Livro traça panorama da cultura e dos hábitos de índios que são afetados pela construção de Belo Monte
Por Luiz Sugimoto no Jornal da Unicamp
Ao mesmo tempo poético e literal, Riquezas intangíveis de pessoas partíveis é o título escolhido pela professora Vanessa Rosemary Lea para seu livro contendo uma extensa pesquisa sobre os índios Mebêngôkre (Kayapó) do Brasil central. É a primeira etnografia publicada sobre a subdivisão Metyktire, abordando a propriedade intangível (e tangível) e os primórdios da sua transformação diante da disseminação de bens industrializados. Além disso, a obra lançada pela Editora da USP, com o apoio da Fapesp, traça um panorama de propriedade entre um povo ameríndio anterior ao envolvimento do Estado nos processos de patrimonialização de bens culturais indígenas materiais e imateriais.
“Por causa de uma pintura corporal geométrica e deslumbrante, os Me~bêngôkre provavelmente estão entre os povos indígenas mais fotografados do planeta”, observa Vanessa Lea, docente do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. “Mas se encantar com seu belo visual é uma coisa; outra coisa é entender seus princípios filosóficos, a cosmologia, a mitologia, a terminologia de parentesco e a língua. No momento em que esse povo é atingido pela construção da hidrelétrica de Belo Monte, a sociedade deve se conscientizar de que índio não é apenas alguém com cocar de penas e arco e flecha. Por trás dele existe todo um pensamento sofisticado.”
Mestre em estudos latino-americanos pela Universidade de Oxford com uma dissertação bibliográfica sobre os índios Mapuche do Chile, Vanessa Lea ainda vivia na Inglaterra, em 1971, quando leu sobre a resistência dos Mebêngôkre à construção da BR-080, que amputou a porção setentrional do Parque Indígena do Xingu, onde moravam. Ela pôde visitar a reserva depois de conseguir bolsa do governo brasileiro para vir ao país onde acabou fazendo seu doutorado, no Museu Nacional (UFRJ). “Estava atraída pelas atitudes orgulhosas e pelas descrições do agito da vida cotidiana em uma aldeia Mebêngôkre.”
A autora do livro iniciou a pesquisa de campo em 1978 e, até defender a tese de doutorado em 1986, quando já era professora da Unicamp, calcula ter convivido por um ano com os Me~bêngôkre, entre idas e vindas às aldeias. Ela fez viagens posteriores, sendo que as últimas para este livro foram em 2005 e 2009 – outra mais recente, em 2011, será tratada em publicações futuras. “A maior parte do trabalho se deu quando ainda estava na casa dos 20 anos, antes de ter minha filha, que agora está com 24. Somando a estada mais longa durante o doutorado e as viagens mais curtas, foram dois anos de convívio com os Mebêngôkre, observando a enorme complexidade do seu modo de vida.”
Vanessa Lea recorre ao termo “riquezas intangíveis” para fazer frente ao senso comum de que os índios da Amazônia, de uma maneira geral, não possuem riquezas, ao passo que na África vários povos ostentam seus territórios e rebanhos. “Os Me~bêngôkre, de língua Jê, eram vistos como seminômades, que na seca saíam à procura de mel e produtos da floresta, retornando à aldeia no período de chuva. Na década de 1940, pensou-se que eles tinham sido expulsos da floresta por outros povos indígenas, mas viu-se depois que se tratava de um movimento planejado, visando aproveitar tanto os recursos da floresta como do cerrado. Eles transitam entre esses dois ambientes.”
Segundo a antropóloga, riquezas intangíveis são as prerrogativas inerentes ao que chama de “matricasa” ou “Casa” com maiúscula. “As matricasas lembram um pouco os clãs. Elas são localizadas de acordo com o eixo leste-oeste, seguindo a trajetória do sol, e transmitidas da mãe para as filhas e destas para as filhas, numa sucessão que se estica até o tempo mítico. As prerrogativas, como nomes pessoais e adornos usados em cerimônias, são todas transmitidas de geração para geração, no interior da matricasa. E são os homens que devem mudar para a casa da esposa e da sogra, ao contrário do que vemos em outros grupos indígenas.”
As pessoas são “partíveis”, acrescenta a pesquisadora, porque seus nomes e prerrogativas são transmitidos a seus descendentes. “Consequentemente, enquanto a carne dos defuntos se desfaz no túmulo, seus nomes e demais riquezas circulam novamente entre seus herdeiros. Inexiste um culto dos ancestrais porque todos os seus componentes são desmanchados para serem reaproveitados. Iniciei a pesquisa fazendo um censo da aldeia e, como um mebêngôkre nunca deve dizer seu próprio nome, é preciso perguntar como ele se chama a um terceiro. Havia quem tivesse quase trinta nomes – os bonitos, os comuns e os apelidos. É enormemente complexo, pois todos possuem significado. É um significado em metamorfose, devido à polissemia.”
