Organizados para manter a sua autonomia na TI Raposa-Serra-do-Sol (RR), os Ingarikó, se reunem em assembleia para debater cidadania indígena e políticas públicas, como a implantação do Parque Nacional Monte Roraima.
Falada a maior parte do tempo na língua Ingarikó, com tradução subseqüente, a XII Assembleia organizada pelo Conselho do Povo Ingarikó (Coping) com o tema “Politicas Públicas e Cidadania Indígena”, teve início com uma recepção dos convidados e celebração do aleluia, religião praticada pelas nove comunidades (Serra do Sol, Kumaipa, Pipi, Manalai, Sauparu, Awendei, Área Única, Mapaé e Paraná) que compartilham com outros povos a TI Raposa- Serra do Sol, em Roraima.
O encontro aconteceu de 27 a 29 de setembro, na comunidade Serra do Sol, localizada entre serras entrecortadas por pequenas matas e próxima aos encachoeirados rios Anareng e Cotingo, na região que culmina no Monte Roraima, na fronteira entre o Brasil, a Venezuela e a Guiana. Parte desta área passou a fazer parte do Parque Nacional Monte Roraima (Parna) criado em 1989, totalmente incidente sobre a Terra Indígena.
O decreto de homologação da TI Raposa-Serra do Sol, em 2005, reconheceu pela primeira vez a figura da dupla afetação e estabeleceu que a gestão da área seria feita de maneira compartilhada entre o Ibama, a Funai e os Ingarikó, que surgiram no cenário político como os principais articuladores de um plano de gestão para a área de sobreposição do Parque Nacional. Em 2008, foi constituído um grupo de trabalho interministerial, composto também por representantes indígenas do Coping e do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que elaborou de maneira participativa o Plano Pata Eseru, uma proposta abrangente de como deve ser a gestão do Parna. A criação do ICMBio em 2007 e o questionamento sobre a validade da demarcação da TI Raposa-Serra do Sol perante o STF em 2008, deixaram em suspenso a aprovação do Pata Eseru.
Representantes da coordenação do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) de Brasília, de Manaus e a equipe gestora do Parque Nacional (Parna) na presentes à Assembleia informaram que o plano de gestão está ainda em fase de análise dentro do órgão, sob o enfoque da decisão do STF. Em 2009, o STF validou a demarcação da Terra Indígena, mas numa inovação de técnica jurídica, criou algumas salvaguardas, que mal interpretadas podem vir a causar danos aos direitos indígenas. É o caso das que dizem que o usufruto dos índios na área afetada por Unidades de Conservação fica sob a responsabilidade do ICMBio, que responderá pela administração da área com a participação das comunidades indígenas, que deverão ser ouvidas, levando-se em conta seus usos, tradições e costumes.
As salvaguardas do STF
Estas salvaguardas,que não fazem parte do objeto da ação decidida pelo STF e portanto não foram submetidas ao contraditório, atribuem uma responsabilidade maior ao ICMBio em relação aos povos indígenas, pois o órgão deverá decidir como executar a gestão de UCs sobrepostas de forma participativa e que respeite os direitos indígenas garantidos na Constituição. Por outro lado, entretanto, as salvaguardas do STF se inserem em um contexto de avanço nos últimos anos nas políticas públicas indigenistas e ambientais sobre a necessidade de se trabalhar em conjunto com os povos indígenas a promoção da conservação da biodiversidade.
Em 2010, num esforço interinstitucional liderado pelo Ministério do Meio Ambiente com ampla participação indígena, foi elaborada a proposta de Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas.A PNGATI consolida o entendimento das TIs como áreas protegidas e visa valorizar os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas promovendo a etnogestão da biodiversidade. A discussão sobre a PNGATI foi precedida pelo Plano de Ação para a implementação da Política Nacional de Biodiversidade, de 2002, que reconhece a importância dos povos e das Terras Indígenas como parte da política de conservação da biodiversidade brasileira, e do Plano Estratégico Nacional de áreas Protegidas – PNAP, de 2006.
Outro passo importante é a execução do Projeto Gestão Ambiental e Territorial (Gati)um esforço conjunto do movimento indígena, Funai e Ministerio do Meio Ambiente que busca fortalecer as práticas indígenas de manejo, uso sustentável e conservação das suas terras, essenciais para a conservação da diversidade biológica e cultural dos biomas brasileiros. Emnível local é relevante a contribuição do Coping, que no âmbito do Território Indígena da Cidadania TI Raposa Serra do Sol e TI São Marcos, do Ministério do Desenvolvimento Agrario, executou o projeto de elaboração do Plano de Etnodesenvolvimento Territorial Indígena (PTEI), lançado em 2011. O ICMBio, além da legislação, tem estas políticas públicas e subsídios para aprovar o Plano Pata Eseru e definir a administração de UCs no caso de sobreposições.
Autonomia e protagonismo Ingarikó no Monte Roraima
A forma de gestão do Parna é a principal preocupação dos Ingarikó, que querem manter o caminho apontado no Plano Pata Eseru, que criou um modelo de gestão compartilhado, equilibrando as responsabilidades entre o órgão e as comunidades indígenas. Várias lideranças das nove comunidades manifestaram na assembleia descontentamento com a demora em aprovar o plano e a importância de ser mantida a autonomia e protagonismo das comunidades na gestão do Parna e seu entorno.
Os representantes do ICMBio da Diretoria de Unidades de Uso Sustentável na assembleia, Erika Fernandes Pinto e Luis Fernando Guimarães Brutto, não aprofundaram o debate sobre a forma de gestão, explicando que isto está em fase de análise. O Chefe do Parna, José Ponciano Dias, apresentou a proposta de realização de três oficinas regionais para discutir a criação do conselho consultivo do parque.
