Na real: Índios do Xinane foram vacinados, mas continuam sob risco de contrair doenças

O médico Douglas Rodrigues na Base do Xinane da Funai (Foto; arquivo pessoal)
O médico Douglas Rodrigues na Base do Xinane da Funai (Foto; arquivo pessoal)

Kátia Brasil, Amazônia Real

A agência Amazônia Real lança nesta segunda-feira (25) o espaço “Na Real”. O espaço traz depoimentos dos personagens das reportagens de grande repercussão no site. A primeira narrativa é do médico Douglas Rodrigues, que participou do contato com o “povo do rio Xinane” no Estado do Acre. O médico revela que dos 24 índios que vivem agora na base da Funai (Fundação Nacional do Índio) na fronteira com o Peru, 22 foram vacinados, mas não estão totalmente imunizados, podendo ainda contrair várias doenças.

O médico Douglas Rodrigues é do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele coordena a Unidade de Saúde e Meio Ambiente, onde é desenvolvido há 49 anos o programa de extensão da universidade em saúde indígena Projeto Xingu. No Parque Indígena do Xingu, no norte do Estado do Mato Grosso. O projeto apoia o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) atendendo 16 etnias, algumas de contato recente. O Dsei é um órgão da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.

POR DOUGLAS RODRIGUES

“Quando comecei a trabalhar com saúde indígena no Parque Indígena do Xingu, em 1981, a maioria das 16 etnias que ali viviam era de recente contato: Ikpeng, Kamaiurá, Yawalapiti, Kuikuro, Kalapalo, Wauja, Trumai, Yudjá, Kisêdjê, Metuktire, Panará, Matipu, Nafuquá e Kawaiwete. Os Panará, por exemplo, haviam sido contados em 1973 e transferidos para o Xingu em 1975. Desde então vêm sendo acompanhados pelo Projeto Xingu. Eu os acompanho até os dias de hoje. Estive também, a convite da Funai, no contato com os Zo’é, no Pará, entre 1988 e 1989. Nesse trabalho fizemos uma parceria como o Projeto Saúde e Alegria de Santarém (PA). A estrutura que foi montada persiste até hoje e, como a que foi montada no Xingu, pode servir de modelo para a situação atual de contato com o povo do Xinane.

Fomos convidados pela Sesai, com a anuência da Funai, para colaborarmos na assistência à saúde do grupo de indígenas que havia feito contato na aldeia Simpatia, no Alto Envira, em junho passado. Encontramos um grupo de cinco homens e duas mulheres, com idades entre 12 e 20 anos. Todos tinham adquirido infecção respiratória aguda, que não é a mesma coisa que gripe e sim de um resfriado comum, de menor gravidade. Todos foram tratados até ficarem curados e, portanto, sem possibilidade de transmissão da doença. Em seguida retornaram dizendo que iam trazer o restante do grupo, o que aconteceu há três semanas. Assim, no início de agosto, fomos novamente chamados pela Sesai para colaborar, desta vez, por conta da chegada de um grupo maior, que no total somavam, até o dia 16 passado, 24 pessoas.

Examinei todas as pessoas individualmente, com auxílio do Dr. Rafael Sacramento, médico lotado no Dsei Ceará, da Sesai. São nove mulheres e 15 homens, com idades que variam entre 2 e 50 anos aproximadamente (as idades são presumidas já que não há registros de nascimento). Não detectamos nenhuma grávida entre as mulheres (pelo menos com uma gravidez detectável ao exame físico da região abdominal). Por razões óbvias, não fizemos exames ginecológicos nas mulheres.

A preocupação de José Correia (sobre a permanência dos índios na base da Funai) é correta. Quando saí do Xinane, há uma semana, o grupo estava derrubando um tabocal que fica bem em frente à base, dizendo que ali plantariam uma roça. Também ouvi conversas de fazerem uma casa grande um pouco mais abaixo, porém perto da base. Isso significa que talvez eles pretendam ficar por lá, pelo menos por um bom tempo. O risco de contágio (de doenças) vem de duas fontes principais:

