Comissão Pró-Índio de São Paulo: não demarcação de terras gera violência e insegurança

Indígenas brasileiros sofrem com paralisação nas demarcações. Foto: Comissão Pró-Índio de SP
Indígenas brasileiros sofrem com paralisação nas demarcações. Foto: Comissão Pró-Índio de SP

Paulo Emanuel Lopes, Adital

Para o cientista social Otávio Penteado, assessor de programas da Comissão Pró-Índio de São Paulo, está claro que a lentidão dos processos de demarcação de terras indígenas atualmente no Brasil se dá por conta de interesses políticos envolvendo o governo federal e a bancada de parlamentares proprietários de grandes terras no Congresso, os chamados ruralistas.

O problema é que a demora em atender a essa demanda, constitucionalmente assegurada aos indígenas brasileiros, vem provocando uma onda de violência e insegurança no campo. “O ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo] falou, claramente, durante as manifestações que ocorreram recentemente em Brasília [Mobilização Nacional Indígena], que eles estão segurando as demarcações de terras para evitar conflitos, quando a situação deveria ser vista de modo contrário. Quando você decide não demarcar você gera insegurança tanto entre as populações indígenas quanto entre proprietários de terras.” Leia a entrevista:

Para Otávio Penteado, lentidão em demarcações tem interesses políticos
Para Otávio Penteado, lentidão em demarcações tem interesses políticos

Adital: Como chegamos a esse quadro preocupante de violência envolvendo os índios brasileiros?

Otávio Penteado: Os atuais conflitos a que estamos assistindo, seja no Mato Grosso, em Alagoas, na Bahia ou aqui em São Paulo, não se tratam de questões pontuais relacionadas a essas regiões, mas um problema geral no país. Não estamos mais regularizando terras indígenas no Brasil e, quando se faz, segue um ritmo muito devagar. Você vai vendo os números e fica bem claro como o governo parece decidido a não dar mais áreas para as populações indígenas, favorecendo, exatamente, as pessoas que estão causando esses conflitos. Coloca-se muito a culpa nos índios, dizendo que eles estão querendo mais terras, mas o problema é o oposto. Quando você não dá andamento ao processo de regularização dessas áreas, você cria uma situação de insegurança para ambos os lados.

Adital: É exatamente a falta de regulamentação que está causando os conflitos?

OP: Exatamente. Se há conflitos, você tem que procurar resolver o que for possível, depois da demarcação da terra. Nesse novo modelo de regularização das terras indígenas, desde o começo, já são consultados todos os órgãos para saber qual a posição deles em relação à regularização fundiária e, muitas vezes, esses órgãos não têm uma posição muito a favor dessas populações. Para você ver, aqui no Estado de São Paulo, a última terra foi homologada há 16 anos. Os processos estão acontecendo, mas de um modo muito devagar.

Adital: Essa é uma posição formal da FUNAI [Fundação Nacional do Índio], de que as demarcações de terras indígenas e quilombolas devem ser paralisadas no Brasil?

OP: O ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo] falou, claramente, durante as manifestações que ocorreram recentemente em Brasília [Mobilização Nacional Indígena], que eles estão segurando as demarcações de terras para evitar conflitos, quando a situação deveria ser vista de modo contrário. Quando você decide não demarcar, você gera insegurança tanto entre as populações indígenas quanto entre proprietários de terras. Como você não regulariza, eles [indígenas] estão tendo que voltar para esses espaços que ocupavam e foram expulsos, enfrentando gente muito poderosa – tanto politicamente quanto economicamente –, sem nenhum respaldo do governo.

Adital: Nos dê um exemplo de uma regularização fundiária que pôde ter alcançado a paz para os dois lados.