Dilson Domente, vereador pelo município do Uiramutã e membro fundador do Coping ressaltou a diferença entre conselho consultivo e conselho deliberativo e colocou em discussão o que melhor atenderia os anseios do povo Ingarikó. Erika Fernandes Pinto explicou que os Parnas têm conselho consultivo e não deliberativo. A advogada do ISA Ana Paula Souto Maior mencionou que a figura do Parque Nacional não permite a presença humana e que a dupla afetação altera esta restrição, devendo haver, portanto, uma adequação das normas, inclusive as que regem a elaboração do plano de manejo e a gestão do parque para atender os direitos indígenas e a conservação da área duplamente protegida. Ana Paula lembrou que a dupla afetação requer uma nova forma de administração e o que for acertado em termos de gestão no Parna Monte Roraima orientará outras sobreposições.
Colocada a questão em discussão o ICMBio se comprometeu a institucionalizar a assembleia do povo Ingarikó , como fórum deliberativo , incorporando o planejamento do Plano Pata Eseru ao plano de manejo, em fase de adequação à decisão do STF. O ICMBio manteve o caráter consultivo do conselho, a ser criado após a realização de três reuniões de mobilização nas aldeias Mapaé, Manalai e Serra do Sol, o que foi aprovado pela assembleia.
O novo coordenador da Funai em Roraima , André Vasconcelos participou apenas do primeiro dia e ao ouvir dos Ingarikó que a Funai não executa nenhum projeto na região se comprometeu a reverter a situação até a realização da próxima assembleia anual. Ele disse ainda que em relação ao Parna a Funai segue na mesma linha em relação às obrigações que tem com as comunidades indígenas e espera juntamente com o ICMBio definir o melhor uso da área do parque para trazer melhores condições para os Ingarikó.
Desafio está na execução de políticas públicas
O tema escolhido para avaliar os doze anos de organização dos Ingarikó, permitiu enumerar várias das suas conquistas e continuar a análise dos desafios que persistem na execução de políticas públicas, federais e estaduais, com enormes dificuldades por parte do Estado de garantir acesso aos serviços públicos e o exercício pleno de direitos que implementam a cidadania indígena, igualando-os aos demais cidadãos brasileiros respeitando a sua diversidade cultural.
A situação da educação foi muito debatida pois as escolas estão abandonadas em termos de estrutura e com dificuldades de conciliar o calendário escolar com a realidade das aldeias. Os problemas são inúmeros, como o transporte do material e da merenda escolar, que até pouco tempo era realizado pelos próprios professores, que se cotizavam para levar da cidade até as aldeias. Denunciada, a Secretaria de Educação não autoriza mais os professores a fazer o transporte em carro particular, mas também não o realiza com regularidade, o que prejudica os alunos.
Além disso, a Secretaria não tem flexibilidade para adequar o calendário escolar à realidade de escolas em locais distantes, alcançáveis apenas á pé ou por avião. Assim há incompreensão com a ausência temporária de professores na sala de aula, pois os professores que participam de cursos de especialização durante as férias, em Boa Vista, não reiniciam de imediato suas atividades quando retornam às aldeias, necessitando de tempo para preparar as condições para as aulas.
Não menos grave é a constatação de que prédios de escolas que deveriam ter sido construídas nunca o foram. Assim, na própria Serra do Sol, onde a Secretaria de Educação alega haver uma escola padrão, existe uma em construção, que não é padrão, para substituir a que desabou há pouco tempo.
Além da educação, os Ingarikó enfrentam também problemas de saúde com a ocorrência de casos de beribéri, doença causada por falta de vitamina B1. Com uma dieta baseada em carboidratos composta de damorida, um prato feito de pimentas e de peixes, raros na região das serras, ou de carne de caça, também escassa, e de caxiri, bebida feita da mandioca ou de batatas, os Ingarikó enfrentam casos de desnutrição. O difícil acesso à região, a escassez de caça, peixe e poucas matas para fazer roças, não bastam para explicar as dificuldades agravadas pela quase total ausência do Estado na vida deste povo, que tem como força motriz a sua religião.
Bons Ventos
Se a educação fundamental enfrenta problemas, a educação superior tem chegado aos Ingarikó. Cursos são oferecidos pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) por meio do Instituto Inskiran que tem cursos de interculturalidade e de gestão em terras indígenas. Atualmente seis alunos Ingarikó estão matriculados na UFRR, como explicou o professor Daniel Bampi Rosar, e o Instituto Federal de Roraima realizará no próximo ano cursos técnicos voltados para desenvolver o turismo na região.
Outro ponto mencionado de maneira breve foi a necessidade de acesso à energia elétrica. Das nove comunidades apenas algumas têm motor gerado à diesel, com abastecimento irregular. Entretanto, as organizações indígenas repudiam a construção de uma hidrelétrica no Rio Cotingo, pretendida por políticos do estado, e querem discutir formas alternativas de geração de eletricidade. Ana Paula Souto Maior mencionou que o ISA iniciou, em conjunto com o CIR, um levantamento da viabilidade da energia eólica, solar e híbridas (combinadas) e que o Coping pode se integrar ao projeto. Estas iniciativas podem abrir novas oportunidades para os Ingarikó reverterem em poucos anos a sua atual situação de isolamento e precariedade. O desafio é fazer isso passo-a-passo com eles, prestando atenção nos seus comandos, como se faz dançando o aleluia.
Também participaram da assembelia representantes do Conselho Indígena de Roraima (CIR), do Ministério Público Federal, servidores da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da Secretaria de Educação do Estado.
http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3422