O teatro e a criminalização da luta popular em Belo Monte, por Claret Fernandes*

*para Combate Racismo Ambiental

A Militante, ainda inocente, recebe a Peça como um prêmio. Repara-a, inicialmente. Folheia-a. Passa os olhos, numa leitura dinâmica. Pousa a vista aqui e acolá, e corre os seus sete capítulos, bem concatenados, e lhe fica a ideia de uma peça teatral à moda Mocinho e Bandido. O Mocinho é a Norte Energia, denominada apenas de Autora, e o Bandido seria o MAB, colocado como Réu.  

As cenas se passam na cabeça de advogados que recebem rios de dinheiro para construir a ‘verdade’ da empresa. Eles não medem esforços; abusam da criatividade, com narrativas fantásticas em torno da Norte Energia, pintando-a de deusa na Amazônia, destacando-lhe o caráter público numa iniciativa privada, demonstrando, inclusive, que um atraso na barragem de Belo Monte seria um imenso prejuízo para o Brasil, cujo povo, na cabeça fantasiosa dos advogados, atiçada por gordos salários, aguardaria ansioso a energia da hidrelétrica.

Após exaltar seus intentos, tidos por legais, a Norte Energia é apresentada como vítima de uma armação terrível que estaria sendo orquestrada pelo MAB. Nesse item, o enredo se assemelha ao de filme policial. Quem vê a Peça, bem articulada, embora pudesse incluir-se no gênero da ficção energética, imagina ser mesmo tudo verdade; e começa a torcer pelo Movimento, já que ele, embora com o papel de Bandido, aparece com uma tarefa hercúlea, de um ratinho contra um Leopardo. Os argumentos são fartos e fantásticos, procurando demonstrar, por todos os meios, que a Norte Energia, um conglomerado de grandes empresas construindo a 3ª maior hidrelétrica do mundo em capacidade instalada, estaria sendo ameaçada, realmente.

Como reforço à tese de vítima, seguindo a lógica do Mocinho contra o Bandido, faz-se um farto levantamento de literatura para corroborar o argumento principal de que o MAB seria o inimigo perigoso. Recorre-se a fotos de militantes, recortes de jornais, Site do próprio Movimento. Levantam-se supostos fatos tidos como criminosos ocorridos no Sul do Brasil, em Tucuruí, em Altamira. O mesmo esforço para se traçar a epopeia exitosa da Norte Energia aplica-se, agora, para destroçar o Movimento.

A Militante, enquanto lê a Peça, vai refletindo na onda de criminalização das lutas sociais em todo o Brasil. O caso mais recente, sobejamente divulgado na grande mídia, em seus horários nobres, vem do Rio de Janeiro, com jovens classificados de terroristas. Ela pensa ainda nos conflitos em Israel, quando, em nome de ameaças terroristas, o povo palestino vem sendo dizimado. Israel, ali, funciona como um braço imperialista, claramente apoiado pelos Estados Unidos.

Em meio a ideias fantasiosas, algumas infantis, a Peça constrói uma ‘verdade’ a seu modo, remendada ponto por ponto, e explicita o seu objetivo: ganhar a proteção da Justiça para desobstruir, de vez, o seu caminho.

Um olhar atento vê algo de arrogante e prepotente nessa busca de socorro, quando a Norte Energia quer ensinar a Justiça a fazer justiça, orienta-a a pedir reforço policial pela suposta periculosidade dos réus e buscando convencê-la de que deve aplicar multa de 50 mil reais por dia se os réus se aproximarem de suas áreas – ou áreas utilizadas por ela, como estradas -, que são muitas em Altamira e no seu entorno.

Pior! A empresa se atreve a julgar e condenar os réus, sumariamente: ‘… os réus SEMPRE impedem o exercício de direitos constitucionais da autora, afetando diretamente a liberdade de locomoção de seus funcionários, colocando em risco os trabalhos para a manutenção e construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte, atentando claramente contra a sua posse, cabendo ao Poder Judiciário impedir prontamente suas ações’ – p. 12.

Apesar do enredo teatral, ilusionista, a Militante vê, por fim, que a Peça é um Interdito Proibitório, resquício da Ditadura, contra o povo organizado no Movimento dos Atingidos por Barragens, que luta por seus direitos. É a tentativa de criminalização das lutas populares.

A Peça, no seu todo, não resiste ao teste da verdade e não suporta uma boa crítica literária. Mas isso não importa à empresa. Ela sabe que o que conta mesmo nesse tipo de teatro não é o conteúdo da Peça e sua arte. Do lado dos opressores, conta a força bruta, na sutileza da lei ou do fuzil, com a ajuda de uma canetada da Justiça. Do lado dos oprimidos, o que conta é a habilidade dos artistas populares, capazes de agir em qualquer conjuntura para organizar o povo e mudar a correlação de forças, hoje desfavorável. É isso que determinará o desfecho final. É isso que empresa teme.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.