Major da PM já agrediu fisicamente soldado em curso de formação e tem 9 processos criminais arquivados; tenente responde por homicídio qualificado em Niterói
por Ciro Barros – Agência Pública
“Não tem jeito, meu irmão: se tem estrela no ombro, se tem patente, não acontece nada”. A fala interrompe uma conversa banal sobre a lesão de Neymar e as más atuações da Seleção Brasileira na Copa do Mundo. O cenário é a recepção da Auditoria da Justiça Militar, no 13º andar da sede do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro no centro da cidade, onde nós dois esperávamos para falar com promotores diferentes.
Ele me conta que é cabo da Polícia Militar e está testemunhando contra a corporação em um caso recente, sem dar mais detalhes. “Embaçado, meu irmão. Só quem roda é a gente. E quem toma pau da imprensa também”, diz, referindo-se às punições que segundo ele são destinadas apenas aos subalternos. Antes de sair para a falar com o promotor – o que ele esperava chegou primeiro – ele se despede com um “boa sorte” e um alerta ao jornalista: “PM não é tudo monstro não. É uma cultura que vem lá de cima”.
Meu entrevistado chegou logo em seguida, o titular da 1ª Promotoria de Justiça junto à Auditoria da Justiça Militar, Bruno Guimarães. O promotor atua em um dos casos notórios de abuso de autoridade e violência policial durante os protestos do ano passado: a simulação de um flagrante por dois oficiais da PM para incriminar um menino de 15 anos durante uma manifestação no centro do Rio, quase dois meses depois de uma grande greve de professores estaduais e municipais, iniciada em 8 de agosto de 2013.
No dia 30 de setembro, alguns professores acamparam na lateral da Câmara de Vereadores, onde tramitava um projeto que a categoria queria ver aprovado: a segunda versão do Plano de Cargos Carreiras e Remunerações (PCCR) dos professores municipais do Rio de Janeiro. Foi convocado um ato público no centro do Rio para apoiar os professores que, naquele momento, pressionavam os vereadores na Câmara. A PM reforçou o seu efetivo na região central. Por volta das 20h30, o major Fábio Pinto Gonçalves (lotado no 5º Batalhão da PM, na Praça da Harmonia, centro do Rio), que comandava tropas no dia, determinou a apreensão do menor I. B., de 15 anos. A cena da apreensão do adolescente foi documentada em vídeo pelo repórter Lauro Sobral, do jornal O Globo.
No vídeo se vê um policial, o tenente Bruno César Andrade Pereira, carregando rojões nas mãos, enquanto corre atrás de um manifestante que ele não consegue alcançar. Atrás do tenente, vê-se um homem negro e alto, o major Pinto, que ordena que a tropa se reagrupe para marchar em direção a um grupo de manifestantes que anda tranquilamente na Praça Mário Lago. Quando avista o grupo, o major aponta o cassetete em direção a um menino e ordena: “Vem! Não corre e vem!”. Ele manda o adolescente levantar a camisa e depois virar de costas. O jovem está com uma mochila que o tenente revista a uma ordem do major: “Dura nas bolsas!”. O tenente deixa os rojões no chão, coloca o cassetete embaixo do braço e começa a olhar a mochila. O major está fora do vídeo, o tenente está olhando a mochila, e quando ele reaparece diz: “Tá preso! Tá preso!”. “Algema!”, ordena o major a outro policial. Atônito, o menor afirma várias vezes que não fez nada e o major responde: “O senhor está com três morteiros!”. O vídeo acabam com os manifestantes perseguindo os policiais que levam I. B. algemado.
O major continuou no centro da cidade, comandando tropas. Quem conduziu o menino à delegacia (5ª DP) entre 20h e 20h30 do mesmo dia 30 de setembro foi o sargento Alexandre Zanardi. O Registro de Ocorrência, porém, só foi feito duas horas depois, quando o major e o tenente chegaram à DP – e também os fogos de artifício apreendidos naquele dia.
No depoimento anexado ao processo na Auditoria de Justiça Militar – consultado pela Pública, o tenente Bruno Pereira afirma que ele “arrecadou ao chão da Avenida Rio Branco próximo à Praça da Cinelândia 03 morteiros (…) próximo ao local o qual foi detido um adolescente (…) sob a suspeita de carregar uma mochila contendo no interior fogos de artifício, mas como não foi possível arrecadar a mochila devido a quantidade de manifestantes que intervieram em pró do adolescente, então o menor foi liberado sob a presença do responsável, e os fogos apreendidos (sic)”.
