Michely Aline Jorge Espíndola – PPGAS/UFRN
Resumo: O objetivo da pesquisa de mestrado é estudar a sociabilidade e suas implicações na cidade (Campo Grande-MS) de jovens indígenas da etnia Terena nos seus diversos ângulos de “deslocamentos” – os que mudam para a cidade, os que apenas transitam constantemente entre aldeia-cidade e os que não mudam. Entretanto, o artigo em questão traz discussões teóricas sobre a relação da Antropologia Urbana com a Etnologia Indígena, e sobre pressupostos da pesquisa, já que as experiências de campo ainda estão em fase inicial. Para tanto, torna-se fundamental, primeiramente, construir o conceito de juventude para/com os Terena; em seguida abranger as concepções sobre o urbano, tanto do Terena citadino quanto daquele que mora nas reservas indígenas, além da relação que estabelecem entre si. Baseada na bibliografia consultada até o momento e nas experiências preliminares de campo constata-se que para entender a sociabilidade desses jovens no centro urbano é preciso, antes, compreender as relações que estabelecem com as aldeias de origem, pois o deslocamento aldeia-cidade acontece com objetivos predeterminados e de maneiras diferentes. Assim, este artigo procura explorar, com base nos objetivos apresentados, reflexões iniciais sobre a relação da Antropologia Urbana com a Etnologia Indígena.
Histórico da pesquisa
Há uma observação de Mariza Peirano (1992), comumente citada em diversos textos, inclusive pelo próprio Magnani (1996) – autor bastante utilizado em minha pesquisa –, onde ela afirma que na pesquisa antropológica a biografia do pesquisador, suas opções teóricas em certos momentos, o contexto histórico e circunstanciais, são definitivamente o que guia a pesquisa. Cresci em Campo Grande, cresci com indígenas circulando na cidade, mas somente depois na graduação, com um olhar mais atento com tudo que acontecia ao meu redor, é que surgiu o interesse pela pesquisa desses indígenas citadinos. Uma questão de treino no olhar do meu próprio meio. Entretanto, as dificuldades de se fazer uma pesquisa na cidade, onde passei grande parte da minha vida, e com um objeto visto por mim não como algo “exótico”, e tradicionalmente visto pelo ângulo da Etnologia Indígena começaram a pesar e a dificultar uma colocação do tema. Em 2009 etnografei o Vídeo Índio Brasil (Campo Grande-MS), um evento que reunia cineastas indígenas, público indígena e não-indígena e alunos de diversas etnias para a oficina de produção audiovisual. Nesse período comecei a delimitar minhas intenções de pesquisa e fazer o treino de transformar o familiar em “exótico”, pois com a convivência mais intensa e direcionada com o objeto muitas questões começaram a aparecer. Este artigo é, antes de tudo, uma trajetória : de como construí e de como estou ainda problematizando a questão. Nessa fase inicial do mestrado, onde ainda não me desloquei para a realização da pesquisa de campo propriamente dita, muitas ideias surgem. Apresento-as aqui juntamente com uma discussão teórica preliminar com o intuito de provocar discussões e instigar os leitores para a problemática do índio citadino.
Vídeo Índio Brasil: etnografia para o projeto
Em 2009, indicada por um antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, realizei uma etnografia da Oficina de Produção Audiovisual do Vídeo Índio Brasil deste mesmo ano
- Nesta oficina a participação era exclusiva para indígenas (Terena, Xavante, Kadiwéu, Bororo, Guarani Kaiowá), inclusive os cineastas ministrantes; com exceção do Joel Pizzini, que ficou somente três dias, eram todos índios. No total foram 23 participantes entre alunos e palestrantes, e cerca de 90% eram jovens de 16 a 30 anos;
- Esses 10 dias de contato integral (manhã, tarde e noite) foram decisivos para a consolidação do projeto.
