Acobertados pela PM e mídia, grupos ilegais tornaram-se mais fortes que tráfico, mantêm favelas sob terror e podem ter copiado métodos dos torturadores.
Por Lia Imanishi Rodrigues* – Outras Palavras
A ação das Forças Armadas para combater supostos inimigos internos, como na época das ditaduras do Estado Novo (1937–1945) e militar (1964–1985), resultou em episódios vergonhosos, como se pode aferir pelos trabalhos das Comissões da Verdade instaladas para apurá-los. Essas investigações mostram que o comando das Forças Armadas brasileiras não colabora no esclarecimento dos crimes cometidos por seus integrantes.
Em meados do mês passado, os comandos das três forças – Exército, Marinha e Aeronáutica – enviaram à Comissão Nacional da Verdade uma resposta que mostra essa disposição. A comissão havia solicitado a eles que informassem sobre o uso ilegal de sete unidades militares: os antigos Destacamentos de Operações de Informações do Exército (DOI), no Rio, em São Paulo e no Recife; os quartéis da 1ª Companhia da Polícia do Exército da Vila Militar, no Rio, e do 12º Regimento de Infantaria do Exército, em Belo Horizonte; a Base Naval da Ilha das Flores e a Base Aérea do Galeão, ambas no Rio. Nesses locais, teriam sido torturadas pelo menos 15 pessoas e mortas pelo menos nove.
No início de abril, os comandos das três forças anunciaram a abertura de averiguações sobre a ocorrência dessas atividades criminosas nas sete unidades. Nas respostas enviadas no dia 17 daquele mês, às quais o diário O Globo teria tido acesso, esses comandantes apresentaram três relatórios, parecidos entre si, nos quais fazem relatos “longos e prolixos” sobre o histórico das sete unidades. Os textos afirmam que elas sempre agiram de acordo com as leis da época e não se referem aos casos de morte e tortura apontados. Argumentam que documentos foram destruídos e as informações dadas pela Comissão da Verdade para investigação não puderam ser investigadas. “Não foram encontrados registros formais que permitam comprovar ou mesmo caracterizar o uso das instalações militares para fins diferentes dos que lhes tenham sido prescritos”, diz o jornal, citando o relatório do Exército, referindo-se ao DOI de São Paulo.
No caso da Maré, um fato relevante sugere que o comportamento dos militares é o mesmo: a ocupação deixa em paz as duas milícias formadas por policiais que atuam por lá. O “inimigo interno” é o traficante, e não o policial corrupto. Ao “pacificar” quase que exclusivamente áreas molestadas pelo tráfico, o Estado acelerou um processo de decadência dos “comandos” desses traficantes, iniciado ainda nos anos 1990, com a queda do preço da cocaína e o surgimento e popularização de drogas sintéticas como oecstasy e o LSD, comercializados fora da favela por traficantes de classe média e média alta. Mas, indiretamente, a ação estatal fortaleceu as milícias, uma vez que seu território foi pouco alterado desde o início do programa de “pacificação”.
Há estimativas de que, enquanto as três facções do tráfico – Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e Amigo dos Amigos – controlam hoje aproximadamente 40,6% das favelas cariocas em conjunto, as milícias têm sob seu comando 42,5%. E as áreas sob forte hegemonia do tráfico são os mercados consumidores menos dinâmicos da cidade, localizados em bairros de baixo poder aquisitivo. Como os milicianos, em geral, não usam o tráfico de drogas como principal fonte de lucro, a expansão das milícias foi agressiva, consentida e muitas vezes estimulada pelo próprio Estado, como uma solução alternativa para supostamente resolver o problema do tráfico.
“Para se ter uma ideia, o ex-prefeito César Maia chegou a afirmar, em 2004, que o fenômeno das milícias era uma reação natural dos habitantes dessas áreas ao tráfico”, diz Marcelo Souza, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor deFobópole: o medo generalizado e a militarização da questão urbana (Bertrand Brasil, 2008).
Souza lembra que Maia criou “o infeliz slogan de ‘autodefesas comunitárias’ para os criminosos, nome semelhante à maior organização paramilitar colombiana, as Autodefensas Unidas de Colombia”. E Eduardo Paes, atual prefeito carioca, “enumerou e colocou na internet durante sua candidatura ao governo do Estado, em 2006, os ‘benefícios’ que os milicianos traziam para seus territórios em Jacarepaguá”, diz Souza.
Sem dúvida, os paramilitares se enfraqueceram relativamente a partir da chamada CPI das Milícias, realizada em 2008, na Assembleia Legislativa do Rio. A CPI identificou as principais áreas de atuação dos criminosos e suas estratégias para manutenção do território e dos lucros, além de ter possibilitado a acusação formal e a cassação de inúmeros agentes públicos de segurança e políticos envolvidos com as quadrilhas. O problema é que as milícias passaram a atuar de maneira mais discreta. Se antes os milicianos faziam questão de explicitar seu envolvimento direto com as forças públicas de segurança, agora a atuação é quase imperceptível.
“Estudos recentes mostram, inclusive, que a maior incidência de pessoas desaparecidas em alguns bairros pode indicar uma possível maior discrição dos criminosos. Hoje, em vez de matar e simplesmente desovar os corpos em algum local, os paramilitares estariam desaparecendo com os cadáveres para chamar menos atenção da mídia e das autoridades públicas. Em outras palavras, houve uma espécie de salto qualitativo na macabra ‘economia da morte’ carioca nos últimos anos”, conclui Souza.
Os relatos do Maré de Notícias fortalecem as conclusões do professor. Segundo o jornal, em maio do ano passado, cinco pessoas foram mortas por policiais em um apartamento no Conjunto Pinheiro, na Maré, e os moradores foram obrigados a limpar o local. Não houve perícia ou notícia na imprensa, com exceção da que saiu no Maré. Um mês depois, outras nove pessoas foram mortas pela polícia e boa parte dos meios de comunicação justificou a chacina dizendo que a maioria das vítimas tinha passagem pela polícia.
“Os meses se passaram e ninguém falou mais nada”, diz uma jornalista do jornal comunitário. Ela não sabe se vai ser positivo ou negativo a instalação da UPP no complexo. “A gente não sabe o que a polícia pode fazer. Com o traficante, a gente sabia como agir. Agora, não dá para andar com a câmera exposta nem de dia. Não dá para saber o que se pode ou não fotografar. Quando ocorreram essas chacinas, a gente foi investigar onde tinha sangue e foi bastante hostilizado pela polícia: eles pediam nossa identificação, queriam saber onde morávamos, ficaram botando medo na gente. A gente mora aqui. Não dá para ir fundo na investigação desse jeito”, diz ela.
“Há uma linha muito tênue entre o medo e a revolta por parte dos familiares das vítimas”, diz Gisele Martins, coordenadora da equipe social da Redes. Algumas famílias também preferem não denunciar a morte dos filhos envolvidos no tráfico, por acharem que, de certa forma, eles mereceram aquele fim.
As demonstrações de força dos milicianos, pautadas antes em espancamentos e assassinatos públicos, não figuram mais entre suas práticas correntes, como diz Souza. Retrato do Brasil arrisca-se a dizer que os milicianos, acobertados pela impunidade, estão copiando os métodos da ditadura, que também criou seus centros de tortura e casas da morte para ter mais segurança nas atividades de desaparecimento dos corpos.
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* Com a colaboração de Raimundo Rodrigues Pereira