Racismo no futebol: Aranha fez mais pelo negro no esporte do que Pelé e Anderson Silva juntos

Crédito da foto: Ivan Storti/Santos FC
Crédito da foto: Ivan Storti/Santos FC

Peu Araújo* – Vice

Em fevereiro de 2010, o jornalista e gremista Sérgio Xavier levantou uma bola que quica na pequena área até hoje: a postura das arquibancadas do Grêmio. Famosos por seus hinos preconceituosos, os admiradores do tricolor gaúcho alimentam a face mais sórdida do futebol. Não dá para cravar que a intolerância seja uma exclusividade do clube, nem que ele tenha a única torcida racista do Brasil. É inocência (ou omissão) pensar algo desse tipo, mas, ao mesmo tempo, não há como negar que lá naquele estádio existe um ninho de preconceito. O clima de um jogo comum é descrito assim pelo colunista: “Em qualquer jogo de qualquer campeonato, algum setor da torcida puxa um cântico qualquer lembrando que ‘eles’ são os macacos. Negros, gente inferior, o propósito disso tudo. Racismo, com notas nazistas, sempre me tira do sério. Mas, nesse caso, fico profundamente envergonhado quando percebo que o senhor do meu lado está ensinando a seu filho aquele “uh, uh, uh” agressivo. Um pequeno racistinha está sendo formado na Azenha. Boa parte do estádio manda ver nos xingamentos à ‘macacada’’’.

É triste pensar que este texto, escrito há quatro anos, reproduz as mesmas cenas vistas no dia 20 de agosto de 2014 no jogo entre Grêmio x Santos pela Copa do Brasil. Na partida, vencida pelo time paulista por 2×0, parte da torcida gaúcha vociferou contra o camisa um santista com insultos e xingamentos vergonhosamente racistas. Aranha não é o primeiro e, infelizmente, não será o último negro a sofrer preconceito no Brasil. Em fevereiro deste ano, Daniel Cassol e Murilo Basso repercutiram neste mesmo espaço uma publicação sobre o tema a partir dasofensas feitas ao jogador Tinga do Cruzeiro. Mas o que o distingue o goleiro dos outros milhares de atletas negros do país que sofreram preconceito? Mário Lúcio Duarte Costa não se calou e, como se erguesse o punho fechado de um Black Panther, gritou de volta: “Sou preto sim, sou negão sim”. Fez mais. Pediu aos cinegrafistas que mostrassem os rostos daqueles que o agrediam. Fez ainda mais. Foi ao árbitro da partida relatar as ofensas. Fez mais. Saiu de campo levantando a questão. Fez muito mais. No dia seguinte, foi à delegacia registrar um Boletim de Ocorrência contra uma das pessoas que o xingaram, a tal de Patrícia Moreira estampada em todos os noticiários como a racista mais falada do país.

Aranha continua fazendo muita coisa. Na semana passada, voltou ao mesmo estádio e foi hostilizado novamente pelas mesmas pessoas. No lugar de “macaco”, “preto fedido” e outras carícias, ouviu gracejos como “branquelo”, “viado” ou “Branca de Neve”. O que Aranha fez? Falou de novo. E comprovou por A mais B que, sim, temos racismo no futebol. Com o microfone em punho, repórteres pesam a mão atrás de uma aspinha matadora para requentar a polêmica, mas, enquanto a imprensa prepara o circo, o jogador clama por justiça, se esquivando dos golpes cada vez mais baixos dos jornalecos de prontidão para juntá-lo com sua agressora e registrar em superclose o choro forçado da hipocrisia. E reforça ainda o papel dos torcedores em uma partida. A plateia é importante para o espetáculo, mas, quando ela se torna um nascedouro de imbecis, é melhor fechar as cortinas. Cadê a reconciliação? Aranha mete água fria na sopa. “Eu vou abraçar, vou perdoá-la por quê? Porque a imprensa quer explorar isso, ou por que eu realmente quero perdoá-la?”, sacramenta na saída do jogo. “Ir lá abraçá-la, e toca a música e tudo mais. Aquela cena toda – e só depois dos comerciais. Isso aí pra mim não adianta, não quero.”

Aos 33 anos, o mineiro de Pouso Alegre, cidade distante 115 quilômetros de Três Corações, fez mais pelo esporte do que Pelé, Anderson Silva ou qualquer outro negro no Brasil. Curiosamente, o Rei do Futebol – e das aspas estúpidas – foi contra a postura de Aranha. Edson Arantes do Nascimento, durante uma coletiva de imprensa, abordou o tema com um sorriso amarelo no rosto escuro. “Acho que o Aranha se precipitou um pouco em querer brigar com a torcida, porque, se eu fosse parar o jogo ou gritar desde quando eu comecei a jogar na América Latina, aqui no Brasil, no interior, cada vez que me chamassem de macaco, de crioulo, aí todo jogo tinha que parar”, revela o poeta preferido do Romário. Pensa bem: se no dia 19 de novembro, data do seu gol número mil, Pelé tivesse erguido o punho para falar no negro do Brasil, talvez hoje outros atletas não passassem por constrangimentos desse tipo. Pelé foi omisso à sua raça. Em sua trajetória, exibe retratos ao lado de Nelson Mandela e Muhammad Ali, mas seu discurso e alienação são comparáveis às esquivas de Anderson Silva sobre o mesmo tema. Dois ídolos negros, dois homens que repercutem seus dizeres pelo mundo todo preferem se calar diante do racismo. Ou pior, como neste caso de Pelé, preferem colocar panos quentes na questão.