Grande parte dos jovens foi informada a respeito da oficina em suas próprias aldeias (somente quatro residiam fora da comunidade), alguns em aldeias urbanas de Campo Grande (Marçal de Souza e Água Bonita, de maioria Terena), outros de aldeias um pouco mais distante como as do Complexo Buriti (que engloba nove aldeias de Terena, entre elas a Lagoinha e o Lago Azul), a Jaguapiru (Dourados) e a Tey’kuê (Caraapó) de Guarani Kaiowá, a Cachoeirinha (Miranda) de Terena etc. O evento esclareceu muitas implicações do contato entre indígenas e não-indígenas na cidade; uma certa “necessidade” de entender o mundo do “branco” e de apropriá-lo de acordo com seu imaginário. Decidi então que o objeto seria “jovens indígenas no meio urbano de Campo Grande”. A categoria jovem não foi pensada de uma maneira mais densa e etnográfica, embora estivesse claro a todo o momento que esta era uma construção do meu mundo, de como eu entendia tal conceito. Pela ausência de bibliografia a respeito, categorizar a noção de juventude para os indígenas seria um desafio, e precisaria da pesquisa de campo, algo que viria apenas posteriormente. O passo a seguir era definir um objetivo que fosse claro e viável durante os dois anos de mestrado.
No decorrer dos dias consegui me enturmar e desenvolver várias idéias para o projeto. Conversando com alguns Terena do complexo Buriti descobri que sempre estavam lá na cidade, isso porque alguns faziam faculdade na Universidade Católica Dom Bosco – UCDB (que possui diversos programas de apoio ao indígena que deseja se graduar) e optaram por não sair da aldeia, mas vir todos os dias para estudar; outros ainda contaram que por fazer parte dos movimentos indígenas precisavam transitar constantemente entre a aldeia e a cidade; e alguns confessavam que estavam sempre em Campo Grande em eventos gratuitos promovidos pelo governo do estado e pela prefeitura, como o MS Canta Brasil que acontecia um domingo por mês sempre com bandas regionais e nacionais.
Esses espaços de sociabilidade dos índios ainda é um mistério para os que não estão em contato direto com eles. Uma jovem Kadiwéu, acadêmica do curso de Modas da UCDB, saiu da aldeia e foi morar na cidade só para estudar, pois sempre teve muito interesse por moda. Por várias vezes ela me contou a discriminação que sofreu na própria universidade e nos outros espaços de Campo Grande por ser índia, e ainda mais por só sair da aldeia recentemente. Outro caso foi o do Guarani Kaiowá Abríso da Silva Pedro (da aldeia Panambizinho, município de Dourados-MS), protagonista do filme “Terra Vermelha”, do diretor italiano Marco Bechis; Abriso me contou como foi difícil a aceitação dele no meio urbano, principalmente em países como a Alemanha onde mesmo com a produção do filme ele foi barrado no aeroporto por não ter “aparência” de brasileiro, e muito menos de ator de um filme milionário. Estes são dois casos de dois personagens muito diferentes. A jovem Kadiwéu que saiu da aldeia para estudar na cidade, e o jovem Guarani Kaiowá que ainda mora na aldeia, mas que foi ator de um filme com muita repercussão no exterior e que por isso ainda hoje está sempre transitando no meio urbano. Estes são alguns fatos dos vários que foram compartilhados comigo e dos outros tantos que tive a oportunidade de presenciar. O que estes depoimentos tão diferentes têm em comum é que são contextualizados no meio urbano, e mostram, mesmo preliminarmente, o incômodo com as discriminações, e com a maneira como eram vistos pela chamada sociedade regional.
A partir daí dei forma ao meu projeto. A pesquisa passa a ser uma comparação dos espaços de sociabilidade dos jovens índios que saíram da aldeia para morar na cidade com os jovens que ainda residem na comunidade, mas que constantemente realizam o trajeto aldeia-centro urbano.
Com a base das intenções de pesquisa formuladas o projeto foi amadurecendo e logo ingressei em um programa de pós-graduação. A etnia escolhida para fins de delimitação da pesquisa foi a Terena, ainda que outras apareçam como parte da rede de relações.