OP: Um exemplo claro é difícil de dar porque o comum, infelizmente, é que o conflito permaneça de alguma forma, mesmo depois da regularização. Mas, pelo menos, você passa a ter um respaldo, a população [indígena] passa a ter mais segurança. Aqui em São Paulo, tem uma área na região de Peruíbe, que passou por um conflito muito grande. Ali, havia uma mineradora, que funcionou até 2007, e o proprietário daquele espólio envolveu-se em conflitos violentos com a população indígena. Com a regularização, a mineradora teve que parar suas atividades, os indígenas conseguiram ter um maior controle sobre a terra, sobre a entrada de estranhos na área… O processo ainda não chegou ao final, mas só esse reconhecimento já gerou uma segurança muito maior para eles e levou a uma diminuição drástica dos conflitos. Essa área de Peruíbe fica muito próxima à cidade, então, tem muita gente entrando naquela área em todo momento. Os problemas continuam, tem pessoas que derrubam as placas, não aceitam a presença da população indígena, mas todo esse processo pacificou a situação. Eles então ficam livres para tomarem outras decisões sobre como podem viver, como deve ser a vida pra eles… Aqui em São Paulo [capital] mesmo, a gente tem comunidades em Parelheiros [extremo sul da capital], onde a área identificada é uma das menores do Estado de São Paulo. Eles estão conseguindo ocupar alguns espaços, mas o clima ainda é de insegurança. Quando você demora, a impressão que se tem é que você nunca chega ao final do processo, dificultando a garantia de segurança para essas populações.

Adital: Como foram os casos de violência em Peruíbe?

OP: São casos que, digamos assim, não são como em Mato Grosso, que tem a particularidade da área deles. Aqui em São Paulo, as áreas indígenas estão muito próximas das áreas urbanas, então, há muito o problema da entrada de gente desconhecida e, quando vai se questionar com essas pessoas, há violência. Imagine as pessoas passando dentro das áreas indígenas de carro! Existe uma rodovia que corta a terra de Peruíbe ao meio [Rod. Pe. Manuel da Nóbrega], e já tivemos caso de óbito indígena por atropelamento. É uma região de litoral, as pessoas pilotam moto nas praias, onde as crianças andam livremente. Ali, é uma área de turismo e as pessoas entram na terra indígena com esse propósito. Proprietários que estão sendo retirados da região resistem, chegando a agir violentamente. A regularização da terra é muito importante, mas tem que haver outras ações em conjunto, como um acompanhamento policial no começo.

Adital: Ainda tendo Peruíbe como exemplo, como fica a manutenção da cultura tradicional daquele povo diante da proximidade com a cidade? A mineradora deve ter deixado um grande prejuízo ambiental…

OP: Essa questão é, inclusive, um dos trabalhos que estamos fazendo na região, que é a recuperação ambiental. Esse processo já vinha acontecendo, a mineradora foi obrigada a revitalizar aquela área por conta da legislação da mineração, apresentou um plano de recuperação, só que tudo foi feito sem considerar a presença indígena. Quando a gente foi questionar a FUNAI sobre o caso, o órgão, simplesmente, não tinha conhecimento. O plano de recuperação havia sido aprovado pelo IBAMA [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis], e não foi um processo para os indígenas serem consultados ou para a FUNAI participar, todos pensando a recuperação.

Adital: Então, atualmente, o Plano de Recuperação [de Peruíbe] está parado?

OP: Ele está aprovado, mas há um acordo entre os órgãos para que haja participação indígena. Estamos num momento de discussão interna nas aldeias para entender o que eles querem fazer, como eles querem recuperar.

Quanto à cultura, aquelas aldeias, realmente, são muito próximas à cidade. São cinco [aldeias], uma está ao lado da cidade, outra está bem próxima, então, no caso deles, o maior problema é você não ter controle sobre quem entra em sua terra. Mas, ao mesmo tempo, o espaço urbano é importante. Eles circulam pela cidade, conhecem pessoas de lá, alguns trabalham, mantendo todo um modo de viver. Não é a presença deles na cidade ou a degradação ambiental que destrói isso. Há uma atividade cultural muito forte, uma religiosidade tupi-guarani que eles mantêm de geração a geração, mesmo utilizando celular, tendo televisão em casa. Não é isso que os vem tornando menos indígenas.

