Marginalização sofrida pelos profissionais do sexo dificulta as já complexas medidas de controle do HIV
Bruna Sensêve – Correio Braziliense
Silenciosa, desproporcional e fatal. Os três adjetivos definem a forma como a epidemia do HIV se desenha entre os trabalhadores do sexo. Mulheres, homens e transgêneros que se prostituem estão sujeitos — em países de alta, média e baixa rendas — a políticas e condições sociais discriminatórias e repressivas. A marginalização desse grupo é combustível para violações graves dos direitos humanos, impedindo que essas pessoas acessem os serviços de saúde necessários para a prevenção e o tratamento da infecção pelo vírus da Aids. Essa é a conclusão exposta por um grande time de pesquisadores internacionais no terceiro dia da Conferência Internacional Aids 2014, que acontece esta semana na Austrália. A principal solução apontada por eles é simples e polêmica: a descriminalização do profissional do sexo em todo o mundo.
Os resultados apresentados pelo primeiro artigo de uma série de oito trabalhos publicados nesta terça-feira na revista científica Lancet trazem conclusões de como alguns determinantes estruturais poderiam modificar o cenário de exposição ao vírus nesse grupo. A eliminação da violência sexual que sugere a ausência de preservativo, por exemplo, seria capaz de evitar 17% de novas infecções no Quênia e 20% no Canadá entre os profissionais do sexo e os clientes dele. No país africano, a ampliação do acesso à terapia antirretroviral nos moldes da Organização Mundial da Saúde — o atendimento de pacientes com uma contagem de células CD4 inferior a 500 células por ml — evitaria 34% de infecções. Estima-se que até uma cobertura menos abrangente conseguiria evitar pelo menos 20% de novas infecções na próxima década. A descriminalização do trabalho sexual, porém, teria o maior efeito sobre o curso da epidemia do HIV em todas as configurações, evitando de 33% a 46% de novos casos.
A editora executiva da publicação responsável pela série sobre HIV e trabalhadores do sexo, Pamela Das, considera que os olhos estão voltados para essa população porque, ainda que com os riscos aumentados da Aids e de outras DST, esses profissionais enfrentam barreiras substanciais no acesso aos serviços de prevenção, tratamento e cuidados. O motivo disso seria o estigma, a discriminação e a criminalização nas sociedades em que vivem. “Essas injustiças sociais, legais e econômicas contribuem para o alto risco de contrair o HIV. Muitas vezes, na clandestinidade, por medo, os trabalhadores do sexo encontram ou enfrentam o risco direto de violência e abuso diário. Eles permanecem não atendidos pela resposta global de HIV”, explica.
Estigma e opressão
Os cientistas que participaram da longa jornada de pesquisa sobre o tema também levaram à apresentação na conferência relatos de trabalhadores do sexo (veja ao lado) que descrevem a opressão policial, a violência por parte de clientes e, principalmente, o estigma que precisam enfrentar para receber cuidados de saúde. Na cidade de Mombasa, no Quênia, a discriminação é tanta que eles temem ser diagnosticados com o HIV, principalmente devido aos maus-tratos a que podem ser submetidos. “Quando eu fico doente, vou a um centro de saúde e percebem que sou profissional do sexo, não me tratam como um ser humano. Dizem que não têm tempo para mim. Então, sou abandonada sem tratamento”, desabafa uma mulher que pediu para não ser identificada.
Grande parte dos relatos são de moradores de países em condições econômicas e sociais preocupantes, apesar de o problema não ser uma exclusividade dessas regiões. Um dos depoimentos trata da realidade de coerção policial em Vancouver, no Canadá. Segundo a trabalhadora que não se identifica, policiais e seguranças são agressivos e promovem o abuso sexual em troca de deixá-las trabalhar. “Isso tem de parar. Aqui embaixo, (policiais) nos buscam e nos obrigam a fazer algo por eles, só assim você pode ficar lá para trabalhar. E isso é mais ou menos o território deles”, descreve.
Nos Estados Unidos, a situação não é muito diferente. Em todos os estados do país, com exceção de Nevada, a prostituição é crime. “Depois da prisão, eu sempre fico com muito medo… Algumas vezes quando eu não tinha camisinha e eu precisava de uma, eu usava um saco plástico”, conta uma trabalhadora do sexo norte-americana. Ela detalha uma condição observada em diversos países nos quais a camisinha é considerada uma prova de prostituição. Por esse motivo, muitas preferem não levar o preservativo consigo.