O Terena e a cidade
“Eu já passei por situações semelhantes, na universidade me olhavam e falavam indígenas estudando na universidade, cursando uma graduação, especialização, eles ainda têm uma visão de 510 anos atrás, não perceberam que o mundo muda, tudo muda, tudo se transforma, nada é permanente, pois buscamos mecanismos para ajudar nossas comunidade de alguma forma. Agora estamos estudando, nos formando, temos cursos superiores, e competimos com os não-índios de igual para igual, e usamos essas novas tecnologias sim, afinal não estamos isolados do mundo, também somos pessoas, seres inteligentes, somos seres humanos. A única diferença é a nossa cultura! Então meu parente Alex Makuxi os não-índios ainda nos fazem essas perguntas [“índios é o que vive na mata, que anda pelado, que não tem veículo automotivo…”] porque não conhecem a nossa história, a nossa realidade, quando nos fazem alguma pergunta desse tipo é pura ignorância mesmo, falta de conhecimento!”
Patrícia Pankararu, dezembro de 2010
Este trecho retirado de um site onde algumas etnias indígenas estabelecem contatos e dialogam sobre vários assuntos de seu interesse, exemplifica a construção da imagem indígena para a sociedade envolvente, e o sentimento e posicionamento de grupos indígenas. A pesquisa em questão acontece muito longe geograficamente do território Makuxi e Pankararu, mas pode-se dizer que os preconceitos, mesmo em suas diferentes nuances, tratam basicamente da dificuldade em perceber o indígena citadino como de fato um indígena.
Em Mato Grosso do Sul concentra-se a segunda maior população indígena em termos de quantidade, ficando atrás somente do Amazonas. A etnia Terena juntamente com os Layanas e Kinikinaua formavam o grupo conhecido como Guaná; hoje a denominação Terena (Etelenoe) é utilizada para agrupar todos os grupos Guaná, embora muitos tenham consciência que são descendentes de Layanas ou Kinikinaua – atualmente vivem em sua maioria em sete aldeias totalizando aproximadamente quatorze mil indígenas distribuídos em seis municípios no Estado de Mato Grosso do Sul. Em outras áreas como Aldeinha e Tereré vivem mais uns mil índios. Há também alguns familiares vivendo em área Kadiwéu (Porto Murtinho) e Guarani (Dourados), e um grupo residindo no Estado de São Paulo. No total, em Mato Grosso do Sul, somam 25 aldeias terena. Além dessas, cerca de 7 mil Terena residem atualmente em centros urbanos, a maioria na cidade de Campo Grande. Dentre os “jovens” indígenas em contexto urbano, 95% são Terena.
Apesar da inexatidão, esses dados são importantes para configurar uma visão geral da população Terena e de onde está localizada.
A migração Terena em direção a Campo Grande acontece há mais de sete décadas. Roberto Cardoso de Oliveira (1976), em meados da década de 70 do século passado, atribuiu esse deslocamento à atração que a cidade exercia sobre os Terena, como a perspectiva de melhor remuneração, lazer e educação para as crianças. Já na metade do século XX era raro um Terena adulto que nunca havia visitado Campo Grande para fazer compras ou para se deslocar até as fazendas mais distantes para trabalhar. De acordo com o mesmo autor, ao voltar para a aldeia depois do período de trabalho os homens Terena carregavam consigo algumas bugigangas da cidade, e esse “levar” a cidade para a aldeia desencadeava uma intensa expectativa de melhora de vida e de predisposição “ao urbano”. Entretanto, este não era um único motivo do êxodo para a cidade; outros fatores como pressão interna (aumento populacional) e falta de condições para o desenvolvimento e sobrevivência também eram consideráveis.
Entretanto, o contato do Terena com o não-índio não é algo tão recente como parece, e já acontece desde a época em que moravam no Êxiva (Chaco paraguaio). A história Terena é constituída de contatos e alianças com a alteridade, tanto com outras etnias indígenas como com não-índios; embora tenha sido no momento da Guerra do Paraguai (1864-1870) e na posterior delimitação de suas terras que esse contato com o purutuyé (não-índio) se intensificou.
O jovem Terena dessa pesquisa não está inserido em um território urbano fixo, o que se pretende é estudá-los através de redes. A rede urbana, que envolve outros grupos indígenas, e a rede ligada à aldeia. O jovem que vai para a cidade não pode ser visto de maneira “isolada”, pois o que o mantém lá é seu núcleo familiar; essa relação com a aldeia de origem não deixa de existir. Muitas vezes o próprio cacique da aldeia dá o suporte e a legitimação para que esse jovem vá para a cidade. Contudo, segundo um cacique Terena que reside em uma aldeia urbana de Campo Grande, o jovem procura o meio urbano principalmente para estudar, porque a aldeia já não satisfaz mais suas expectativas, mas ele só consegue ir para a cidade porque sua família o apóia.
