Muito além da madeira
Comunidades ribeirinhas do Pará diversificam produtos e reduzem pressão na floresta
NO QUINTAL de sua casa, na comunidade de Jaburu, no Pará, Manoel Cordosvaldo de Souza, o Codó, mexe a massa de andiroba no fogareiro. Tomando o lugar das mulheres da casa, que tradicionalmente extraem o óleo da semente, ele garante parte do sustento do lar, que ainda é complementado por óleo de pracaxi e pela comercialização da menina dos olhos da região, o açaí. Foi assim que a família dele abandonou a extração de madeira. E é exatamente essa estratégia silenciosa que tem sido o principal instrumento de combate ao desmatamento na região. Se não há alternativa de renda, as famílias se voltam para a madeira. Mas, se há, elas, que vivem sob as árvores da floresta, não têm por que retirá-las.
– É misturar vários produtos. Esse é o jeito. Tira um pouco de cá, outro de lá, e não precisa tirar madeira. Hoje em dia a comunidade só derruba as árvores quando é uma emergência, quando o dinheiro falta – disse Codó.
A realidade é parecida na comunidade vizinha, a Ilha das Cinzas, no mesmo município, de Gurupá. Em 2011, os moradores foram ganhadores do Prêmio Finep de Tecnologia Social, por conta do Manejo Comunitário de Camarão de Água Doce. Se até a década de 1990 a madeira ainda era a renda principal no local, hoje são o açaí e o camarão que garantem prato cheio e o pagamento das contas.
A Ilha das Cinzas ganhou reconhecimento de assentamento agroextrativista e, com título de propriedade na mão, a comunidade conseguiu apoio para desenvolver projetos. As mudanças foram simples, mas a renda familiar locai dobrou, e a preservação da floresta cresceu, como explicou um dos mais antigos moradores, Antônio Braz de Oliveira, o Baixinho:
– Eu tirei foi muita madeira dessa floresta. A família inteira trabalhava cortando muita madeira, para ganhar apenas alguns trocados. As madeireiras sempre exploravam e ficavam com o lucro. No fim das contas, as árvores sumiam e elas iam embora. Mas nós moramos aqui e éramos os mais afetados.
Os esforços para fazer uma pesca mais sustentável começaram quando comunidades vizinhas passaram aperto pela escassez de camarão.
E, hoje, além do camarão, a comunidade faz também manejo de açaí – 70% da renda dos moradores. Em vez de cortar árvores ou tirar o palmito, a opção pelo açaí se mostrou mais rentável, além de garantir a sobrevivência da floresta de que eles tanto precisam.
É essa saída que o líder indígena Almir Suruí busca para terras indígenas. Ameaçado de morte e integrante da lista vermelha de ambientalistas em risco da Secretaria de Direitos Humanos por conta da luta contra madeireiras, ele afirma que a melhor forma de combater crimes ambientais e o aliciamento de ribeirinhos e índios é a geração de renda por outras fontes:
– Não estou dizendo que os índios que são aliciados e tiram madeira de área de proteção não são culpados. Eles, como os ribeirinhos, são culpados também.
Sabem que estão fazendo algo errado. Mas é preciso dar uma alternativa de renda para que as pessoas possam sobreviver, dar de comer a seus filhos. A floresta não precisa ser intocada, ela pode ser explorada de forma sustentável, com as árvores de pé – disse Suruí.
Hoje, ele briga com pelo menos 100 serrarias nas cidades de Cacoal, Pacarana, Espigão e Rondolândia, todas no Mato Grosso, próximas à aldeia indígena. Os suruís desenvolvem vários projetos e buscam até créditos de carbono pelo mecanismo de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD). Mas ainda falta incentivo do governo, empresas e fundações.
Terra arrasada
Documentação falsa, abates clandestinos e fiscalização ineficaz fazem parte do rol do comércio de madeira no país. Mais da metade das toras retiradas da Amazônia é de origem ilegal.
