordem social. Se um acaso impuser um risco grave à saúde com a gestação, a menina deverá morrer para fazer viver um nascituro fruto da violência.
O nascituro demandará ainda mais obrigações do Estado brasileiro. Uma delas tocará nos cofres e representará conquista que nenhum outro grupo vulnerável de carne e osso já conquistou no Brasil: nascituro que tenha sido gerado por estupro terá direito a políticas sociais prioritárias, entre elas serviços de saúde e de assistência social. Trata-se de focalização das políticas sociais como nunca antes desenhada pelas reformas da seguridade social — o nascituro terá “prioridade absoluta”, propõe o Estatuto. Em meio à riqueza criativa do documento para instituir benefícios, está a bolsa-estupro — nascituro que venha a nascer com vida terá direito a bolsa de assistência social de um salário mínimo até os 18 anos. A menina violentada, caso tenha sobrevivido ao parto, nem sequer é mencionada pelo Estatuto.
Há vários equívocos na proposta do Estatuto do Nascituro. A primeira delas é esquecer os vivos em detrimento de fantasias filosóficas. O nascituro é criação religiosa para dar personalidade jurídica às convicções morais de homens que acreditam controlar a reprodução das mulheres pela lei penal. São as mulheres — mães, esposas, irmãs e filhas — desses mesmos deputados religiosos ou não as que abortam e buscam assistência médica nos hospitais públicos e privados. Elas são mulheres comuns que temem a lei penal, mas sentem o pânico de um estupro como mais forte que a ameaça do inferno. O Estatuto do Nascituro é mais um ato de terror, só que agora do Estado contra elas. Além de ter sido vítima do violentador, a menina se descreverá como mulher violentada pelo Estado, que reconhece os direitos de um espectro de pessoa como superiores à própria existência.
*DEBORA DINIZ – Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
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Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.