Contato interétnico e uma Antropologia na cidade
Podemos usar e fazer as mesmas coisas que vocês sem deixar de ser nós.
(comentário de um Terena no Vídeo Índio Brasil 2009)
A presença indígena nas cidades desperta o interesse de muitos pesquisadores, mas ainda há muito que se estudar para entender de fato esse complexo fenômeno. Roberto Cardoso de Oliveira, em 1976, discute as categorias aculturação e assimilação, concluindo que raramente o processo assimilatório acontece plenamente, pois a cultura indígena seria muito mais resistente do que se poderia supor. Nesse entremeio, o contato com o “outro” faz surgir outra figura: a do bugre. Segundo Cardoso de Oliveira, é o termo bugre que serve para referenciar o produto da relação entre índio e não-índio, ou seja, o índio que se transforma em civilizado, mas em civilizado de segunda categoria, pois vários fatores colaboram para que ele nunca deixe de ser índio. O bugre é então aquele que está no limiar entre o “branco” e o índio, acabando por não ser nem uma coisa e nem outra.
Um outro autor, Fredrik Barth (1988), aponta que são justamente nas situações de fronteiras (físicas e, principalmente, étnicas) que um grupo se afirma; os indivíduos farão uso de símbolos para se afirmarem perante o outro. O contato dos indígenas com a sociedade nacional, segundo João Pacheco de Oliveira (1998), repensa a mistura, a hibridação cultural entre eles e os outros, e afirma-se como uma coletividade de acordo com seus interesses para sobreviver nesse contexto. A territorialização, ou seja, o processo de reorganização social, implica em mudanças e em reafirmações perante a alteridade. Além disso, Cunha (2009) apresenta uma importante argumentação sobre tradição e “cultura”, que auxilia o diálogo com Barth, Cardoso de Oliveira, Pacheco de Oliveira, entre outros, possibilitando a configuração de um composto teórico que subsidia a pesquisa de campo. Para a autora (segundo sua obra recente que faz crítica a textos anteriores de sua própria autoria), não existe situação de isolamento, todos os “grupos” estão em contato com a alteridade, seja sociológica ou cosmologicamente, caracterizando então que sempre a cultura está sendo mobilizada e articulada com a “cultura”, seja em contextos de diáspora ou não.
Importante ressaltar que o que interessava à Antropologia em seus primórdios era justamente o estudo do contraste entre os povos chamados “primitivos” e os “civilizados” que estavam em contato nas colônias. A diferença era colocada nos termos evolucionistas, uns estavam mais atrasados e outros mais adiantados na linearidade imposta por esses estudiosos.
Pacheco de Oliveira Filho (1988), faz algumas importantes análises e críticas sobre as teorias do contato interétnico, sendo elas 1) “situação colonial” de Georges Balandier, 2) “fricção interétnica” de Roberto Cardoso de Oliveira (final da década de 50 e começo da década de 60) e 3) “encapsulamento” de Bailey (1969). Sobre a noção de “situação colonial” ele critica o conceito de totalidade argumentando ser este um conceito muito genérico. Em seguida, aponta o problema da fricção interétnica, que ao aliar a perspectiva sociológica com o dualismo sócio-cultural – índios de um lado e “brancos” de outro – Cardoso acaba tripartindo o Brasil, fazendo surgir o 3º elemento – o “bugre”. A terceira análise se refere ao “encapsulamento”, que aborda as transformações pelas quais passam comunidades indígenas, por exemplo, em função da submissão a outras estruturas.
