É quase certo que conceituar fragmentariamente o capital só reforça o capitalismo que muitas de nós combatemos, porque reforça hierarquias, competição exacerbada, o consumismo, o desemprego/ desocupação, a busca de lucro progressivo e incessante – mesmo que com prejuízos ecológico -, a privatização de bens públicos, em síntese, a valorização do ter e da aparência, à luz de conceitos e ideologias euro-hegemônicos. Em todo caso, pode caber um certo glossário, para estimular reflexões sobre sinergias negativas, ligadas às questões de gênero, raça e condição socioeconômica. Tanto no plano individual quanto no coletivo, destaco os vínculos:
a) Capital afetivo: Aqui, trata-se da questão de orientação sexual, então, a heterossexualidade/heteroafetividade é absolutamente hegemônica e é, portanto, privilegiada; fica a homo e transsexualidade com ‘capital afetivo’ baixo.
b) Capital ambiental: Nas cidades, os que habitam as áreas de melhor infraestrutura urbana detém maior fatia desse tipo de capital e as famílias brancas o concentra – racismo ambiental.
c) Capital ´ascendestista´: A ascendência europeia é de maior capital. Assim, brasileiros/as que têm fenótipo euro-branco e até (apenas) sobrenomes alemães, italianos, ingleses, franceses, holandeses e portugueses têm sido privilegiados . Alguns sobrenomes orientais e indígenas têm um certo capital ´ascencentistas´ . Porém os ´dos Santos´, ´dos Anjos, ´da Silva´, ´da Conceição´ , ´de Souza´ os quais têm baixo ´status´, e alguns, de alguma forma, estão ligados à escravidão negra, têm baixíssimo capital ´ascendentista´.
d) Capital cultural: Hegemonicamente ´cultura´ é sinônimo de ´euro-cultura-elite´ (branca: balé, música clássica-erudita, artes plásticas /pintura/escultura); a chamada ´cultura popular´ tem, obviamente, menor capital cultural.
e) Capital força-física: Inequivocamente os homens possuem a concentração desse tipo de capital; não é à toa que estupram, estapeiam/esmurram e são maiores agentes de feminicídios, inclusive dentro do sistema de saúde, sobretudo às que estão na zona da pobreza.
f) Capital sexista: Também, inequivocamente, os homens concentram esse tipo de capital e não somente no Brasil e sim no mundo. Machismo/patriarcalismo generalizado.
g) Capital impunibilista: A acumulação desse tipo de capital de impunidade privilegia famílias brancas, de poderio econômico-financeiro e de status. A severa ´força da Lei´ é ativada para os que estão na pobreza, sobretudo para negros/as, indígenas e às pessoas ligadas ao ´baixo prostíbulo´.
h) Capital econômico: Esse é um dos ´clássicos´. No Brasil donos de grandes empresas extrativistas (madeireiras, mineradoras, de frutos do mar/rios); os latifundiários (muitos são ´grileiros´), do agronegócio (pecuaristas, monocultores), agroindustriais e industriais, comerciantes e banqueiros . Perfil hegemônico: famílias brancas e, em pequena escala, orientais/asiáticos.
i) Capital eleitoral: Homens, brancos, empresários, com fartos recursos econômico-financeiros, com acesso direto ou indireto à redes de comunicação e ditos ´bem apessoados´.
j) Capital etário: As pessoas de 35 a 55 anos possuem esse tipo de capital mais elevado.
k) Capital esportivo: Em geral, acumulam mais esse tipo de capital, as modalidades com menor possibilidade de contato físico; que precisam de espaço especial (piscina, campo de golfe, quadras de tênis), e cujos apetrechos são de custo elevado; cabe indagar aqui se automobilismo é mesmo esporte pois depende mais de motor, combustível, tipo de pneu, etc. Perfil hegemônico: pessoas brancas. Aos que estão na pobreza cabe algumas modalidades ligadas ao atletismo (corridas e saltos, principalmente), futebol, box e outras que não precisem usar espaços elitizados.
l) Capital financeiro: banqueiros, grandes aplicadores no mercado de capitais. Perfil hegemônico: famílias brancas.
m) Capital intelectual: Pesquisadores, professores universitários, sobretudo com títulos de mestrado/doutorado obtidos na Europa, USA, Canadá. Populações negra e indígena estão com baixíssima acumulação desse tipo de capital. Praticamente não conseguem ´bolsas de estudos´ nem para se deslocar dentro do território nacional;
n) Capital jurídico: Advogados/Operadores de Direito/juristas ligados a escritórios renomados. Perfil hegemônico: homens brancos.
o) Capital marcialista: Homens brancos de alto escalão no oficialato das forças armadas federais. Pouca ou nenhuma representação de negros/as e indígenas.
p) Capital mass media: Redes de TV são as hegemônicas (a maioria quer ´aparecer na TV´), embora as radiofônicas sejam as mais acessadas. Donos? Homens brancos.
q) Capital natural/biodiversidade: O Brasil tem, mas quem amealha e tem lucrado? Famílias brancas.
r) Capital patrimonialista: Historicamente, no Brasil, o homem branco concentra esse tipo de capital.
s) Capital político: Possui mais quem garante maior exposição nos meios de comunicação, então, são os homens brancos que concentram esse tipo de capital.
t) Capital profissional: diretores executivos (CEO), advogados, médicos, publicitários, jornalistas – brancos/as, evidentemente.
u) Capital racial: Segmento branco da população; pessoas brancas que estão na pobreza, de alguma forma, se beneficiam com esse tipo de capital- são priorizadas em empregos em shoppings, companhias aéreas, recepcionistas, etc.
v) Capital regional: Sudeste e Sul do Brasil detêm a hegemonia do capital regional – maior concentração de brancos. Quem tem menor ´cacife´ são as regiões Norte e Nordeste.
w) Capital religioso: Cristianismo detém maior capital religioso. Mesmo que Jesus Cristo tenha sido afro-asiático, é considerado ´blasfêmia´ dizer que ele não foi uma pessoa branca. No tocante a ´Deus pai, Filho e Espírito santo´ só o nome ´santíssima trindade ´ é feminino. Religiões ´afro-indígenas´ têm sido ultra discriminadas.
x) Capital social: Considerando que, para alguns, esse capital está ligado a estratégias´ e pode ser ´herdado´, então, desde invasão europeia neste chão e do pecado ecológico que representou a brutal extração de ´pau-brasil´, a hegemonia deste capital está com os homens brancos.
y) Capital tecnológico: Considerando que envolve nível educacional, acesso a informação técnica, estágios no exterior entre outros, o perfil hegemônico o liga a homens brancos.
z) Capital visual: Considerando que, secularmente, o ´padrão de beleza´, no Brasil, tem sido branco, não há dúvida de que homens, mulheres, crianças, homossexuais, portadores de deficiência, prostitutas, domésticas, brancas (principalmente se louros/as de olhos azuis), têm sido beneficiados, na sociedade brasileira. As populações negra e indígena têm de percorrer muito chão para garantir a equidade e, já que chegamos até aqui, resta continuar.
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* Ativista do movimento negra, uma das fundadoras do CEDENPA-Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará; da Rede Fulanas-Negras da Amazônia Brasileira/NAB , do IMUNE-Instituto de Mulheres Negras do Pará e, atualmente, uma das coordenadoras da AMNB-Articulação de Mulheres Negras Brasileiras.