Cana-de-açúcar invade o Cerrado. O caso de Quirinópolis em Goiás

O pequeno município goiano de Quirinópolis, cuja população é de apenas 43 mil pessoas, vem sendo considerado um modelo regional de competitividade para a produção de etanol no Cerrado. Por outro lado, está sujeito a uma condição de vulnerabilidade territorial, isto é, uma série de fragilizações econômicas, sociais e ambientais decorrentes da produção sucroenergética. Esta relação, que soa contraditória, entre a competitividade para gerar um produto valorizado no mercado, como o etanol, e o surgimento de uma série de implicações negativas, resulta da extrema especialização regional produtiva.

Foi o que concluiu o geógrafo João Humberto Camelini em sua dissertação de mestrado intitulada Regiões competitivas do etanol e vulnerabilidade territorial no Brasil: o caso emblemático de Quirinópolis, GO, apresentada ao Instituto de Geociências (IG), orientada pelo professor Ricardo Castillo. A reportagem é de Isabel Gardenal e publicada pelo Jornal da Unicamp, 26 de setembro a 2 de outubro de 2011.

Os motores flex fuel foram o marco que fez renascer o mercado brasileiro para o etanol, impulsionando a recente e acelerada expansão das áreas cultivadas com cana-de-açúcar, que extrapolam o Estado de São Paulo e passam a ocupar outras regiões. O mercado brasileiro está consolidado, atrai multinacionais e o potencial externo vem criando expectativa entre os produtores, já que muitos países têm adotado políticas de substituição parcial de seus combustíveis. Embora a produção norte-americana baseada em milho seja subsidiada, o etanol da cana é mais competitivo.

Da forma com que as políticas públicas vêm sendo elaboradas, adverte Camelini, o Estado acaba se posicionando de forma questionável, orientado mais pelos interesses empresariais do que pelas demandas sociais. A expansão busca aproveitar as oportunidades do mercado, mas para isso coloca grandes porções do território a serviço de um único setor econômico.

O estudo do etanol, a propósito, é apropriado no momento atual, por se tratar de um produto que mobiliza muitas políticas públicas no país. “O senso comum diz que as usinas trazem desenvolvimento, mas não é bem assim”, sinaliza o geógrafo. Segundo ele, em geral a riqueza gerada pela produção de etanol é privadamente apropriada, enquanto os problemas, também gerados por esta atividade econômica, são socializados.

Ele aponta que a ocupação da cana é agressiva, substituindo outras culturas em regiões repletas de pequenos produtores, que acabam arrendando as terras por valores que vão sendo diminuídos a cada renovação contratual. “A cana toma conta de tudo. Arrancam-se árvores e derrubam-se currais. O pequeno produtor já não é mais capaz de achar a sua propriedade sem auxílio de GPS”, realça. Mesmo querendo, não consegue retornar às suas terras por falta de recursos para recuperar o que a cana destruiu e, com o tempo, se instala em definitivo nas cidades, atuando em empregos de baixa remuneração.

Mapa

O pesquisador e seu orientador elaboraram um mapeamento das áreas com restrições ao avanço da cana. Nas regiões serranas, por exemplo, predominam condições clinográficas inadequadas, enquanto no Nordeste há baixa disponibilidade hídrica. A Amazônia e o Pantanal possuem restrições ambientais que impedem a sua ocupação formal, já o Sul apresenta geadas e solos impróprios. Por fim, a região Sudeste está densamente ocupada por usinas, o que vem pressionando pela busca de alternativas. Assim sendo, o Cerrado é hoje o veio preferencial para o deslocamento da cana, de modo que sua ocupação deve ser acompanhada com cautela.

O mapa elaborado por Camelini indica as áreas para onde a expansão caminha, a localização de cada usina e sua ênfase produtiva. A maioria das unidades no Cerrado está voltada à produção de etanol. Também foi elaborado, em escala nacional, um mapa de propensão à vulnerabilidade territorial associada ao etanol, combinando diversos critérios e variáveis.