A análise da estrutura política das aldeias deve ser feita considerando-se o seu processo de ajustamento a esse meio ambiente social e histórico, tomando-se a estrutura política encapsulada como uma variável dependente e a estrutura maior como uma variável independente. Isso permitirá apreender os efeitos que mudanças ao nível do Estado têm sobre a estrutura política tribal ou da aldeia. (OLIVEIRA, 1998, p.52)
Pacheco aponta esta como uma noção incompleta e busca outro conceito com uma aplicação mais ampla para discutir o contato interétnico. Partindo de algumas reapropriações de Gluckman, fala da “situação social” como sobreposição de três elementos: os atores sociais, as ações desses atores e os vários eventos. Assim, a relação entre os grupos étnicos é balanceada e mutável, e permite a percepção dos diferentes padrões de interdependência.
Após essa rápida introdução, percebe-se que a problemática do contato entre os grupos étnicos está longe de ser um assunto de fácil argumentação e de limites definidos e encerrados. A Antropologia, de fato, abandona sua perspectiva evolucionista, e com a descolonização “(…) esta mudança chega a seu termo induzida pela aguda consciência do processo de extinção de nações indígenas e também pela recusa de antigos povos colonizados, agora independentes, a serem considerados objeto de estudos antropológicos. (MAGNANI, 1996, p.03). Nesse momento a Antropologia se conscientiza de que toda a alteridade pode ser um objeto de investigação em potencial. Uma caminhada no meio urbano, por exemplo, aguça a curiosidade do observador mais atento. A cidade é “boa para se pensar” a diversidade.
Pensar, perceber, compreender. O que de certa forma torna interessante a pesquisa em Campo Grande é exatamente o contraste, a relação; as etnias indígenas que antes eram investigadas como objeto da Etnologia Indígena agora são vistas como um objeto também na Antropologia Urbana. Afinal, com os movimentos migratórios Campo Grande se tornou potencialmente uma cidade diversificadamente habitada por várias etnias indígenas. Lá, onde os contatos entre índios e não-índios são intensificados, que categorias como “bugre” devem ser superadas, não só pelos pesquisadores – já que é uma ilusão dizer que academicamente conceitos como o de “aculturação” e “assimilação” foram superados – mas também pela sociedade regional.
A Antropologia, lá ou cá, na floresta ou na cidade, na aldeia ou na metrópole, não dispensa o caráter relativizador que a presença do “outro” possibilita. É esse jogo de espelhos, é essa imagem de si refletida no outro que orienta e conduz o olhar em busca de significados ali onde, à primeira vista, a visão desatenta ou preconceituosa só enxerga o exotismo, quando não o perigo, a anormalidade. (MAGNANI, 1996, p.05).
O espaço urbano é marcado pelas desigualdades sócio-culturais, pela violência física e simbólica, pelos contrastes. A cidade é figurada com as relações sociais, com a economia, a política, a tensão, a crise, a violência, o anonimato, a indiferença. É um caos organizado. A rua possibilita encontros entre conhecidos e desconhecidos, favorece o contato, as trocas de diversos olhares, “(…) é o espaço que se opõe, em termos de estrutura, àquele outro, o do domínio privado, da casa, [da aldeia], das relações consanguíneas.” (MAGNANI, 2009). Nesse contexto, a rua (ou “as ruas” da cidade) é pensada enquanto suporte de sociabilidade.
O que interessa neste estudo é justamente esta cidade, é a experiência que acontece na rua, é descobrir como em meio ao caos do grande centro os espaços e os equipamentos urbanos oferecem suporte de sociabilidade e significados para os jovens indígenas.
Localizando o Terena na cidade
Estudar o jovem Terena em Campo Grande exige um esforço para olhar através das redes de relações e fugir da “tentação da aldeia”. Para tanto, o uso da “família de categorias analíticas” elaboradas por Magnani (1996) serão o suporte para localizar e delimitar, de certa maneira, o objeto pesquisado. O circuito, definido pelo autor como
(…) uma categoria que descreve o exercício de uma prática ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma relação de contiguidade espacial; ele é reconhecido em seu conjunto pelos usuários habituais. A noção de circuito também designa um uso do espaço e dos equipamentos urbanos – possibilitando, por conseguinte, o exercício da sociabilidade por meio de encontros, comunicação, manejo de códigos -, porém de forma mais independente com relação ao espaço, sem se ater à contiguidade, como ocorre na mancha ou no pedaço. Mas ele tem, igualmente, existência objetiva e observável: pode ser identificado, descrito e localizado. (2002, p.23 – 24).