“Embora nem sempre seja descrito como violações dos direitos humanos, as injustiças sociais, incluindo más condições de trabalho, violência, perseguição policial e discriminação, têm sido consideradas como barreiras para a prevenção do HIV e o tratamento bem-sucedido”, lembra Chris Beyrer, um dos líderes do trabalho e também professor da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg.
Para Breyer, o quadro de saúde e direitos humanos norteou a resposta global ao HIV em um grau sem precedentes na saúde pública, parte disso porque a epidemia do vírus mostra o custo das restrições à liberdade e à dignidade humanas. “Porém, direitos humanos dos trabalhadores do sexo raramente são abordados no âmbito das convenções ou nas declarações de direitos humanos”, critica. Ele reforça que todas as pessoas têm direito aos preceitos fundamentais da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos 1967). “Esses direitos não são revogados pelo status de profissional do sexo.”
Políticas corajosas reduzem infecção
Propostas de enfrentamento mais audaciosas e corajosas contra a epidemia da Aids tendem a ser muito bem-sucedidas ainda que sempre sob confronto direto com opiniões tradicionalistas. Um exemplo comprovado de sucesso em frentes como essa é a distribuição de seringas descartáveis pelas instituições de saúde aos usuários de drogas intravenosas em países da Oceania. Atualmente, a Austrália é referência global com um número quase zero de novas infecções entre essa população. O resultado foi alcançado após o fornecimento de agulhas e até disponibilização de locais para a injeção de drogas em usuários. A estratégia foi polêmica quando passou a ser implementada, mas hoje é aceita pela comunidade como solução.
O grupo de usuários intravenosos de drogas tende a ser um dos focos mais preocupantes da epidemia em países da Europa Oriental e Ásia Central. Em 2010, metade de todas as infecções na região aconteceu devido ao compartilhamento de agulhas contaminadas para o uso de entorpecentes. As medidas tomadas na Austrália podem soar radicais, porém já comprovaram efetividade na redução da epidemia. Segundo o professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Renato de Almeida Muçouçah, as medidas ligadas à sexualidade tendem a sofrer pressões de opiniões refratárias e conservadoras apegadas à ideia de que políticas públicas de saúde, como a regulamentação da prostituição ou mesmo a distribuição de preservativos, podem servir de incentivo ao comportamento de risco.
O Brasil ainda não pode ser visto como uma referência na questão ao serem considerados países como Alemanha e Holanda ainda que a atividade seja reconhecida pela Classificação Brasileira das Ocupações. O principal problema estaria na falta de regulamentação da atividade em si e todas as questões que a englobam. “Eles têm a garantia de um trabalho lícito, mas não podem contar com qualquer amparo de um possível empregador ou coisas assim”, diz Muçouçah.
Ele explica que os profissionais do sexo podem se declarar como autônomos. “A partir do momento em que regulamentamos, por exemplo, as casas de prostituição, como acontece em países europeus, transferimos ao empregador a obrigação de cuidar da saúde dos seus empregados. Ou seja, vai ter que promover programas de diagnóstico e tratamento às DST.” (BS)
Depoimento: Medo de procurar assistência
“Eu ainda tenho medo de ir aos serviços de saúde porque sou transexual. Eles não entendem e não querem prestar serviços para mim. Não há lugar específico para ir e ter um checape. Não consigo acessar o tratamento hormonal. Por causa do estresse do trabalho sexual, decidi ir para o Oriente Médio. Fiz trabalho doméstico, mas fui estuprada. Por eu ter sido trabalhadora do sexo, não achei que poderia denunciá-lo. Então, nunca disse a ninguém. O proprietário da casa me mandou de volta para Kathmandu, onde eu vivo agora. Há muitos jovens transexuais como eu que querem seguir uma educação, mas não podem devido ao assédio moral e aos abusos. Estamos presos na sociedade, fora das normas sociais e sem opções para o nosso futuro. Muitos profissionais do sexo jovens transexuais tentam cometer suicídio devido a esse estigma e a essa discriminação. Nós temos baixa autoestima e outras questões que são difíceis de superar. Espero que, no futuro, haja igualdade de gênero. Assim, não teremos que nos esconder e poderemos simplesmente ser quem somos. Queremos acessar as coisas que outros jovens acessam para educação e emprego.” Rose, do Nepal