TRANSMISSÃO MATRILINEAR
Os Mebêngôkre também são conhecidos como Kayapó. Na abertura do livro, Vanessa Lea explica a relação deste povo com outros da mesma família linguística. “Há quem pense que todos os índios falam a mesma língua, um grau de ignorância que me choca, visto que existem centenas de línguas indígenas. Também procuro explicar a noção lévi-straussiana de ‘sociedade de casas’, embora Lévi-Strauss tenha pensado este conceito para sociedades cognáticas, como a nossa, onde a família do pai e a família da mãe têm o mesmo peso. No caso dos Mebêngôkre, tudo é transmitido de forma matrilinear, uterina.”
A docente do IFCH considera a questão de gênero interessante, devido à visão que temos das mulheres indígenas submissas e tímidas, que se recusam a conversar com os brancos que vão à aldeia. “Uma coisa é a divisão sexual do trabalho e outra é a importância simbólica do feminino e do masculino. Na literatura clássica, as aldeias eram descritas com as mulheres ocupando a periferia, quando na verdade tudo que acontece no centro da aldeia é determinada pelas matricasas; eles segmentam a propriedade, como se a aldeia fosse uma pizza: cada fatia com seu legado de nomes, prerrogativas, adornos e o direito de criar exclusivamente determinados animais de estimação, que representam uma espécie de totens vivos.”
Entretanto, observando por fora a aldeia circular, as casas parecem todas iguais e não se percebe tais nuances, afirma a autora do livro. “Mas um índio que mora na casa da esposa e que tenha como vizinho um irmão usando o mesmo cocar, vai dizer que os dois são da mesma matricasa. Daí, a Casa com maiúscula, já que a noção não é de habitação. Ela envolve uma ou diversas habitações, que podem ser replicadas em outras aldeias, conforme sua genealogia. A Casa é a instituição mais importante dessa sociedade, o que mostra não ser possível equacionar as mulheres com o feminino; é preciso separar os dois aspectos, como se faz nos estudos de gênero.”
500 PÁGINAS DE MINÚCIAS
Riquezas intangíveis de pessoas partíveis possui quase 500 páginas, sendo que Vanessa Lea utiliza as 100 primeiras para justificar a escolha do grupo e contar como foi feita a pesquisa de campo, a história dos Me~bêngôkre, sua situação territorial, suas subdivisões e os dados censitários. A maior parte do livro, entretanto, é dedicada à descrição das aldeias e da organização social; ao cotidiano envolvendo questões de gênero, artesanato, pintura corporal, distribuição de alimentos, sexualidade, relações familiares, mortos e mitos; à terminologia de parentesco e ao uso e transmissão dos nomes pessoais, com suas implicações sociais; e ao legado material e imaterial das matricasas, entre tantas outras minúcias.
“É um sistema fascinante, digno de Borges. Existe, por exemplo, a ‘dona do ímpar’: se o caçador voltar com três passarinhos, vai ficar com dois e entregar o terceiro para ela”, diz a autora. “Os animais classificados como bonitos são aqueles cuja carne pode ser consumida por todos (homens, mulheres e crianças), como da anta – cada casa é dona de uma porção dessa carne bonita. Todos os enfeites, como um colar de caramujos, têm pingentes de algodão de cores diferenciadas, identificando a casa dos donos. As categorias de parentesco são atribuídas como categorias de sociabilidade. Eu sou ‘filha’ de Raoni, um líder indígena icônico, conhecido internacionalmente por sua oposição à hidrelétrica de Belo Monte. O visual de Raoni é exótico, por causa do grande batoque no lábio inferior, mas para quem se interessa em ver por trás disso, o livro vai ser interessante.”
Vanessa Lea espera que sua obra contribua para que a sociedade reconheça a complexidade da sociedade dos índios, desfazendo a ideia de que eles estão se tornando dependentes dos benefícios do governo, como se fossem pobres coitados. Quanto ao risco que os bens industrializados trazem para essa sociedade, a pesquisadora responde de pronto: “Eu não usava computador até acabar a minha tese, mas continuo a mesma pessoa. Existe esse preconceito de que índio com calça jeans ou celular não é mais índio. Obviamente que é. Simplesmente, eles não estão numa redoma, querem compartilhar os benefícios da nossa sociedade e são fascinados por tecnologia: adoram andar com filmadoras para registrar as suas cerimônias. Isso não interfere na sua identidade indígena”.
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Fotos: Antonio Scarpinetti / Vanessa Rosemary Lea. Divulgação; Edição de Imagens: Diana Melo.
Enviado por Mayron Regis para Combate Racismo Ambiental.