A organização do espaço urbano, ou como tornar o caos organizado, envolve o entendimento da rede de relações formadas por um grupo; nesse caso apresentada como mais densas e significativas que as relações mantidas pela sociedade e menos restrita como as relações entre familiares, é designada como pedaço. Esta categoria referencia o espaço entre o privado e o público, e está além da constituição física territorial. Nesta perspectiva, é fundamental para a configuração do cenário da pesquisa localizar a rede de sociabilidade entre os jovens indígenas que estão em alguns momentos no meio urbano de Campo Grande. As manchas, outra categoria de Magnani, ao contrário dos pedaços que são fluidos e independentes de uma constituição física fixa, se apresentam como ponto de referência física com maior visibilidade e estabilidade. Nos estabelecimentos incutidos em determinada mancha há laços de sociabilidade sendo formados naquele tempo e espaço.
A importância desse desenho inicial é de localizar os jovens indígenas que não se restringem a espaços bem delimitados que serviriam de recorte para a pesquisa. Além dos pedaços e das manchas existe o trajeto que é justamente o fluxo no “espaço mais abrangente da cidade e no interior das manchas” (MAGNANI, 1996, p.43). Na imersão dos grupos na sociedade urbana, aparentemente caótica, os trajetos ligam os espaços, e podem existir e variar de forma dependendo da lógica traçada de quem circula.
Toda essa ênfase à espacialidade conduz ao estudo do circuito do jovem indígena, ou seja, dos grupos que fazem uso dos equipamentos urbanos para exercer sua sociabilidade através de seus códigos específicos. A comparação entre o jovem que reside na cidade com aquele que transita algumas vezes por ela, configura as redes de sociabilidade que se constroem e se desconstroem dependendo dos interesses políticos que vigoram no momento.
Em Antropologia Urbana ou Etnologia Indígena?
Uma pergunta recorrente a respeito da pesquisa exposta era se tratava-se de Antropologia Urbana ou da Etnologia Indígena. Evidentemente o indígena tem um histórico de ser pesquisado pela Etnologia Indígena, ou pela chamada Antropologia Clássica, onde era colocado sempre em contraste com os “povos civilizados” no contato na colônia. Por outro lado, muito mais recentemente – anos 20 –, as pesquisas na cidade são inauguradas com a famosa Escola de Chicago. A cidade de Chicago era vista como um laboratório, e os pesquisadores estudavam fenômenos sociais tais como criminalidade e prostituição. Depois da Segunda Guerra Mundial (BECKER, 1996) a Escola de Chicago deixa Chicago, e muitos estudiosos acabam indo para outros centros do país e levando os interesses de pesquisa lá produzidos.
No Brasil, as pesquisas urbanas surgiram nas décadas de 40 e 50, e não foi nos grandes centros, mas sim nas pequenas cidades ao seu redor . A observação direta e as técnicas da Etnologia nos estudos tribais eram base para esses pesquisadores que iniciaram os chamados de “estudos de comunidade”. O objetivo era ter uma visão geral do Brasil através desses estudos localizados sobre mudança cultural, “persistência da vida tradicional” etc. (MELATTI, 1983).
No final da década de 50 o país passava por importantes transformações, mas a Antropologia continuava fiel ao que Magnani chama de “3 tarefas”, “estudando populações indígenas, relações raciais, religiões populares, família, migrantes… temas e personagens que não estavam, por certo, no centro dos acontecimentos.” (MAGNANI, p.10, 1996).
Na década de 70 os objetos tradicionalmente estudados pela Antropologia (índios, negros, camponeses etc) deixam de ser “marginais” e passam a ser sujeitos políticos, isso porque o país efervescia com as transformações, com os movimentos sociais. Partindo desses acontecimentos, a Antropologia adquire mais visibilidade e prestígio (MAGNANI, 1996). Hannerz (1980), inclusive, afirma que a Antropologia muda seu foco para a cidade no momento em que seu objeto (sujeitos do chamado “Terceiro Mundo”) migra para os grandes centros mundiais.
