Duas horas com Mia Couto numa envolvente conversa que atravessa vários aspectos dos seus interesses e percursos. Como chegou até aqui, as suas geografias afectivas, Moçambique e os duros momentos de violência, a utopia da Independência, a diversidade de povos e seus modos de vida como inspiração para as histórias, o ambiente e o modelo de desenvolvimento a descobrir. Não é uma entrevista onde predomine o assunto literário, apesar do autor moçambicano desejar ter mais tempo para se dedicar à escrita. Pensando também em como levar o prazer da leitura mais longe e como ajudar a fazer surgir novos escritores.
Marta Lança – Buala*
Um escritor no terreno
Como consegue articular o mundo corrido de escritor, cheio de entrevistas e viagens, com a vida de biólogo em Moçambique?
É difícil. Antes era um problema, agora é uma angústia. Tenho de resolver isso, retirando tempo de algum lado. A questão não é ter mais tempo, pois inventamos o tempo que se tem, é mais ser um tempo nosso, que a escrita nos pede. Um tempo para estar com as personagens. É inevitável que transporte problemas, o que me faz ser menos disponível para as histórias.
E como pensa resolver isso?
Para escrever mais a tempo inteiro preciso de criar condições no meu trabalho para que possa continuar a dar assistência à empresa e trabalhar no mato como biólogo, que gosto muito.
Ser biólogo é também uma ferramenta para a escrita?
Sim, o trabalho de campo é muito enriquecedor pelo contacto com a diversidade. Com este trabalho atravesso Moçambique de norte a sul, muitas vezes em tendas, próximo da vida das pessoas. Falo com elas e recolho histórias que são núcleos para outras histórias.
Tem preferência por algum território ou etnia específica? Pressente-se por vezes um certo animismo e o mundo invisível dos macuas ou aquelas aldeias com rituais religiosos…
Essa religiosidade é uma espécie de chão comum, apesar de ter variantes. Sabe-me bem estar na região onde nasci. Alguma coisa me recorda das línguas que ali se falam, embora já não as fale, mas acredito que rapidamente conseguiria recomeçar. É curioso como é importante conhecer essa música de infância.
Foi vencedor do Prémio Camões e este ano integrou o júri. O que este prémio muda na carreira de um escritor?
Na minha não mudou muito. Mas, claro, fiquei muito feliz com o prémio.
Não manifesta interesse em estreitar as literaturas de língua portuguesa?
Alguma coisa tem de mudar na própria natureza do prémio. Pode contemplar um autor, claro, mas percebe-se que a nossa comunidade linguística é mais uma utopia do que uma coisa real. No Brasil, o Camões é pouco divulgado. Uma das intenções do prémio Camões era a de suscitar a curiosidade e divulgar a obra. Por exemplo, no caso do vencedor deste ano, Alberto da Costa e Silva, não se percebe porque é que a sua obra é tão pouco conhecida fora do Brasil. Este fundo deveria permitir que a obra dele fosse contemplada, que editoras a pudessem publicar e o escritor viajar. No Camões, deve ser importante a obra não especificamente o autor. Há prémios que se organizam num sentido mais formal e de reconhecimento, mas outros organizam-se para que jovens e alunos conheçam a obra. Quando há festa, toda a gente nova que está empenhada participa. Festa é isso, é um processo, não só um momento.
O prémio está de costas voltadas para quem pode realmente beneficiar com o conhecimento?
Acho que sim, alguma coisa tem de mudar. Mas é também uma preguiça nossa. Os escritores têm de brigar mais, não se pode abdicar e dizer “são eles”. Estamos numa posição estranha, deixamos que as iniciativas sejam daqueles de quem dizemos mal, dos políticos etc. Temos de ocupar esse espaço.
Concorda que a lusofonia constrói-se mais na base dos interesses económicos do que culturais e está muito centrada em Portugal?
Acho que tem de haver uma aprendizagem. Este projecto ou é de todos ou vamos ter Institutos Camões como institutos de Portugal. É preciso que exista uma instituição da lusofonia suportada por todos. Porque é que no júri do Camões estão Portugal, Brasil e África em conjunto? Não é justo. Mas a verdade é que os países africanos nunca deram um passo em frente para dizer que também queriam participar. O que custa a Angola e a Moçambique participar? Estão só numa posição de reclamar. Preocupa-me que Moçambique tenha uma posição menos ambivalente, menos de queixa. Mesmo em relação à língua. Depois destes anos todos, a língua portuguesa ainda é vista como a língua dos outros? Ou se assume e vamos tratar dela como coisa nossa, ou não se pode pedir aos portugueses que tenham acções em relação à língua como se fosse deles.