Mercado da terra arrasado
Mais da metade da madeira retirada da Floresta Amazônica tem origem ilegal. Falta de transparência nos licenciamentos e fálhas na fiscalização fortalecem a venda irregular
Camila Nobrega
E difícil precisar os números da destruição das florestas tropicais mundo afora. A vastidão do problema envolve desde a Amazônia Legal — que engloba nove estados — até países da África Central e do Sudeste Asiático. Documentação falsificada, abates clandestinos em zonas não licenciadas e fiscalização ineficaz por parte das autoridades fazem parte do rol de motivos que sustentam o mercado negro de madeira globalmente. Com a ajuda da Interpol, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) mapeou o comércio ilegal de madeira e chegou a conclusão que, no Brasil, mais da metade da madeira retirada da Floresta Amazônica é ilegal — o índice varia de 40% a 60%. Já no exterior, esse percentual é bem mais baixo, oscilando entre 15% e 30% do comércio global.
— O percentual de madeira sem documentação caiu cerca de 70% no Brasil, se compararmos com uma década atrás. O dado é resultado de um esforço da Polícia Federal. O problema, porém, é que a falsificação dos documentos de autorização para desmatamento cresceu. O mercado negro está aumentando e dificultando a verificação da origem da madeira — disse o analista sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Christian Nellemann, lançando mão dos dados do Pnuma.
Estados como o Pará têm conseguido reduzir o desmatamento ilegal. O Pará, apesar de ser o maior desmatador da Amazônia Legal, teve os melhores resultados. A redução é fruto da ação repressiva do Ministério Público Federal do Pará. Em conseqüência, a área desmatada diminuiu: 4.281 quilômetros quadrados em 2009, 3.770 quilômetros quadrados em 2010 e 3.008 quilômetros quadrados em 2011. Em outros estados, como o Mato Grosso, a situação não melhorou. Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), 47% da madeira retirada, entre agosto de 2010 e julho de 2011, eram ilegais.
O levantamento do Imazon se baseia em imagens de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Nesse caso, o objetivo foi verificar não apenas a madeira que circula no estado sem o Documento de Origem Florestal (DOF), mas também registrar casos de documentação falsificada. O autor do estudo, André Monteiro, fez uma comparação dos registros de desmatamento captados pelos satélites com dados obtidos a partir de uma parceria com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) do Mato Grosso.
Ele comparou as autorizações para desmatamento em cada área registrada pela secretaria com os clarões abertos na floresta. Os resultados confirmam a hipótese de que a quantidade de madeira sem documento caiu, em parte porque créditos de desmatamento estão sendo negociados no mercado negro. Na prática, a secretaria autoriza a retirada de um total de madeira numa propriedade. O dono do local, por sua vez, vende estes créditos para outra pessoa ou empresa, que retira madeira de um local não autorizado e o identifica como originário da primeira propriedade. Assim se dá o processo de “esquentar” a madeira.
— Identificamos várias áreas que haviam obtido autorização para o manejo de madeira, mas continuavam intactas. Provavelmente, alguns desses proprietários pediram licença para desmaiar apenas para vender seus créditos. Assim, muitas árvores são retiradas de áreas privadas sem autorização, de terras indígenas e de áreas de conservação e ainda saem da Amazônia como se fossem de origem legal — explicou Monteiro.
Ainda de acordo com o estudo do pesquisador, a área total desmatada sem anuência do órgão licenciador no Mato Grosso foi de 65.454 hectares. A exploração de madeira ilegal no estado em 2009 era de 39% do comércio total, em 2010 passou para 44%, e em 2011 chegou a esse patamar de 47%, um alerta para a falsificação de documentos na área.
O problema não só faz parte da rotina de cidades amazônicas, como é reconhecido pelo Ibama, órgão fiscalizador federal. Em 2011, o Ibama apreendeu 55 mil metros cúbicos de madeira em tora — sem nenhum tipo de be-neficiamento — e 28,6 mil metros cúbicos de madeira cerrada. Em média, o órgão registra 25 mil autos de infração. Os dados parecem altos, mas é muito pouco para os cinco milhões de quilômetros quadrados de Amazônia Legal.