Aranha colocou o tema nas conversas de boteco, nas salas das casas brancas, negras, pardas, mulatas e mamelucas do país. Colocou o racismo em debate. Ele não podia prever que a Fátima Bernardes usasse uma tática comum a canais menores e levasse a agressora ao seu sofá matinal. Não podia prever que a mesma mulher que o chamou de macaco saísse na imprensa com seu rostinho choroso falando que quer ser símbolo nacional contra o racismo. Aranha não tinha como prever também o bom artigo escrito pelo humorista Helio De La Peña em sua defesa. Também não podia prever a ignorância do escritor-que-ninguém-lê Eduardo Bueno, conhecido como Peninha. No programa Extraordinários, do Sportv, o camarada gremista chama o goleiro de escroto e sai com essa pérola da cartola: “Ela pediu perdão e ele não deu. Pra mim, (o Aranha) é um merda que nunca ganhou nada”. A esse respeito, vale dizer algumas coisinhas. No currículo do goleiro, há um Campeonato Mineiro com o Atlético, e com o Santos são dois Campeonatos Paulistas, uma Libertadores e uma Recopa Sul-Americana.

Voltando. Nós também não podíamos prever que a torcida do Grêmio definitivamente tinha mexido com o cara errado. Dono de um discurso embasado, Aranha está pronto pro combate e disposto a levar até o final o processo. Isso sem falar que nos dois jogos entre Grêmio x Santos ele foi destaque com grandes defesas. Em entrevista exibida no Fantástico dias depois do primeiro incidente, o goleiro mostra mais uma vez o quanto está preparado para a treta. Com aquele gostinho amargo que muita gente não quer ver, Aranha segue a teoria do “Um Por Amor, Dois Por Dinheiro”. “A gente vale o que tem ou o nome que tem. Eu sei que, muitas vezes, eu não sou aceito; eu sou tolerado, porque sou goleiro do Santos, bicampeão mundial. E porque eu tenho um carro bonito, porque eu compro isso, eu compro aquilo. Então muitas vezes eu sou tolerado, não sou aceito. Eu já morei em prédio – isso a minha família tá de testemunha – em que não me davam nem bom dia. Eles não aceitavam o fato de eu tá morando no mesmo prédio que eles.” Pera lá, muita calma, ladrão. Não é isso que as câmeras querem filmar. E, enquanto mais o goleiro fala, mais indigestas ficam suas palavras. E ele continua tratando do assunto com a seriedade que merece. “Eu tive a felicidade de aprender muito com o rap, porque esse pessoal, como sempre, foi um pessoal sofrido, acusado e agredido; é um pessoal bem informado sobre política, sobre religião, sobre a sua história, a história do seu país. Como na periferia a gente ouve muito isso, porque é o que tá na nossa realidade, eu cresci preparado pra esse tipo de situação. Por isso, eu não chorei, não fiquei abalado. Eu expus a minha revolta, fiquei com muita raiva, mas eu sabia que eu tinha que ser mais inteligente do que aquele povo.” E desanda a dar aula de história ao Brasil. “Pra muita gente, os bandeirantes são heróis. Você vê nome em pontes, em rodovias e em tudo mais. Aí você pergunta: ‘Você sabe o que foi um bandeirante?’ Muita gente nem sabe…. Ah, que a Princesa Isabel libertou os escravos. Mas a gente foi o último país. Eu acho que assinou, porque, se não assinasse, o bicho ia pegar. Não tinha mais como, já tinha quilombo com mais de 30 mil pessoas. São muitas informações que não ensinam na escola.”

Infelizmente Aranha ainda é uma ilha cercada de acomodados por todos os lados. Não será a campanha da CBF dizendo que “somos iguais” que vai mudar o quadro do racismo no futebol brasileiro. Não será a campanha publicitária com bananas, macacos e marketing que vai resolver o racismo no esporte. Serão atitudes como a do camisa um santista. Que ouviu, reparou e apontou o dedo para o quem o ofende. Aranha merece um busto na Vila Belmiro, mas ele não quer circo: quer justiça. E está correndo atrás disso.

*Santista, sente orgulho do goleiro do seu time.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.

Comments (1)

  1. Muito oportuno o texto do Peu Araújo. Concordo quase integralmente. A exceção se deve à menção do nome de Anderson Silva como esportista, ao lado de Pelé. As declarações do “rei” são mesmo um desastre, o Romário tem razão, mas como jogador excepcional ele honrou o esporte brasileiro e mundial. Sobre Anderson Silva não tenho muitas informações. Sei apenas que é um vitorioso praticante de certo tipo de luta em que dois homens – e agora também mulheres – se esmurram e se chutam até que um desista ou seja considerado incapaz de prosseguir pelo “árbitro”. O desfecho ocorre, não raro, por conta de uma fratura ou, pelo menos, muitos hematomas, sangue escorrendo, dentes quebrados, coisas assim. Para delírio de uma plateia embevecida que urra de prazer diante de cenas como essa. Por mais bobagens que diga, o esportista Pelé não merece estar junto com um desses tipos que se esmurram por dinheiro.

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