A língua inglesa também vai ganhando terreno em Moçambique…
Sim, mas é um pouco um fantasma. A língua portuguesa não tem comparação com o que era, no tempo da independência só 4,5 % dos moçambicanos falavam português, hoje, nos centros urbanos, já são 40% a tê-la enquanto língua materna.
E as outras 20 línguas, como são cuidadas?
É um pouco hipócrita, publicamente toda a gente faz um grande discurso sobre as línguas indígenas, mas isso implica trabalho e financiamento, e não está a acontecer nada.
Por serem línguas mais ligadas à oralidade?
Acho que é sobretudo uma grande preguiça. Como sempre, está-se à espera que o mundo venha resolver, se não há fundos… não há prioridades.
Que próximo africano poderia ganhar o Prémio Camões?
Entre outros, o Agualusa, o Ungulani Ba Ka Khosa, o João Paulo Borges Coelho ou o Ondjaki.
Os vindouros
Como justifica não surgirem mais vozes novas?
A guerra em Moçambique ajudou a destruir a ligação, que já era tão frágil, à escola, e as pessoas só tinham contacto com a língua portuguesa através do livro. Houve uma geração que foi sacrificada na relação com a leitura e o livro. Nas cidades talvez não tanto. Agora estão a ressurgir valores, e é curioso que Moçambique retoma a espécie de natureza mais ligada à poesia – como Angola, mais ligada à prosa – e há muitos jovens promissores no domínio da poesia. É que os escritores nascem de outros escritores, as ideias nascem de onde há ideias. Lembro-me da geração do Ungulani Ba Ka Khosa, frequentavam a esplanada do Charrua, Goa, das cervejarias, debates, tertúlias em Maputo, o café Scala, onde se reunia o Rui Knopfli e o Craveirinha, isso agora não existe.
Espaços de contágio onde se começa a discutir, a ver filmes e a ler livros.
Sim, e não existindo esses espaços, os jovens estão desamparados. Não há semana que não me apareça um com um papel: “Ó Mia Couto, veja lá isto!” Na nossa família tivemos a ideia de criar uma fundação com o nome do meu pai – que morreu o ano passado – ele teve uma editora, queria fazer escritores, trabalhava muito com jovens. Foi agora aprovada no Conselho de Ministros e pus parte do dinheiro do prémio de maneira a que haja como acolher esses jovens, oficinas de escrita etc. Existem pessoas que criam grupos de trabalho, clubes de leitura, há uma grande vontade de quem ama os livros para fazer coisas, mesmo que não se saiba como.
Presentemente escreve um novo romance…
Sim, sobre o Gungunhama mas entretanto fui atropelado por um livro de poesia. É sistemático, sempre que estou a fazer um livro de prosa só me aparece a poesia.
É o tal ‘poeta que conta histórias’ que às vezes se fica só pela poesia.
A poesia diz “olha lá, que não sais daqui”. Mas funciona, com essa emanação da poesia a história que quero ver fica limpa.
Parece ter algumas resistências à narrativa realista, crua, ao compor todo um idiolecto literário. Na Confissão de Leoa tentou abrandar essa marca estilística, experimentar outras coisas. Isso acabou por fixá-lo num certo estilo?
Sentia-me muito sufocado, de repente parecia que aquilo tinha uma só dimensão, engraçada, bonita, da qual não me apetecia ficar prisioneiro. Não quero fazer um exercício estilístico, quero contar uma história e aquela história pedia aquilo. Quero surpreender-me. Nunca vou fazer uma coisa puramente realista, não sou desse estilo.
É impossível reportar a realidade sem a transformar mas, ao encobri-la com essas outras formas, de dizer as coisas às vezes parece perder-se a violência da própria situação, não concorda?
Nisso, de facto, sou mesmo moçambicano, nós não falamos directamente, não conseguimos dizer não, andamos às voltas, em discursos concêntricos, até chegarmos a algum lado. A distância da guerra talvez me ajude, ela foi tão cruel que, para falar dela, da maneira que me tinha ensinado, tinha de fazer de conta que não a aprendi, precisava de manter uma certa elegância metafórica para conservar o meu lado poético perante uma coisa tão cruel. Haverá histórias que pedem para dizer as coisas puras e duras como elas são. Mas tenho dificuldade, agora a escrever o Gungunhana volto a confrontar-me com coisas que foram muito violentas. Tenho uma relação muito difícil com a violência. Quando me ofereci para a Frelimo, felizmente havia aqueles que não tinham de lidar directamente com a violência, senão não sei como iria fazer.
