É ação suicida das instituições jurídicas a aceitação passiva do crescimento do Estado policial
Em Sem Juízo
Quando os primeiros pontos fora da curva começaram a ser bordados no julgamento da ação penal 470, não foram poucos os que silenciaram. À direita e à esquerda houve quem até se regozijasse com interpretações draconianas apenas por ressentimentos ou proveitos eleitorais.
Quando a reação desproporcional a manifestações prenuncia a abertura de portas demasiadamente amplas ao Estado policial, o silêncio, quando não a cumplicidade, envolve muitos que prioritariamente vinham sendo objeto dos protestos, em especial autoridades de governos supostamente distintos e distantes.
O buraco negro do processo eleitoral liberta os mais primitivos instintos, por meio dos quais interesses sobrepõem-se a princípios e a política, por paradoxal que possa parecer, contribui fortemente para aniquilar conceitos primários da democracia.
Afinal, Estado policial nos outros é refresco.
Nem se pense que a equação que envolve o mais rudimentar dos corporativismos se limita à política partidária.
Já faz tempo que a porção predominantemente conservadora do aparato judicial tem recorrido ao senso comum do crescimento da criminalidade para justificar um maior rigorismo penal, baseando-se no sentimento fortemente difundido pelos meios de comunicação, que, como se sabe, elegem o assunto como a prioridade de suas telas e páginas.
Dos programas policialescos aos editoriais retumbantes, a criminologia midiática, como denomina Raúl Zaffaroni, vem sendo o principal catalisador das novíssimas interpretações no direito, ainda que nem tão jurídicas assim.
Quando se dirige ao próprio Judiciário, todavia, a mídia é, enfim, reputada por seus membros como fortemente sensacionalista, por expor as mazelas dos juízes na superfície, no exagero e na seletividade –como faz, aliás, com tantas outras vítimas.
Há uma certa ação suicida das instituições jurídicas na aceitação passiva do crescimento do Estado policial e da ideia nela embutida de jurisdição popular –tão cara, por exemplo, ao também popular ministro Joaquim Barbosa.
É que ouvir a voz das ruas em um julgamento criminal só mostra o quanto juízes e promotores podem ser dispensáveis.
O Estado policial cresce com uma contribuição inestimável do Judiciário –mas certamente prescinde dele. Ou vai ultrapassá-lo, se necessário –como ocorria com as prisões da polícia nazista, mesmo após absolvições em julgamentos.
O pretexto para o alargamento das punições, o esgarçamento das formas, a contínua antecipação de tutela e o estabelecimento do próprio processo como punição, sempre recai sobre alguma espécie de terror.
Como bem iluminou Mia Couto, em uma conferência de sete minutos em Estoril que ensina mais do que décadas de doutrina penal: “Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. (…) Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade”.
Continua o escritor moçambicano: “O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.”
A exacerbação do medo tende, então, a corroer os limites, que são a própria razão de ser do direito penal, controle social cujo respeito inalienável às formas é o que o separa, nem sempre com linhas nítidas é verdade, da pura selvageria.
O Estado policial amputa limites gradualmente, algumas vezes com estardalhaço, outras de forma silenciosa, mas quase sempre num contínuo avançar que, aos poucos, esquece das fronteiras até então traçadas.
Nada gratuito, nada à toa.
Sempre haverá uma justificativa contundente, um insano que espalha a peste negra pelas noites, o comunismo que destrói a família e o Estado, o fundamentalista que é inimigo do direito, o traficante, o adolescente, o manifestante etc.
A falsa promessa de alcançar a todos os crimes, a urgência em evitá-los, a ânsia em impedir com prisões que futuros autores se apresentem, estarão nas cartas-programas daqueles que primeiro se voluntariam para limpar a banheira, mas que não temem jogar o bebê junto com a água do banho.
Como o exemplo norte-americano, cuja guerra ao terror destroçou, com prisões sem processos de Guantânamo e o Patriot Act, o que ainda restava de sua antiga democracia liberal. Uma sociedade que, como traduz Jonathan Simon, professor da Universidade de Berkeley, passou a ser governada em função do crime e substituiu o cidadão e o consumidor pela vítima como seu principal paradigma.
Num episódio da segunda temporada do seriado Homeland, um deputado suspeito vocifera contra a prisão incomunicável em que é mantido por agentes da CIA, sem ordem judicial. “Eu sou um congressista e vocês não podem fazer isso”, grita ao investigador que lhe responde de bate-pronto: “Graças a você e seus colegas, podemos sim”.
Mais hora, menos hora, a ficha cai. O Estado policial atinge a todos.