Adital: A vida na cidade e a vida na comunidade, uma coisa não excluiria a outra.

OP: Sim. Claro que há os impactos, não dá para você falar que não porque há. Mas também não dá pra dizer ‘ah, viveu na cidade então não é índio’. Aqui em São Paulo, temos as comunidades de Parelheiros [extremo sul da capital], com indígenas que nunca saíram da aldeia, apesar de estarem muito próximos à cidade. Existe uma questão familiar muito forte, uma cultura, um modo ‘correto’ de viver, que é típico deles, que os une [como grupo]. Temos, inclusive, índios que moram na cidade de São Paulo, não aldeados, mas que mantém suas atividades culturais. Nesse caso, eles optam por viverem próximos uns dos outros. Existe toda uma discussão de como dar assistência a esses índios que vivem na cidade, mas essa é uma discussão muito mais complexa.

Adital: É possível, juridicamente, você proibir o tráfego de pessoas até a finalização do processo de regularização?

OP: Não é proibir, é possibilitar que os indígenas tenham um maior controle sobre a passagem de pessoas por ali. A área é deles, você não pode entrar sem consultá-los. Eles acabam tendo que fazer alguma coisa, como lombadas na estrada, por eles mesmos.

Adital: Como está o processo de regularização de terras indígenas no Estado de São Paulo?

OP: Temos 29 terras pelo menos com a regularização iniciada, 12 são terras homologadas e 17 em que o processo ainda está acontecendo. Temos ainda 14 que estão em processo de identificação da área, destas uma identificada e duas declaradas, que estão um pouco mais avançadas. As identificações vêm acontecendo desde 2007, 2010, grupos de trabalho foram criados para identificar essas 14 terras, mas, desde lá, não há resultado. Já perguntamos, oficialmente, à FUNAI como estão os processos; a posição oficial é que estão sendo analisados, mas é um processo muito longo. Perguntamos, oficialmente, à FUNAI também quais outras terras estão demandando esse processo de regularização, e nos disseram que, além dessas, há 16 que nem tiveram o processo iniciado. Essa consulta foi no ano retrasado (2012), então pode ser que haja até mais terras aguardando o início do processo.

E seguem os conflitos. Há o problema com a terra do Jaraguá, que é a menor terra indígena do Brasil, um lugar onde moram mais de 500 pessoas, muita gente. 1,75 hectare não é nada se estamos falando de necessidades de caçar, plantar… O processo vai aumentá-la para 500 [hectares], que é uma área bem melhor, mas que nunca, realmente, será o ideal se formos parar pra pensar. Eles estavam com um mandado de reintegração de posse de uma área que tinham ocupado próximo ao Pico do Jaraguá [zona oeste da cidade de São Paulo], e conseguiram a suspensão com uma manifestação em frente ao Tribunal Regional Federal [em julho deste ano]. Você vê, é esse tipo de insegurança que se cria quando se decide não regularizar as terras.

Adital: A Constituição diz uma coisa,mas na prática estamos vendo outra. Como a Comissão Pró-índio entende essa dicotomia?

OP: A Constituição exige um tempo muito menor do que o que está acontecendo, atualmente, para a regularização das terras. Há um desrespeito à lei, deveríamos atender a todas as populações que demandam. Mas a questão é essa, há uma decisão institucional do governo em não fazer as demarcações. Há uma informação clara de cerca de 30 processos que estão parados sem nenhum motivo judicial. Tem casos que estão parados por motivos mais complexos, mas que, de qualquer forma, também não se justificam, o que não é o caso desses. Dos 30 há processos de terras que estão no Ministério da Justiça já para serem declaradas, só falta assinar o decreto, e não é feito. E, como já disse, segundo o Ministério [da Justiça], não haverá demarcação para ‘evitar conflitos’.

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