Na sua vida desiste facilmente de uma discussão?
Não me interessa ter razão, não tenho apetência para esse tipo de poder, de marcar uma posição, dar um murro na mesa. Se entro numa discussão é à maneira chinesa, simplesmente para sugerir que pode haver outra maneira de olhar para as coisas.
O consenso também nem sempre faz sentido.
Eu retiro-me, há uma sabedoria de evitar o confronto que não tem a ver com a falta de coragem.
Não gosta do imediato?
Não, se nos colocarmos no território de ganhar, vamos suscitar no outro apetites enormes numa vida onde se perdeu quase sempre, e as pessoas agarram-se a esses pequenos triunfos. Se conseguirmos retirar o assunto do território da disputa é mais fácil convencer as pessoas de que há outros modos de olhar. Dou-me bem com esta forma de fazer guerras. O provérbio chinês “o general que ganhou a guerra sem fazer nenhuma batalha” é um lema da minha vida.
Em Maputo ou Luanda é fácil “deixar de ver” e embrutecer pelo facto de as imagens das desigualdades sociais estarem banalizadas.
Como ver e dar resposta a isso é uma das grandes questões nestes territórios. Por exemplo, fiz uma intervenção numa escola, e surgiu a questão do transporte de trabalhadores em carrinhas de caixa-aberta como se fossem gado, o seu perigo e etc. Mas as pessoas, com rapidez e certeza, acham que é assim e que deve continuar a ser. Mas o meu discurso foi repetido passou a olhar-se para isso de outra maneira.
Como vê a “luandização” de Maputo: uma cidade cara, extremamente classicista, com territórios demarcados para os brancos, com inseguranças e todas essas coisas de uma grande cidade capitalista?
Para mim é quase fúnebre, apesar de não ser muito dado à nostalgia. Mas também entendo que é difícil de escapar pois é este o modelo, não sei se temos uma grande força para fazermos outra coisa. Faz-me confusão a falta de resistência civil que pelo menos entrasse em confronto com a facilidade com que se toma a cidade de Maputo.
Certamente não vem das ONGs.
As ONG’s andam sempre à volta dos direitos das mulheres, de questões políticas, as questões de espaço urbano, património, quase que não existem.
Como vê a realidade angolana?
Vejo com alguma preocupação, por perceber que uma certa elite moçambicana olha para Angola como modelo do ponto de vista dos comportamentos, economias, gestão da sociedade, o lado fashion. Os angolanos passam férias em Moçambique e vêm buscar namoradas, há um certo fascínio. Claro que Angola não é só isso, há muitas Angolas.
A literatura angolana tem documentado a história do país, vai acompanhando?
A minha preocupação é ler bons livros. Angola ao mesmo tempo é um país muito curioso para nós porque tem algo que nunca tivemos: um grau de urbanização mais apurado, muito mais consolidado e antigo. Como a literatura é um fenómeno da cidade, Angola tem de facto uma literatura mais sedimentada que a nossa, tem várias gerações, é resultado de sociedade crioulas. É uma experiência que gostava de visitar em Angola.
E a oralidade?
O fenómeno do português ser a língua principal interessa-me, como os vários traços sociais que manejam a língua, como a tornam plástica.
Em defesa do Ambiente
Enquanto biólogo, como vê a procura de recursos e o quadro de Moçambique enquanto nova potência económica? Será possível um equilíbrio entre o “desenvolvimento” e a agricultura sustentável?
Essa dualidade está mal desenhada. Não sei está relacionado com este modelo de desenvolvimento, se há outros mais felizes. Talvez seja uma coisa utópica, mas não deve deixar de ser dita e pensada. Acabamos por aceitar como modelo único possível. Pode haver problemas ambientais, mas as grandes questões são de ordem social: como são desarrumados os modos de vida, culturas inteiras arrancadas do seu habitat social e histórico. A solução não pode ser deixar como está. Existe a ideia irrisória de que as coisas estão bem porque as comunidades estão lá, mas elas estão dentro deste modelo e são empurradas para modos de sobrevivência muito agressivos.