Dois dias depois, o vídeo gravado pelo repórter do Globo foi divulgado no site do jornal e ganhou repercussão enorme nas redes sociais. Logo a história estava nos jornais impressos e em canais de televisão. No mesmo dia, o delegado-adjunto Raphael Stambowsky determinou que o vídeo fosse juntado ao auto de apreensão e que o menor fosse intimado a depor. A farsa estava desmontada.
Um dia depois, a PM anunciou uma sindicância para apurar os fatos. Em 25 de outubro do ano passado, a sindicância concluiu que havia “indícios de infração penal [pelos policiais] pelo fato de terem violado a liberdade de locomoção do adolescente ao ter sido conduzido para a 5ª DP (…) sem que o adolescente estivesse em flagrante de ato infracional, bem como pelo fato de terem feito uso indevido da algema”.
Em março deste ano, foi feita a denúncia pelo Ministério Público acusando os dois PMs de constrangimento ilegal (artigo 222 do Código Penal Militar, cuja pena máxima é de detenção por 1 ano) com o agravante previsto no parágrafo primeiro do artigo 222: “A pena aplica-se em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de arma, ou quando o constrangimento é exercido com abuso de autoridade, para obter de alguém confissão de autoria de crime ou declaração como testemunha”.
No caso do major, comandante da operação, há mais um agravante, esse estabelecido pelo artigo 53, parágrafo 2º, inciso I do Código Penal Militar: “A pena é agravada em relação ao agente que promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes”. Os PMs, porém, não foram acusados de forjar o flagrante, o que seria crime de falsidade ideológica, como observa o promotor Bruno Guimarães.
“Eles estão respondendo somente por constrangimento ilegal, por terem levado o menor à força até a delegacia. Mas, na delegacia, não foi imputado ao adolescente a posse dos três morteiros. Se por acaso tivessem dito formalmente que o morteiro era dele, aí seria o caso de falsidade ideológica, forjar prova. Mas isso não chegou a ir para o papel”, diz o promotor. Sem o alegado flagrante, porém, a apreensão perde o motivo. “A princípio, não havia motivo nenhum para levar esse menino para a delegacia de polícia, principalmente algemado. Qual o motivo dele ter sido levado?”, pergunta Guimarães.
Soltos nas ruas
No mesmo dia da detenção do adolescente, o major foi flagrado por câmeras da TV Globo jogando spray de pimenta no rosto dos professores que se manifestavam. Segundo depoimento do próprio major, ele comandava 20 equipes de 20 homens no dia dos protestos. A patente de major é a terceira na hierarquia da PM, atrás somente da de coronel e de tenente-coronel.
Mas os dois PMs já se viram envolvidos em outros episódios de violência muito antes dos protestos do ano passado, como se percebe ao consultar o processo. Por ordem da juíza Ana Paula Pena Barros, responsável pelo caso, foram juntadas aos autos as fichas disciplinares internas dos dois PMs, as folhas de antecedentes criminais, e uma pesquisa de processos anteriores realizada na própria Auditoria Militar, onde tramita o atual processo.
O major Fábio Pinto Gonçalves é praça desde 1995 e tem 8 processos disciplinares em sua ficha: 4 transgressões graves, uma transgressão média e três faltas leves. Somadas todas as punições administrativas, o major já ficou 85 dias preso. Uma das transgressões graves ocorreu quando o major ministrava instrução de tiro no curso de formação de soldados de 2001: por “descontrole emocional” o PM agrediu fisicamente um aluno que, “no entender do Oficial, não apresentava rendimento favorável durante a instrução” – como consta na ficha. Ficou condenado a 15 dias de prisão, com punição agravada por mais 30 dias pelo Comandante-Geral da PM.
Outra transgressão, essa média, ocorreu em novembro do mesmo ano, durante uma folga de Gonçalves. Ele estava em seu carro particular, trajando uniforme de educação física da PM, quando se envolveu em um acidente de trânsito, na cidade de Petrópolis, região serrana do Rio. De acordo com o registrado na ficha, o motorista do outro carro o acusou de ameaça e de tê-lo obrigado a sacar R$ 400,00 para “ressarcimento de seus prejuízos”. Ouvido para averiguação, o atual major não apresentou justificativa e ficou preso quatro dias.
