IHU On-Line – “Se as fazendas de natureza patronal geram tão pouco emprego é porque a maior parte de suas terras está coberta de pastagens que suportam a mais extensiva pecuária bovina de corte do mundo. O que até permite entender porque esse grupo de fazendeiros é vítima do grosseiro e ofensivo estigma “gigolôs de vaca”, escreve José Eli da Veiga, professor titular da USP, em artigo publicado no jornal Valor.
Segundo ele, “o uso da expressão “agronegócio”” pode ser ‘perverso’ por “acobertar interesses dos mais parasitários”.
“Como o absurdo sistema eleitoral garante que regiões periféricas estejam super-representadas no Congresso – conclui -, só podem mesmo predominar na chamada bancada ruralista parlamentares com objetivos até opostos aos das atividades empreendedoras de última geração”. Eis o artigo.
A metade dos habitantes das grandes cidades brasileiras ainda nem ouviu falar de agronegócio. E poucos dos que ouviram chegaram a entender seu significado, o que leva os mais incautos a tomarem esse rótulo pelo seu valor de face. Vale, portanto, breve retrospectiva, mesmo para os bem-informados leitores do Valor.
A expressão “agribusiness” emergiu em meados da década de 1950 na Harvard Business School como ferramenta de análise das conexões cada vez mais intensas que o “agro” (agricultura, pecuária e exploração florestal) mantém com as firmas que processam e distribuem seus produtos até o consumo final, além, é claro, de seus fornecedores de insumos.
Derivada da matriz insumo-produto lançada pela análise estrutural da economia dos Estados Unidos feita em 1941 por Wassily Leontief, essa abordagem rompeu com a tradição dos estudos do agro que não davam importância aos encadeamentos sistêmicos à montante e à jusante. Isto é, subestimavam transações antes e depois das porteiras dos estabelecimentos agrícolas, pecuários e florestais. Cadeias que primam pela diversidade, como mostram os mais de mil estudos de caso conduzidos por Ray Goldberg, o criador dessa linha analítica.
Por incrível que pareça, além de uma demora de 35 anos para que essa ideia chegasse ao Brasil, ela não foi trazida por estudiosos dos negócios, área de pesquisa em administração e economia. Entrou graças ao pioneiro dinamismo do falecido engenheiro agrônomo e empreendedor Ney Bittencourt de Araújo, que presidiu a Agroceres de 1978 até sua trágica morte em 14 de janeiro de 1996. Foi ele quem levou para os seminários de Goldberg, em Harvard, um então jovem pesquisador que mais tarde se tornaria a principal referência acadêmica brasileira sobre o tema, e que formaria quase todos os atuais executivos das associações de interesse privado do campo: Decio Zylbersztajn, daFEA/USP.
No entanto, além de estimular a abordagem sistêmica para os estudos do agro brasileiro, o saudoso Ney tinha outra ambição, bem mais desafiadora: a renovação do lobby setorial para que ele se adaptasse à redemocratização e à abertura econômica. Por isso, empenhou-se na criação da Abag (Associação Brasileira do Agronegócio), que conseguiu fundar em 1993.
Passados vinte anos, é forçoso reconhecer que ainda não se realizou o sonho de Ney, pois a Abag só exprime uma aliança dos mais dinâmicos segmentos do agro com a pequena retaguarda do setor de insumos, por mais que ambos tenham tentado obter a adesão da vanguarda pós-porteira. No Brasil, indústrias processadoras, tradings e supermercados ainda não se enxergam no agronegócio.
Juntos, os atuais componentes da Abag correspondem a pouco mais de 10% do PIB brasileiro, enquanto teoricamente o agronegócio atingiria o triplo. É bem diferente com os empregos, pois mais da metade dos que seriam oferecidos pelo agronegócio são primários: agrícolas, pecuários ou florestais. Todavia, só um quinto desses empregos está em fazendas operadas por contratação de mão de obra. Quatro quintos estão pulverizados nos mais de quatro milhões de sítios da chamada “agricultura familiar”, expressão muito mais antiga que agronegócio, mas que também só debutou no Brasil em 1993 com o relatório FAO/Incra “Diretrizes”. Deve-se à agricultura familiar um terço do PIB do agronegócio e metade das vendas de produtos agropecuários.
Se as fazendas de natureza patronal geram tão pouco emprego é porque a maior parte de suas terras está coberta de pastagens que suportam a mais extensiva pecuária bovina de corte do mundo. O que até permite entender porque esse grupo de fazendeiros é vítima do grosseiro e ofensivo estigma “gigolôs de vaca”.
Se recentemente tanto brigaram pela revogação do Código Florestal foi porque, ao admitir a devastação de imensas extensões que já haviam virado pasto em total desrespeito à sua destinação para a preservação permanente, a sociedade deu incomensurável presente à especulação fundiária, principalmente a que campeia nos cerrados do Centro-Oeste, da pré-Amazônia e do Oeste baiano.
Além de gerarem parcos empregos, de não respeitarem normas agronômicas básicas para a conservação dos recursos naturais e de terem mais rentabilidade patrimonial que operacional, os fazendeiros desse tipo de pecuária ainda são os principais premiados pela falta de real tributação da propriedade da terra, também o caso mais escandaloso do mundo. O ITR (Imposto Territorial Rural) permanece uma insólita peça de ficção, mesmo depois de ter passado para a jurisdição da Receita Federal.
São elementos suficientes para que se note quão perverso pode ser o uso da expressão “agronegócio” para acobertar interesses dos mais parasitários. Como o absurdo sistema eleitoral garante que regiões periféricas estejam super-representadas no Congresso, só podem mesmo predominar na chamada bancada ruralista parlamentares com objetivos até opostos aos das atividades empreendedoras de última geração que caracterizam a Abag.