1. Os indígenas que compartilham o território. Nesta última viagem recebi uma criança indígena, em estado grave, portadora de uma infecção respiratória aguda e, possivelmente, uma má-formação cardíaca. Tive que mantê-la na base, em tratamento, durante dois dias e três noites, até que fosse removida para um hospital em Cruzeiro do Sul, pelo helicóptero que trabalha para a Sesai. Os ashaninka da aldeia Simpatia (distante duas horas da base) e de outras aldeias Envira abaixo, relatam que ficam muito isolados e que equipes de saúde só chegam nas aldeias uma ou duas vezes ao ano, permanecendo por poucos dias. É de se esperar que, com uma equipe de saúde no Xinane, os vizinhos busquem socorro na base. E nós, profissionais de saúde, não temos como negar a assistência, é uma questão humanitária, ética. Eu penso que, se o acesso a serviços de saúde para o pessoal do entorno da Base do Xinane não melhorar significativamente, eles continuarão procurando socorro na base e, doentes, serão um foco de contágio permanente para o grupo de isolados. Isso seria o pior dos cenários e poderia acarretar em sérias consequências para a saúde do grupo. A Sesai deverá estabelecer, a curto prazo, um plano de trabalho para essa situação, cujo detalhamento deverá contemplar, preferencialmente, as ações nas comunidades do entorno. Os isolados, se assim permanecerem, não demandarão assistência.

2. Os trabalhadores da Funai e da Sesai, visitantes etc, que se alternam na Base do Xinane podem trazer consigo doenças contagiosas, em especial a gripe, que é, historicamente, a principal causa de morte entre indígenas de contato inicial. Sem contar a hepatite A, a malária, varicela etc. Essas pessoas precisam fazer uma quarentena e exames antes de entrarem em contato com os isolados.

A equipe da Frente de Proteção do Envira, da Funai, tem conversado com os indígenas diariamente, durante longos períodos, num processo lento de qualificação de informações, no qual os intérpretes e assessores indígenas como o José Correia são peças-chave. O quadro vai se alterando e, como compondo um imenso quebra-cabeças, os cenários vão se configurando. Existem outros grupos isolados na mesma região. A Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai tem essas informações há vários anos. Os indígenas recém contatados relatam que existem brigas entre eles. Relatam também que são constantemente perseguidos e mortos por brancos, numa reedição das “correrias” tão comuns no início do século passado na região. Eles estão, sim, com muito medo e disseram que há muito tempo vem procurando os ‘parentes’ no Envira para fugirem desse massacre em curso na região da fronteira. Relatam também muitas mortes por doenças como febre, tosse e diarreia. Ao que tudo indica, é um grupo de sobreviventes. Seu isolamento nada tem de voluntário, como dizem alguns documentos oficiais.

A enfermeira Evelim vacina um índio do “povo Xinane” (Foto: Douglas Rodriguess)
A enfermeira Evelim vacina um índio do “povo Xinane” (Foto: Douglas Rodriguess)

Nós vacinamos 22 dos 24 indígenas que estavam na Base do Xinane. Vacinamos também todos os integrantes das equipes da Funai e Sesai. Não vacinamos contra a varíola, pois essa doença está erradicada. Quanto à poliomielite, optamos por vacinar em um segundo momento por conta das condições de saneamento da base, que ainda não tem um local adequado para o destino dos dejetos.

Quando se inicia a vacinação de um grupo de pessoas (adultos e crianças) nunca vacinados anteriormente, é necessário estabelecer um calendário vacinal que priorize as doenças mais importantes. O grupo foi, então, vacinado contra: sarampo, rubéola, caxumba, difteria, tétano, coqueluche (somente as crianças menores), varicela, hepatite A e hepatite B, hemophilus (provoca meningites somente as crianças menores), influenza (gripe) e HPV (mulheres maiores de 9 anos de idade). Não foram vacinados, desta vez, para febre amarela porque há contraindicação de administrar essa vacina simultaneamente à de sarampo. Optamos pelo sarampo por ter maior potencial epidêmico, que cursa geralmente com alta mortalidade. Também não foi possível vacinar contra o Pneumococo por falta de vacina específica. Quanto à vacina contra tuberculose, nosso planejamento inicial era fazer o teste de PPD (que indica se a pessoa teve contato com a doença) em todos antes de vaciná-los. Isso não foi possível fazer desta vez, por falta do PPD.

É importante entender que o grupo foi vacinado, porém as pessoas ainda não estão imunizadas. Isso porque algumas vacinas, como a hepatite B, o tétano, a difteria, a coqueluche entre outras, necessitam de pelo menos 3 doses com intervalo mínimo de 30 dias entre elas para que a pessoa fique imunizada. Pelo menos mais duas campanhas deverão ser feitas nos próximos meses, para que possamos afirmar que estão protegidos.”

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Elaíze Farias.

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