As populações utilizam os recursos de forma inconsciente, por exemplo o caso dos mangais.
Por exemplo, nesses mangais, os viveiros dos peixes estão a ser assaltados pelas próprias comunidades que precisam de sobreviver e pescam com redes-mosquiteiro, cortam onde antes não cortavam. Dantes havia gestão e códigos próprios, e até zonas sagradas que eram poupadas.
O fenómeno do land grabbing, o ataque a zonas de cultivo para massificar explorações, condenando populações à fome. Temos o hemisfério sul a produzir menos para sustentar as energias renováveis do norte?
Obedece a modas. Os biocombustíveis eram uma palavra de ordem e não chegou a acontecer com a dimensão que se pensava. Mas a questão está lá, mesmo em menor grau.
Como se combate esse aproveitamento?
Isto é quase uma questão psiquiátrica, é preciso dizer a estas pessoas como é que se pode combater, mas de maneira a que não surja como um fantasma, para não parecer: “estes tipos estão a travar o desenvolvimento, estes tipos não olham pelo seu país, estão a impedir que as pessoas saiam da pobreza com este discurso”. Até em nome dos próprios povos se acaba por empurrá-los para uma situação sem saída.
Para a dependência?
É preciso ter alguma criatividade e perceber que há um momento em que se tem de negociar. Por exemplo, com os mangais, se dissermos “é preciso defender a biodiversidade” não vamos ter sequer a adesão das comunidades, a biodiversidade é um conceito abstracto. Outra coisa é alertar aqueles que mandam na economia – que não são, obviamente, só os nacionais – e falar na língua deles, no economês: “Se se perde o mangal, perde-se o camarão”. Uma das principais exportações do país acaba por estar em risco. Alertar que as próprias lógicas de rentabilidade desse modelo ficam em risco com esta maneira selvagem. Não faço parte de ONGs, algumas são sérias mas a maior parte vivem de retro-alimentação, podem ser empresas disfarçadas, são discursos que se repetem. Um discurso alternativo que possa surgir tem de ganhar espaço e tempo, ter possibilidade de recuo táctil. Sem esse diálogo não funciona, não sabem a tua língua, não pensam da tua forma.
Faz muitas vezes esse papel de intermediário?
Sim, com o risco de ser acusado de transigente, demasiado aberto, evitando o confronto. Se acho que isto tem de mudar radicalmente? Sim. E o que tenho a sugerir? Não sei, mas há coisas que se pode ir pensando. Por exemplo, aquilo a que chamamos “recursos”. A palavra está errada à partida, significa que se está a legitimar uma ideia de que aquilo que lá está, seja renovável ou não, existe em função da nossa necessidade. Como se a espécie humana estivesse feita para fazer uso disso, credenciada por uma ordem qualquer divina.
Antropocentrismo?
E a maneira como nós chamamos, recursos humanos. São pessoas!
Mas as empresas de impacto ambiental – e o Mia tem uma empresa nessa área – apresentam muitas condicionantes, pela clara promiscuidade com os clientes que lhes encomendam os estudos. Sente alguma frustração com isso?
As empresas de impacto ambiental são pagas pelo próprio cliente, pode-se questionar a idoneidade deste processo, sim. O que seria correcto era as empresas pagarem ao Estado, que constituía um fundo, que indigitasse uma empresa que estaria à vontade para chumbar uma empresa. Percebemos que isso é uma limitação. Há casos que não aceitamos à partida, e outros que chumbamos ou obrigamos a redesenhar.
Na questão dos 300 mil hectares da Portucel, conseguiram minimizar alguma coisa?
Ainda está em andamento.
Podiam mostrar que a eucaliptização é um erro repetido?
Os projectos de plantio têm regras estabelecidas pelo Banco Mundial para ser seguidas. Hoje acredito que esses critérios são dos mais bem construídos, do ponto de vista técnico, para defesa do ambiente. Se fossem respeitados estaríamos bem melhor. O que falta é a capacidade de controlar e fazer alguma fiscalização. A Portucel teve que redesenhar o seu próprio projecto. Onde as comunidades não querem, nem onde há florestas nativas eles não entram, há uma contenção.
Sente-se um combatente nesses assuntos?
Um pouco, na luta para aproveitar zonas de fractura para poder ocupar terreno.
Se a alteridade fosse uma coisa a aprender e não uma ameaça, o que seria interessante valorizar fora da lógica hegemónica de que “este é o único modelo”? O que teríamos a aprender com essas outras formas de vida, outros modelos económicos e sócio-culturais sem ser o da economia do crescente?