Após essas breves considerações posso afirmar que o estudo sobre o Terena citadino é tanto da Antropologia Urbana quanta da Etnologia Indígena. Por um lado, por se tratar de um objeto caro à Etnologia Indígena, e por outro, porque é na cidade que a pesquisa acontece, com o interesse em conhecer o cotidiano, em como passam o tempo livre, como vivem. Interessante notar que a Antropologia Urbana nasceu, de certa maneira, atrelada à Etnologia Indígena, e que os estudos na cidade se consolidaram na Antropologia justamente porque os sujeitos que antes eram tidos como “primitivos” passaram a ser efetivamente “sujeitos de direito”. Sendo assim, uma possível dissociação dessas duas “antropologias” na pesquisa em questão, como sugerido por muitos, não abarcaria todas as possibilidades que a liminaridade entre ambas permite.
Uma criança madura ou um adulto jovem?
Outra problemática apresentada ao longo da construção do projeto de pesquisa foi o termo “jovens indígenas”, que denotava mais uma concepção do meu mundo do que do mundo deles propriamente dito. Muitas foram as maneiras pensadas para solucionar este problema, entretanto, devido à falta de bibliografia sobre a discussão de uma “juventude” indígena e com o enraizamento de uma determinada noção produzida e reproduzida por não-indígenas, decidiu-se tratar a questão primeiramente sob o ponto de vista do não-índio.
Nas Ciências Sociais convencionou-se que a juventude deveria ser tratada de maneira heterogênea, entretanto, naprática, essas várias conceituações acabam se reduzindo a uma forma quase única de se pensar o que é ser jovem. Vários autores apresentaram sua ideia sobre a juventude, e essa diversidade representativa do termo torna difícil a produção de um conceito único da juventude. Como se poderá reduzir a juventude, por exemplo, como um breve estágio de rebeldia? E aqueles adultos que continuam “rebeldes”? Por que temos que necessariamente dividir nossa trajetória histórica em fases : crianças, jovens, adultos e velhos?
Gonçalves (2004) faz uma revisão da literatura que trata sobre a juventude nas Ciências Sociais. O enfoque essencialista, da primeira metade do século XX, utilizou o termo “jovem” em contraste com o termo “criança”. Segundo a autora, “os conteúdos universalistas e atemporais, baseados em traços psíquicos, conferiam à puberdade características encontradas em todos os jovens.” (p.34). A fase da juventude seria apontada como problemática e cheia de conflitos com o surgimento das “primeiras pulsões sexuais e as repressões ou imposições sociais cotidianas” (p.34). Outros estudos ainda classificam a juventude em faixa etária, de acordo com características fisiológicas e psicológicas.
Juventude é uma construção sociocultural dependendo assim do contexto histórico e da sociedade que vivencia. As etnias indígenas não subdividem necessariamente a trajetória humana, algumas outras nomenclaturas são utilizadas como “crianças que ainda não andam, jovens casados sem filhos, avós com um neto, casados com um filho etc” (GONÇALVES, 2004, p.34), em contraste com as sociedades chamadas de complexas, onde a idade em si faz parte da construção da identidade social.
Nos anos 30, e mais especificamente nos anos 50, com a Escola de Chicago, os estudos sobre delinquência juvenil ganham destaque. Segundo a mesma autora, foi um momento importante, pois colaborou para que posteriormente ocorresse o rompimento “com a ideia genérica de jovens marginais”. (2004, p.35). Na década de 60, o culturalismo contribuiu para a generalização da ideia de jovem, cujas características estavam relacionadas com um grupo, por exemplo, os hippies. “Tal perspectiva se colocava em contraposição à ideia meramente geracional, se atendo às especificidades culturais de grupos sociais e o local que ocupam na sociedade.” (p.35)
O destaque na década de 70 é para as críticas relacionadas à visão desviante da juventude; nos anos 80 a concepção de juventude passa a ser ligada ao consumo da moda, suas apropriações e modificações corporais, que permite a criação de diversos estilos. Atualmente, a juventude é relacionada a problemas sociais ao mesmo tempo em que é colocada como um ideal. Não são poucas as estratégias do mercado para ajudar no prolongamento dessa juventude em adultos. Assim, no primeiro momento a juventude é vista como uma reprodução cultural, e no segundo momento como um rompimento das normas sociais.
