Por Renato Santana, Assessoria de Comunicação – Cimi
Tão logo retomaram mais um naco de terra tradicional do tekoha – lugar onde se é – Passo Piraju, nesta última segunda-feira, 28, o acampamento de oito famílias Kaiowá erguido no local passou a ser atacado por homens armados. “Atiram sobre nossas cabeças. Pá, pá, pá, pá. A gente fica com medo, mas reza e não sai”, diz um dos indígenas presentes na área reocupada. No Mato Grosso do Sul, este é o “olá!” de fazendeiros antes do início de qualquer mesa de diálogo.
Lideranças indígenas da Aty Guasu, a grande assembleia Guarani Kaiowá, pedem proteção aos Kaiowá de Passo Piraju. Com a retomada desta segunda, os Kaiowá ganham um pouco mais de espaço – não sabem ao certo o tamanho da terra recuperada – e inserem mais um episódio na história de uma luta emblemática pela terra Guarani Kaiowá travada numa das regiões mais violentas do estado.
Passo Piraju fica às margens do rio Dourados, entre os municípios de Dourados e Laguna Carapã, região de Porto Kambira. Os Kaiowá ocupavam cerca de 20 hectares, retomados a partir de 2004, e mantidos com a típica resiliência do povo entre fazendas de soja e cana, tiros de pistoleiros, criminalização de lideranças, além de sucessivas tentativas de reintegração de posse – a última teve um desfecho positivo aos Kaiowá no ano passado.
A retomada é apenas mais um importante passo entre tantos que precisam ser dados para que os Kaiowá voltem a viver no território de onde foram expulsos na primeira metade do século 20. Fazendeiros incentivados pelo governo federal e apoiados pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) chegaram em Passo Piraju, conforme o relato dos mais velhos, e disseram para os Kaiowá irem embora da fazenda. O tempo passou e a reparação do erro cometido pelo Estado está longe de se efetivar pelo cumprimento dos termos da Constituição de 1988.
Se por um lado o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo determinou a paralisação das demarcações de terras indígenas, por outro também não cumpre o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado junto ao Ministério Público Federal (MPF) em 2007, para que fossem constituídos grupos técnicos com foco na identificação e delimitação das terras indígenas Guarani e Kaiowá no cone sul.
O Relatório Circunstanciado de Identificação do tekoha Passo Piraju foi entregue pelo antropólogo responsável à Funai em outubro de 2011. O estudo estava no escopo das ações do Grupo de Trabalho (GT) Dourados-Amambaipeguá, um dos seis GT`s criado pelo órgão indigenista do Estado em 2008 por força do TAC. Porém, nenhum foi capaz de concluir os procedimentos apesar das inúmeras promessas feitas aos indígenas.
“Plantem meus ossos aqui”
Passo Piraju possui posto de saúde, escola, poço artesiano, roças e criação de animais. Em diversidade, os kaiowá produzem mais culturas do que os monocultivos de cana e soja do entorno. Se para o governo federal e agronegócio, para a Bolsa de Chicago ou para a China uma terra indígena é a representação do atraso econômico, aos Kaiowá é a certeza de não voltar para a situação de dez anos atrás quando viviam sem ter o que comer às margens da rodovia. Assim ainda vivem milhares de Guarani e Kaiowá pelo Mato Grosso do Sul afora: cercados por bilhões de dólares em soja, cana e gado sugados da terra ancestral, mas sem as famílias terem o que comer ou um pedaço de terra para plantar.
Durante ameaça de reintegração de posse em outubro de 2012, Carlito Kaiowá (na foto ao lado), liderança de Passo Piraju, declarou: “Se a lei vai ter o poder de tirar de nós o Passo Piraju, eu quero que a lei retire só as minhas crianças. Eu quero deixar a minha carne, o meu osso em cima dessa terra aqui. Eu vou deixar. Podem vir fazer o despejo. Só que daqui eu não saio. Eu quero que a minha morte, que minha catacumba seja no rio. Quero que minhas crianças, quando elas voltarem de novo, que elas cacem o meu osso para plantar de novo na aldeia. Eu quero que me plante na aldeia Passo Piraju, porque aqui eu nasci, daqui eu fui expulso, aqui que eu vou poiá minha catacumba”.