Parece que é uma coisa muito filosófica – e sou um homem que vem de uma cultura misturada -, noto que para mim foi muito benéfico ter aprendido a necessidade de harmonia com os outros, com o espaço, o convívio com os mortos etc.
Não falar da natureza como um “recurso” mas como um amigo?
Ou como uma coisa que não tem nome. Uma das dificuldades que tenho no campo é dizer que sou biólogo e estou a trabalhar na natureza. Não tem tradução para as línguas locais.
Estamos a começar a preocupar-nos?
Com este lado mais holístico e a compreensão humana, parece que também andamos à procura. Mas estas pessoas já vivem num certo entendimento daquilo que as circunda. Com uma certa religiosidade mais permissiva, que não se guia pelo Livro, seja ele qual for. Há uma relação que me parece mais livre entre o corpo. As pessoas parecem mais felizes.
Como se defende isso sem defender um certo obscurantismo? Por exemplo, se existe electricidade não é melhor ser para todos?
Mas isso é o logro que faz com que as pessoas que vivem em sistemas rurais, na pobreza, muito carentes, acreditem que esse modelo dá resposta a tudo. Essa é a ilusão, de que para terem água, energia ou infra-estruturas têm de pagar e engolir a pastilha toda. Não sei se haverá uma maneira de fazer diferente.
E atrás disso vêm todas as outras necessidades que são criadas.
O problema é que quem não tem torneira, não quer ter só a torneira, quer ter a casa e outro tipo de vida. É como dizer a um filho para não namorar com determinada pessoa. O direito a fazer a aprendizagem, a ter opções, tem de estar lá. A grande esperança destes países está em gerações que possam ter algum distanciamento crítico em relação ao próprio país, gente que sai e olha para Moçambique de outra maneira.
Que já não têm tanta voracidade de enriquecer?
Percebem que há outras coisas, que estas sociedades não são felizes. É uma questão de tempo.
A violência
Nos últimos anos tem havido situações de violência em vários contextos. Os miúdos do subúrbio que vieram para as ruas manifestar-se, houve motins. Agora este regresso do fantasma da guerra. Os moçambicanos aparentam ser pessoas muito passivas e tímidas mas depois há uma certa cultura de violência, concorda?
Podemos explicar desta forma: predomina uma sabedoria antiga de sociedades que não tinham Estado, nem instituições mediadoras para a violência. Resolvia-se pela via das famílias, dos chefes tradicionais, etc. Quando chegámos à Independência, muitas das comunidades ainda estavam assim, o Estado colonial era muito frágil, só localizado nas cidades. No pós-independência, também se manteve frágil, não teve tempo, houve a guerra. A mentalidade é “eu não me vou expor, nem vou criar um conflito com o meu vizinho se não tiver a certeza de que vou ganhar.” Na Europa é fácil: tenho um problema, vou à polícia, acredito que há tribunal, uma força mediadora. Aqui não, a pessoa não expõe a sua opinião, e não vai arriscar individualmente, só fala quando pode gritar ou quando se está em maioria. É a explosão que acontece.
O peso da sociedade gregária, o indivíduo por si não tem muito valor?
O indivíduo está feito para negociar, entrar em consenso. Os moçambicanos recebem bem, não conseguem dizer não, algo muito oriental. Como é que este mesmo povo, tão cordial, fez uma guerra com um milhão de mortos? Mas acontece, não quando é gota, mas quando é onda, gota somada a gota.
E agora com a iminência de algo que pode destroçar o dia-a-dia, como se sentem as pessoas, afastam-se sentindo que é uma coisa localizada?
Primeiro receio: haver outra vez guerra é inaceitável. É difícil imaginar, quem viveu 16 anos de guerra nunca mais quer guerra. A grande força que une os moçambicanos é precisamente “não queremos guerra”.
Ainda se tem medo de pronunciar a palavra guerra. Nas cheias de 2000 havia pessoas a saltarem dos telhados nos resgate com medo dos helicópeteros sul-africanos ainda com a memória da guerra.
Está a acontecer uma situação caricata, a certa atura põe-se ao mesmo nível Renamo e Frelimo, sentem-se, dialoguem. Tem de se pedir isso à Renamo, um partido político que tem armas.
Contra a chantagem da força, não há vontade política pela via diplomática?