Desde a aprovação da lei complementar 140, no final de 2011, o órgão perdeu poder, que foi repassado aos estados. Hoje, as secretarias ambientais de cada estado são as principais responsáveis tanto pelo licenciamento, como pela fiscalização de áreas desmatadas. Mas, se aumentou a agilidade para o licenciamento da retirada da cobertura florestal, faltam atividades de fiscalização.
Segundo o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Luciano Evaristo, a fiscalização estadual hoje é quase inócua, e falta transparência em relação a dados mais específicos de licenciamento por área, o que dificulta a programação de atividades pelo órgão federal. Evaristo afirmou que, embora seja obrigatório por lei, os estados não enviam dados detalhados ao Ibama: — Os estados sonegam informações sobre desmatamento no país. Eles têm que cumprir a lei e divulgar não só para o Ibama, mas para a sociedade em geral os dados sobre quantos planos de manejo foram autorizados, em quantos hectares e qual quantidade de madeira em metros cúbicos foram autorizadas para retirada. Não adianta divulgar parte dos dados, e é preciso também facilitar, com um mapa apontando as licenças por cada propriedade. Eles não repassam essas informações trabalhadas, não são abertas nos sites de cada secretaria. Isso precisa mudar.
Evaristo atribui a principal responsabilidade pela falta de informações à ausência do Ibama. Ele explica que a fiscalização feita pelo órgão atualmente se baseia apenas em dados do satélite do Inpe e ressalta que as ações para coibir a retirada de madeira ilegal organizadas pelos estados não acompanham mais a velocidade de licenciamentos de planos de manejo: — Ao aprovar um plano de manejo, o estado aprova todos os créditos daquele local. Se falta fiscalização, é um combustível para o mercado negro de créditos fictícios.
Segundo dados do Ibama, o comércio de madeira ilegal é mais forte nos estados do Mato Grosso, Pará, Rondônia e, nos últimos anos, vem chegando ao Amazonas, onde ainda há grandes áreas de floresta nativa de pé, Nenhum dos quatro estados possui em seus sites oficiais as informações sobre licenciamento para retirada de árvores correlacionadas com as áreas exatas onde os planos de manejo foram aprovados.
As quatro secretarias de Ambiente foram procuradas e questionadas sobre listas que apontassem os números totais de planos de manejo aprovados entre julho de 2011 e agosto de 2012, a quantidade de madeira em metros cúbicos e em hectares. Apenas o órgão do Pará respondeu à solicitação, apontando que houve 166 autorizações de exploração florestal; com aplicação de plano de manejo em 117.611 hectares. No total, 2,9 milhões de toras de madeira nativa foram retiradas, o equivalente a 3,27 milhões de metros cúbicos de floresta.
O Pará não disponibiliza, porém, um mapa com a localização das propriedades. Apenas 36 fiscais atuam no estado, que confirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a parceria para o repasse de informações ao Ibama ainda é falho. No site da secretaria do Mato Grosso, há a informação de que houve 234 autorizações de exploração florestal em 2011, e 29 autorizações de desmate. Mas não há dados sobre o total de áreas desmatadas, nem a quantidade de metros cúbicos de madeira retirados. Em todos os casos, para ter informações detalhadas de cada plano de manejo aprovado, é necessário ter dados como a razão social da propriedade ou o número do processo. Os dados não são públicos.
Falta de incentivo dificulta legalização
Em um igarapé da Ilha das Cinzas, comunidade ribeirinha do Norte do Pará, pilhas de madeira aguardam a chegada do atravessa-dor, que vai carregá-las para postos de distribuição em Macapá, capital mais próxima. O endereço é de uma serraria familiar, onde trabalham cinco pessoas, entre elas Francisco, que não quis ter seu sobrenome divulgado.