Embora haja diversas interpretações, a maioria dos pesquisadores do tema acredita que a juventude é o momento de transição da fase da infância para a fase adulta, e engloba uma série de marcas características que definem o limiar entre uma fase e outra.
Pode-se dizer que as sociedades indígenas estão passando por modificações no que diz respeito à juventude, principalmente em se tratando do cotidiano na cidade. O que perpassa o imaginário social sobre a juventude é a fase da “descoberta”. Um olhar descuidado permite pensar que os indígenas, para nós jovens, na cidade são como qualquer outro. Considerando os sinais estereotipados da “juventude” como piercings, tatuagens, rebeldia, esses indígenas estariam, grosso modo, no mesmo grupo. Entretanto, sabe-se que essas sociedades, pelo menos até pouco tempo, não consideravam a juventude como uma categoria em potencial. Na aldeia casavam-se cedo, de criança passavam para adultos, ou “jovens adultos casados”. Contudo, quando se deslocam para a cidade para residir por um espaço de tempo, muitas vezes até definitivo, muitos desses conceitos ligados à vida na aldeia acabam se transformando. Hoje em dia, inclusive, vários desses indígenas citadinos não se casam cedo. O desafio é entender como categorizam, e se categorizam, o termo juventude. Entretanto, essas questões só poderão ser devidamente discutidas e analisadas com a pesquisa de campo.
Nesse momento, outras questões podem ser colocadas, como, por exemplo, tratar os bens de consumo de empresas associadas a roupas, acessórios, música, e até mesmo expressões linguísticas, que tomam formas próprias para este grupo que está na cidade. A juventude hoje pode ser tomada como uma imagem construída. Muitos adultos consomem produtos que são socialmente atribuídos à imagem do jovem. Vários desses conceitos estão no mercado e cada um escolhe conforme seus gostos individuais, culturais e de trajetória histórica vivida. A pergunta que serve de guia para esta pesquisa é: como os indígenas, Terena, consomem esta imagem da juventude enquanto estão na cidade? Marshall Sahlins (1997a, 1997b), apontando as transformações que a “descolonização” provocou nas colônias, com o suposto imaginário de que o objeto da Antropologia estaria sumindo, contrapõe a esse “pessimismo” reconhecendo que o desenvolvimento concomitante de uma integração global é, ao mesmo tempo, uma diferenciação local, já que os povos a nível local apreendem e se organizam culturalmente reinventando sua experiência e os signos globais.
Contudo, esse “pessimismo” da sociedade dita nacional ou regional em relação à “aculturação” do indígena sobrevive e se repercute em variadas formas de preconceito com esse indígena citadino, que faz uso dos bens da juventudeoferecidos pelo mercado para afirmar sua própria identidade.
Infelizmente, mais considerações sobre a juventude indígena só poderão ser feitas após a pesquisa de campo direcionada.
Considerações finais
A juventude é uma construção social, e por mais que se tente achar algo em comum em todas as suas definições, que variam de sociedade para sociedade, ela continuará sendo um conjunto de possibilidades. Nas sociedades indígenas, como foi visto, essa categoria adquire significados específicos, ora podendo designar uma criança que passou por determinados rituais e agora é considerado um adulto jovem, ora representando um adulto que não passou pelos ritos que o conduzem à velhice. As possibilidades são diversas e só poderão ser de fato aprofundadas no que diz respeito à etnia Terena citadina com a pesquisa de campo que será realizada muito em breve.
O cotidiano de indígenas que estão por certos momentos na cidade interessam tanto à Antropologia Urbana quanto à Etnologia Indígena; ambas colaboram na tentativa de uma aproximação de “perto e de dentro” que são fundamentais para desconstruir preconceitos e entender, afinal, como é ser um jovem indígena citadino.
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http://www.pontourbe.net/edicao8-artigos/167-o-terena-na-cidade-um-estudo-sobre-liminaridade-entre-antropologia-urbana-e-etnologia-indigena. Enviada por Valdir Guedes para a lista do Cedefes.
Perfeito! A discussão sobre o índio urbano é extremamente importante no atual cenário brasileiro.