Existe alguma ambivalência. Não culpo o governo porque acho que se estivesse a governar não iria aceitar esta chantagem da força. A primeira coisa é que a Renamo tem de se convencer a ser um partido político. Se lhes pedem para entregar as armas e não entregam, tem sentido então utilizar a força para tirar aquela gente da via da violência. Eu próprio estou dividido, nas negociações, a Frelimo foi fazendo cedências e não me parece que se possa continuar a ceder só de um lado, principalmente porque agora o discurso da Renamo é que, em nome da despartidarização do Estado e das Forças Armadas, quer uma partidarização a meias. E eu como cidadão também quero ser consultado.
Não pode ser um aviso para que a promiscuidade entre Estado e partido acabe, a exigência de uma democratização?
Sim, mas que o façam de outra maneira, todo o argumento é discutível. A Renamo tem assento no parlamento. É uma coisa esquizofrénica: acontecem ataques, estão a morrer pessoas e os tipos sentados a discutir a lei do Orçamento ou qualquer coisa como se fosse noutro país. Portanto, pode-se acusar este governo de muita coisa, mas não de falta de tolerância. E sendo que isto é intolerável.
E o factor económico, alguém estar a sentir-se fora do “acontecimento” não é uma das razões para a chantagem da Renamo? Porque é que nos anos em que se vivia numa pobreza extrema não aconteceu nada e agora, assim que a economia cresce, vêm ao de cima estes conflitos?
Acho que tem mais a ver com o Dlakhama perceber que é a última vez que se pode candidatar, é um processo pessoal. Acredito que na própria Renamo haja gente que também discorda desta via.
Democracia e participação
Apesar disso, em Moçambique tem havido alguns passos no sentido da democratização, novos partidos etc.
Sim, e a atitude do cidadão que perdeu o medo de falar e dá a cara. O risco de alguém que se assume como cidadão, estou aqui e digo o que tenho a dizer, é muito recente. É um avanço, e está a causar medo. Mas é isso ou 2010 com jovens a partir tudo. Essa fase de manifestação serviu de grande aviso, e depois começaram a acontecer coisas no mundo.
Foi uma conquista, os jovens indignaram-se e houve recuo da parte do governo…
Sim. Há pouco tempo também, uma manifestação de 20 mil pessoas, com elegância, organizaram-se e mostraram um grande grau de civismo. Até então uma manifestação significava partir tudo, e esta foi um grande exemplo.
Em Luanda as manifestações são reprimidas com prisões e repressão policial. Em Moçambique é mais brando?
Desse ponto de vista não tenho vergonha do meu país. Há uma atitude civilizada do governo que aceita. Obviamente que há intimidação, mas é feita num quadro que hoje é comum em todo o lado.
Os tempos de militância
E então vai para Maputo aos 16 anos para estudar, e um ano depois entra na clandestinidade.
Em 1973 comecei a ter algumas ligações com a Frelimo, a fazer algum trabalho no movimento estudantil a que eu tinha aderido. Em 1974 era formalmente da Frelimo.
Viveu a Independência com 20 anos. Foi uma grande utopia?
Foi o grande sonho da minha vida. Mesmo quando a Frelimo me pediu para abandonar o curso de Medicina, e eu naquela altura queria mesmo ser médico, psiquiátrico…
Não era compatível, não era altura para estudar, não havia condições?
Porque se pensava que havia poucos jovens capazes de infiltrar-se nos órgãos de informação dos portugueses, quer dizer, portugueses de extrema-direita. E isso tomava-me o tempo todo. A ideia era que eu ficasse um ano, mas fiquei doze. Foi um tempo muito feliz, de grande generosidade, estávamos todos muito empenhados num país, um mundo e homem novo. Os principais erros dessa altura deveram-se à grande ingenuidade, uma simplificação do mundo. As coisas são mais complexas.
Não se sentia limitado?
No princípio não, quando havia dúvidas o argumento da guerra fazia suspender essas questões, estava envolvido numa coisa maior. Em 85 pensei “já não acredito”, e tinha uma grande urgência sair.
A figura do Samora Machel cativava-o?