Como na maioria das serrarias espalhadas pelos rios da região, o preço cai muito por causa da figura do atravessador, e seria muito maior se a própria família levasse as árvores cortadas num barco até a capital, para ser vendida às madeireiras locais. Mas, como se trata de retirada ilegal de madeira, não vale o risco. Por esforço de Francisco, a família tentou legalizar a produção entre os anos de 2009 e 2010 e chegou a ter um plano de manejo aprovado para extrair a madeira, mas não conseguiu arcar com os custos do projeto de comercialização de madeira legal.
Por isso, eles hoje continuam fazendo parte de uma estatística exposta por um estudo ainda inédito de um pesquisador da Universidade americana de Columbia, em parceria com a Embrapa e a Universidade Federal do Amapá: 95% das serrarias pequenas e médias do estado comercializam madeira sem Documento de Origem Florestal (DOF).
— Nós fazemos um trabalho braçal e artesanal, tiramos madeira sem uso de máquinas. Fazemos a “derruba” selecionando árvores mais velhas e com o maior cuidado para não causar impacto nas outras árvores. Temos nosso plano de manejo. Mas, na hora de legalizar, temos as mesmas exigências de serrarias grandes, então não temos como arcar com os custos. A fiscalização, por outro lado, é bem pequena, e um órgão fica jogando a responsabilidade para outro. Assim, a madeira legal não vale a pena — contou Francisco.
A pesquisa sobre o comércio de madeira na região foi realizada pelo pesquisador argentino Nicolas Zaharya, mestrando do curso de Desenvolvimento Sustentável na Universidade de Columbia. Ele ficou no local por três meses e entrevistou 79 pessoas, entre donos de pequenas e médias serrarias, gerentes e funcionários. Zaharya foi orientado pelo engenheiro florestal da Embrapa Amapá Marcelino Guedes, que o acompanhou nos postos de comercialização do produto nas cidades de Macapá e Santana, as duas principais do estado.
A pesquisa apontou que o comércio ilegal movimenta R$ 17 milhões por ano na região e que há atualmente escassez de madeira legalizada. Além da falta de incentivo dos órgãos estaduais e do governo federal para a legalização das serrarias de cunho familiar, a falta de competitividade no mercado também é um entrave, já que o preço da madeira legal é cerca de 60% maior:
— Há um pacote legalização. É preciso contratar engenheiros florestais para fazer planos de manejo, inventário, assinar a carteira dos funcionários. Nem sempre os pequenos conseguem fazer isso, muitas vezes o trabalho é feito em família. O resultado é que falta madeira legal. A própria Embrapa teve uma obra parada este ano, pois não conseguiamos achar um vendedor legal. É preciso dar incentivos e aumentar a fiscalização, se não a situação ficará como está.
A madeira sem registro de origem além de barata é lucrativa para madeireiras. A cada R$ 100 gastos no comércio, as madeireiras recebem R$ 29 de lucro. Enquanto isso, as serrarias pequenas, instaladas no meio da Amazônia, acabam sendo exploradas, e recebem apenas R$ 3 de lucro.
Segundo o coordenador da campanha Amazônia do Greenpeace, Márcio Astrini, a ONG está retomando o assunto, porque o problema vem crescendo no país. Astrini afirmou que o mercado negro de madeira afasta empresários interessados em trabalhar com produtos de origem legal:
— A situação ficou tão grave que a falta do governo está afastando empresários que gostariam trabalhar corretamente. Consumidores na ponta da cadeia precisam entender que madeira ilegal é furto da floresta. É preciso exigir documentos na hora de comprar madeira, sem pressão social nada acontece.
Para qualquer tipo de compra, seja de toneladas de madeira para um grande empreendimento, ou de um móvel, a empresa contratada, ou uma loja, são obrigadas a mostrar o DOF do produto.
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Enviada por Ruben Siqueira.