Em reuniões na semana passada, os moradores definiram os procedimentos para a consulta, a primeira no país, sobre o Plano de Desenvolvimento proposto pelo governo paraense
Ministério Público Federal no Pará
Os moradores da comunidade remanescente de quilombo de Cachoeira Porteira definiram na semana passada os procedimentos para a consulta prévia em que decidirão sobre o Plano de Desenvolvimento proposto pelo governo paraense à comunidade. Eles estiveram reunidos com técnicos do Instituto de Desenvolvimento Econômico, Social e Ambiental do Pará (Idesp), que fará a primeira consulta prévia no país, e com representantes do Ministério Público Federal no Pará (MPF/PA), que acompanham o processo.
Foram três dias de debates e reuniões que culminaram com a aprovação das datas e metodologia da consulta. A comunidade, com quase 400 moradores, decidiu que a consulta ocorrerá no final do mês de agosto. O procedimento começará com uma reunião de informação, em que o governo deve fornecer à comunidade todas as informações relacionadas ao Plano de Desenvolvimento. Depois, os moradores terão quatro dias para debater entre si sobre as propostas apresentadas. A previsão é de que os últimos dias sejam destinados a reuniões de negociação até a decisão final dos moradores. Eles podem aceitar, modificar ou rejeitar integralmente as propostas e a decisão terá que ser respeitada pelo governo.
O procedimento aprovado estabelece que a consulta deverá ser prévia, livre e informada, dentro dos parâmetros da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que entrou em vigor no Brasil em 2003, após ratificação pelo Congresso Nacional. Além disso, a comunidade terá a palavra final sobre a proposta apresentada. “A implantação ou não do projeto ficará condicionada à decisão final da comunidade consultada”, diz o decreto estadual que instituiu a consulta.
Todas as reuniões serão realizadas na própria comunidade – que fica nas margens do rio Trombetas, próximo da confluência com o rio Mapuera, em Oriximiná, a mais de 800 quilômetros da capital, Belém. O território quilombola está em processo de delimitação e demarcação. Como há relação de vizinhança e de parentesco dos moradores com populações indígenas – Kaxuyana, Tunayana, Wai-Wai – e até algumas aldeias que ficam dentro do perímetro quilombola, foi aberto prazo de 15 dias para que os indígenas se manifestem sobre o interesse em participar da consulta. O prazo contará a partir da publicação dos procedimentos da consulta no Diário Oficial do Estado.
As deliberações, de acordo com decisão da própria comunidade, terão participação da Associação dos Moradores da Comunidade Remanescente de Quilombo de Cachoeira Porteira (Amocreq) e de todos os moradores que participem das votações e assembléias. O objeto da consulta é o Plano de Utilização e de Desenvolvimento Socioeconômico, Ambiental e Sustentável da comunidade remanescente de quilombo Cachoeira Porteira, proposto pelo governo para gestão de recursos e geração de renda para a comunidade.
As 85 famílias de Cachoeira Porteira vivem da pesca, da extração da castanha, das roças e da produção de farinha. Existe área florestal ainda relativamente preservada, muito rica em castanhais nativos, apesar da presença de mineradoras, madeireiras e sojeiros na região. A empreiteira Andrade Gutierrez chegou a manter uma vila ao lado do quilombo, para os empregados que construíam a continuação da BR-163. A estrada nunca foi concluída. Além dos indígenas, com quem os quilombolas tem relações mais antigas, a partir da ditadura a comunidade também passou a conviver com a Mineração Rio do Norte (extração de bauxita) e, mais recentemente, com unidades de conservação federais e estaduais.
A existência de mocambos de escravos fugidos ao longo da calha do Trombetas é documentada desde o começo do século XIX. O viajante Henri Coudreau, em 1899, fez expedição ao rio Cachorro tendo como guias os quilombolas de Cachoeira Porteira. A Cachoeira chamada Porteira aparece nos meses do verão na confluência dos rios Trombetas e Mapuera. Por isso, foi local estratégico para os escravos fugidos da região assegurarem a liberdade.
“Tomar para si a Porteira significava marcar uma posição diante do sistema escravocrata. A Porteira era um lugar estratégico para os quilombolas, e significou o primeiro “obstáculo para as expedições de captura e punição”. Limitava o acesso aos perseguidores”, diz o antropólogo Emmanuel Farias Júnior, da Universidade Federal do Amazonas. No verão ficava quase impossível transitar, e os que buscavam escravos tinham que esperar o período de chuvas, quando as águas fortes cobrem a cachoeira.