No próprio momento percebi alguns grandes erros que ele cometeu. Eu era director de um jornal e nessa condição assistíamos às reuniões do Comité Central. Era o modo dele nos envolver naquilo que chamava o “Pensamento Comum”, que eu não percebia que era o pensamento único. Mas havia uma certa confiança, éramos envolvidos no processo. Havia coisas muitos grandiosas e violentas, sim. O meu amigo Carlos Cardoso foi preso a mando do Samora. Eu próprio seria preso se não fosse a poesia. Chamavam-me e diziam “ah, ele é poeta”, como se fosse assim uma doença. O Samora tinha uma visão, uma entrega aos outros e uma sensibilidade que o fazia ser ele, não estava auto-centrado, queria saber de cada um.
E a imprensa que dirigia na altura era o braço direito do pensamento único?
O direito e o esquerdo.
Samora tinha consciência do valor da comunicação, valorizava as pessoas da imagem. No interesse de criar uma unidade nacional?
Sim, ele tinha a noção de que era preciso construir uma nação e isso nasce de uma narrativa, por via da rádio e da imprensa. A primeira coisa que ele pensava era nos órgãos de informação, nos jornalistas, se havia meios. Era o primeiro a saber tudo, onde vão dormir, etc. Era formidável, vinha visitar-nos a saber se tínhamos comido e se estávamos bem.
Só nas cidades, ou havia delegações nas províncias?
Havia a preocupação de descentralizar, criaram-se redes de correspondência populares. Era gente muito humilde. As primeiras notícias que chegavam à Agência de Informação eram impressionantes, distribuímos bicicletas para virem entregar as notícias. A ideia era o país reconhecer-se nas suas diferenças.
O caso Carlos Cardoso
Carlos Cardoso já era perseguido nessa altura, preso pelo Samora?
Foi preso com a mais alta acusação de Sabotagem ao Estado Popular. O homem podia desaparecer e foi graças a um grupo de colegas que reunimos provas que ele não tinha feito o que se pensava. Mas Samora falava com ele em particular e gostavam-se. Foi pontual. A reportagem do Cardoso contrariava a versão oficial do que o Exército fizera numa operação militar. O Cardoso era várias pessoas ele tinha essa crença turco, sueco e norueguês.
Foi assassinado em 2000. Teve a persistência da luta pela verdade, justiça. Como era?
Ele aparecia em casa de uns amigos de casa em casa, sabia que já andava a ser perseguido. Quando se foi ver nos dossiers que ele andava a mexer, nos bolsos e nas gavetas descobrimos umas 12 razões para ser assassinado. Era uma pessoa incrível, tinha perfeita noção do que ia ser na próxima reencarnação.
O que há a preservar da lição do Cardoso?
O nome dele está vivo, e entre alguns sectores acha-se que o jornalismo de intervenção é a via certa. Mas acho que aí houve um grande recuo. O que ele fazia era ímpar, apontar nomes, apresentar provas.
Filho da terra
Como está a Beira?
Luta para não se reconhecer morta. A Beira era um porto que servia as economias do interior, através do seu corredor, sendo a sua razão de ser o Zimbabué. A Beira entrou em decadência, e até que o Zimbabué volte a ressurgir das cinzas… Uma hipótese seria servir de escoamento ao carvão que se está a descobrir em terra, mantendo a vocação de linha de saída. Por outro lado, o carvão também foi uma história cor-de-rosa que não acabou bem.
Nota-se um certo esplendor de outrora que contrasta com a decadência. Ainda tem ligações ou família por lá?
Tenho um primo e amigos. Por ser filho da terra, na Beira sempre me cobram para lançar os livros primeiro lá. Sinto essa obrigação. Eu e os meus irmãos juntámo-nos para reabilitar a escola primária onde estudámos. Demos livros para a escola secundária. Aquela cidade deu-nos muito, fui muito feliz por lá. Apesar do período difícil de quando comecei a perceber o mundo, foi na Beira que despertei para essa consciência.
Do que sente mais saudades?
Das férias nas montanhas do Rovuma, perto do Zimbabué, aquilo era a ausência quase absoluta do medo. Nós ficámos durante um mês, nas férias grandes, acampados nessas montanhas. Não havia telemóveis, os pais não sabiam nada de ninguém, mas não lhes passava pela cabeça que pudesse acontecer algum mal. Esse mundo já acabou.
Tinha contacto com o Grande Hotel da Beira, que entrou em colapso muito antes da independência?
Tenho uma lembrança muito vaga mas nunca vi aquilo vivo. E até morei perto desse bairro. Saltitávamos muito, quando o meu pai tinha um problema mudava de bairro, se tinha um problema maior mudava de cidade.
*Publicado originalmente no jornal Rede Angola.