Notando que a expansão sucroenergética sinalizava para o Cerrado, o pesquisador escolheu Quirinópolis para fazer um estudo de caso. Encontrou uma cidade bem-aparelhada, com shopping centers, hotéis e comércio popular pujante. No entanto, constatou que as principais atividades comerciais e de prestação de serviços estavam voltadas unicamente à produção do etanol, como a revenda de máquinas agrícolas. É uma “cidade do agronegócio”, já que vive em função da produção do etanol. O comércio serve às pessoas que ali trabalham, com hotéis ocupados na quase totalidade por trabalhadores ligados às usinas. “Sem elas, não haveria sentido algum na sua existência”, reflete.

Um elemento que está norteando a expansão é a facilidade de escoamento da produção. Quirinópolis vem pleiteando um terminal de cargas da Ferrovia Norte-Sul e está próxima de São Simão, centro logístico estratégico para a conexão com o Sudeste, de onde parte o etanol para exportação. Também há projetos de alcoodutos ligando as regiões. O acesso a este corredor de exportações está sendo disputado diante da perspectiva de exportar 12 bilhões de litros de etanol a partir de 2012.

Há cerca de seis anos, Quirinópolis recebeu duas usinas – a Boa Vista e a São Francisco, recorda Castillo. Ambas são controladas por matrizes no Estado de São Paulo, reproduzindo seu modelo de ocupação. Com a chegada das usinas, Quirinópolis passou por mudanças: a população inchou, o comércio se tornou um excelente negócio e logo tudo começou a girar em torno da produção de etanol. Já, quando as empreiteiras saíram, o comércio se estabilizou, adaptando-se às necessidades do seu novo público. Trabalhadores rurais passaram, então, a migrar para a região durante a safra, residindo em municípios vizinhos. Esses municípios tornaram-se “cidades-dormitórios” com estrutura deficitária e péssimas condições urbanas, notadamente de habitação, comenta.

Guerra fiscal

Castillo menciona que uma das primeiras medidas deveria ser a coibição da guerra fiscal. Goiás, observa, é um dos Estados que mais busca atrair novas usinas. Através de programas de incentivo como o Produzir, ele oferece condições atrativas para os grupos usineiros, colaborando para a intensificação da atividade no Estado. A isso, soma-se a robusta política de financiamentos comandada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que estimula a construção e reforma de usinas, além de outras facilidades na escala municipal, tornando algumas regiões irresistíveis para o setor, sem necessariamente agregar benefícios às pessoas.

“Nossa proposição seria optar pela federalização do ICMS para impedir que os Estados usassem essa autonomia tributária na guerra para atrair investimentos”, diz. De fato, muitos autores e organizações como o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) já mostraram que a guerra fiscal é sentida na sociedade como um todo e que o único agente a se beneficiar é a empresa.

Ele lembra que a instalação de uma usina leva naturalmente à expansão da cultura canavieira em suas proximidades. Isso ocorre porque essa é uma cultura que deve estar próxima do centro de moagem, já que a cana não pode ser armazenada ou transportada por longas distâncias.

O estabelecimento do regime de monocultura é um dos pontos de vulnerabilidade mais contundentes verificados por Camelini. Com a ‘commoditização’ iminente do etanol, a concentração de terras tende a aumentar e o produtor a ficar subordinado ao mercado internacional. Causa preocupação a capacidade de reação dos pequenos municípios diante das oscilações bruscas de preços, situação já enfrentada no caso da soja.

O trabalho de Camelini, segundo Castillo, combinou critérios que estão sendo avaliados para conceber um mapa do grau de vulnerabilidade de regiões que se especializam numa única cultura, como ocorre com a cana. A sua investigação serve de modelo para criar essa relação entre especialização produtiva, por um lado, e vulnerabilidade, por outro. Sua pesquisa baseia-se numa metodologia criada no IG, batizada como “Identificação do grau de competitividade e de vulnerabilidade das regiões agrícolas do território brasileiro”.

Os trabalhos estão sendo feitos com as culturas da soja, café e cana, em parceria com outras universidades e agências de fomento. “O aspecto saliente neste estudo é que o sul do Estado de Goiás é emblemático, paradigmático, nessa vulnerabilidade e competitividade vinculadas às monoculturas”, informa o orientador. A expectativa é dar continuidade ao desenvolvimento dessa metodologia, elaborada na linha de pesquisa de regionalização e logística de produtos agrícolas do território brasileiro. “Seria uma colaboração ao planejamento territorial e à formulação de políticas públicas mais justas com as populações atingidas pela especialização regional produtiva”.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=47798

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