Editorial de Sul21
A questão indígena é, na verdade, a questão da terra indígena. Os índios só se constituem e se mantêm como índios se eles estão ligados à terra e aos seus frutos. Sem terra, os índios não têm como conservar sua cultura, costumes, crenças e modos de vida. Sem terra, os índios se desgarram de seu grupo e de sua cultura e passam a perambular pelo mundo. Tornam-se, pouco a pouco, garimpeiros, trabalhadores rurais, moradores das periferias das cidades, sobrevivendo de biscates e pequenos serviços, quase sempre explorados e quase sempre desprezados pela “sociedade branca”.
O extermínio das populações indígenas nas Américas e no Brasil é secular. Iniciou-se com os “descobrimentos” e se mantém até os dias atuais. Matou-se e matam-se índios de todas as maneiras possíveis: a tiros, por meio de doenças disseminadas involuntariamente e também de forma consciente e proposital com a introdução de roupas e objetos contaminados por vírus em suas comunidades, mas, sobretudo, por meio do roubo de suas terras. Um índio sem terra não sobrevive como índio; torna-se um outro ser.
Sabedores deste fato e ávidos pela posse das terras indígenas, os “brancos europeus” recém chegados às Américas e ao Brasil no século XVI inventaram todas as artimanhas imagináveis para justificar a matança e o roubo de terras que promoviam. Para diminuir a culpa que pudessem sentir, passaram a afirmar que os indígenas não tinham alma e que, por este motivo, não eram totalmente humanos! Passaram, assim, a matá-los sem remorso e sem medo de serem condenados por Deus.
Mesmo que uma bula papal tenha desfeito esta visão no século XVII, muito se faz, até hoje, pelo extermínio físico e cultural dos indígenas. No século XX, a expansão das fronteiras agrícolas brasileiras inicialmente nas regiões Sudeste e Sul do país e depois nas regiões Centro-Oeste e Norte, intensificou o contato com populações indígenas que se mantinham isoladas ou com contato intermitente com os “brancos” e recrudesceu o processso de apropriação das terras indígenas e a matança destas populações.
Em pleno século XXI, o processo de expansão econômica se acelera no país e, com ele, os conflitos com os índios voltam a se intensificar. Providências têm sido tomadas ao longo dos anos. Primeiro com o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), no início do século XX, e a criação, entre outras medidas, do Parque Nacional do Xingú, em 1961, depois com a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e, na mesma linha, com a criação recente da Reserva Indígena Raposa-Serra do Sol.
Apropriada pelos militares durante o período da ditadura civil-militar de 1964/1984, a FUNAI se transformou, de órgão de proteção indígena, em órgão auxiliar da expansão da fronteira agrícola brasileira. Sua missão, à revelia dos indigenistas, antropólogos e outros militantes daquilo que passou a ser denominado de “a causa indígena”, passou a ser a facilitação da abertura de rodovias, como a Transamazônica, o desmatamento e a transformação das áreas habitadas pelas populações indígenas na Amazônia e no Cerrado em áreas de plantio de arroz, soja e seringa.
As reações das comunidades indígenas e de setores ligados à sua proteção na sociedade “branca”, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a extinta à força, pela ação dos órgãos de segurança da ditadura, Sociedade Brasileira de Indigenismo (SBI), não se fizeram tardar. Ainda que frágeis diante do poder ditatorial, as ações desencadeadas foram enérgicas (algumas até heroicas) e conseguiram barrar iniciativas como o nefasto projeto de “emancipação indígena”, gestado por coronéis e empresários no final dos anos de 1970.
Talvez o ato mais marcante desta resistência tenha sido a carta com denúncias sobre a situação indígena no Brasil, que foi redigida às escondidas por indigenistas e por funcionários da FUNAI e que foi entregue ao Papa em sua primeira visita ao Brasil, em 1980. Todos os que a assinaram foram demitidos dos seus postos e muitos passaram a ser perseguidos pelos órgãos de repressão. Foram atos como este, sem dúvida, que abriram o caminho para a inserção dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988.
Desde o final da ditadura, em virtude da crescente conscientização e mobilização das populações indígenas e da sociedade civil brasileira, o cargo de presidente da FUNAI tem se tornado um dos menos cobiçados da República. A sobrevida dos presidentes e diretores da FUNAI tem sido curtíssima. Eles caem, sistematicamente, ou pela oposição dos índios ou pelas pressões das entidades de apoio à causa indígena. Exceção à regra tem sido a permanência da atual diretoria da FUNAI.
Márcio Meira e sua equipe se mantêm na direção da FUNAI há cinco anos, igualando o recorde do general Ismarth de Araújo, o militar que se manteve mais tempo no cargo durante a ditadura. São apoiados e admirados pelos indígenas. Além de se empenhar em proteger os indíos, suas terras e seus costumes, esforçam-se para criar condições para a autonomização progressiva das comunidades indígenas em todo o país. Durante a atual gestão, a FUNAI foi restruturada, novos servidores foram contratados e treinados e novos serviços foram criados visando, além da proteção dos indígenas, a demarcação e a regularização das suas terras e a promoção dos seus direitos.
A antropóloga Maria Auxiliadora de Sá Leão, entrevistada pelo Sul21, em matéria exclusiva e que será publicada na 2a. feira (23), é a Diretora de Proteção Territorial da FUNAI. Passam por suas mãos todas as decisões, demandas e querelas envolvendo as terras indígenas. Ninguém mais autorizado do que ela para afirmar que a aprovação da PEC 215 será um duro golpe à regularização e proteção das terras indígenas e, portanto, à sobrevivência destas populações e de suas culturas. Como se fez nos anos de 1970 e 1980, é momento de a sociedade civil se mobilizar.
Como se fez contra o projeto de “emancipação” dos índios e como se fez a favor da demarcação e regularização das terras indígenas durante o processo constituinte, é momento de se fazer um grande movimento nacional pela não aprovação da PEC 215. Uma Proposta de Emenda à Constituição que tem o propósito claro de dificultar a regularização dos territórios indígenas, para o gáudio dos que querem, a todo custo, se apropriar de suas terras. Se no século XVI matavam-se índios sem remorsos, sob a pretensa omissão de deus, em pleno século XXI, os que se empenham pela aprovação da PEC215 pretendem poder matar índios sob o beneplácito da lei e da Constituição. É preciso barrá-los.
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http://sul21.com.br/jornal/2012/04/terras-indigenas-x-pec-215/