A ficha do tenente, que entrou na polícia em 2006, tem apenas uma anotação até agora. Ele foi punido com dois dias de detenção por negligência na condução de um IPM (Inquérito Policial Militar) do qual era o encarregado. Segundo a ficha, “deixou de adotar medidas essenciais à elucidação do evento em apuração”. Entre outras providências que deixou de cumprir, não ouviu vários policiais e um civil envolvidos na denúncia nem auditou o GPS das viaturas a fim de identificá-las e constatar o período de permanência delas nos locais de crime, não especificado na ficha. A transgressão foi considerada leve.
Na folha de antecedentes criminais, o major Pinto tem sete anotações; quatro foram arquivadas a pedido do Ministério Público e não constam os artigos do Código Penal Militar a que estariam relacionadas. Outro inquérito arquivado, aberto em 2002, no 26º Batalhão da PM, indiciou o major por lesão corporal leve (artigo 209, do CPM) com agravantes que constam no artigo 70 do mesmo código: “ter cometido o crime estando em serviço e com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão”. Um processo em que o major é réu por ameaça e injúria (artigo 223 e 216, do CPM) ainda tramita na Justiça Militar.
Os antecedentes criminais do tenente Bruno Cesar Andrade Pereira trazem uma acusação mais grave. Ele responde por homicídio qualificado com agravantes por motivo fútil e “à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. O processo tramita na 3ª Vara Criminal de Niterói e foi aberto em 2011.
Em uma pesquisa no cartório da Auditoria Militar para averiguar todos os processos em que constam os nomes dos acusados, também feita a pedido da juíza, o major aparece como réu ou indiciado em 10 processos anteriores na mesma Auditoria em que tramita o atual processo sobre a apreensão do menor. Nove foram arquivados a pedido do Ministério Público e o major foi absolvido no outro.
Com esse histórico de violências e impunidade, eram esses oficiais que estavam nas ruas com a missão de policiar uma manifestação pública.
Depoimentos contraditórios
Além do vídeo do jornal O Globo, constam como prova no processo os depoimentos dos réus em juízo, do sargento Zanardi, testemunha de defesa dos PMs, e os de outros manifestantes, além do depoimento do próprio menor apreendido ilegalmente. A discussão central é se o menor foi detido sob a acusação de estar portando os morteiros, já que o tenente sabia que não eram dele como evidencia o vídeo; e se o major estava ciente desse fato e, portanto, teria dado a ordem de apreensão ilegalmente. “A defesa deles é a de que eles não iam forjar nada, que, na verdade, como o tenente estava com o morteiro na mão, ele botou o morteiro no chão para poder revistar o adolescente. E aí veio o major e resolveu levar preso, porque ele achou que tudo resolve na delegacia. Mas o rapaz afirma e todos afirmam que a polícia levava ele preso alegando que ele estava com o morteiro. Mas se eles levaram para a delegacia sem motivo, praticaram constrangimento ilegal”, afirma o promotor Bruno Guimarães.
No seu depoimento em juízo, o major Pinto afirma que “o que entendeu da situação [no momento da apreensão] é que aquele material [os rojões] seria do rapaz e por isso ele teria que ser levado para a delegacia” e que “o uso da algema (…) não foi para constranger”, mas a “forma técnica para o rapaz ser levado para a viatura”. O major também diz que ninguém lhe falou que os rojões eram do adolescente, “porém aquilo era o que se presumia da cena e diante das circunstâncias”, ressaltando que depois da apreensão do adolescente “foi à Delegacia Policial e disse ao rapaz que o material [rojões] até poderia estar com ele, porém não teria como afirmar”. E repetiu a versão quando interrogado pelo MP, acrescentando que o tenente “não avisou que os morteiros não eram de I.B. , naquele momento, ou seja, quando estava dando voz de prisão”.
Já o tenente afirmou “que estava com três morteiros na mão esquerda e, na mão direita, o bastão policial. Que por estar com as duas mãos ocupadas, largou os morteiros ao solo” para revistar o adolescente. Segundo o tenente, após a voz de prisão ter sido dada pelo major, ele “falou para o co-réu [o major Pinto] que o morteiro não estava na mochila do rapaz e sim que havia sido encontrado em uma situação anterior”, mas o major teria respondido que “os fatos seriam esclarecidos na Delegacia Policial”. O tenente também afirma que o major determinou que ele ficasse com os morteiros na mão durante a manifestação, mesmo trabalhando, porque “o tumulto continuava inclusive com Policiais Militares feridos”. Só quando foram juntos ao DP para “esclarecer os fatos” é que foi feita a apreensão oficial dos morteiros.
Por sua vez, a testemunha de defesa dos PMs, o sargento Alexandre Rocha Zanardi, afirmou “que não ouviu ninguém dizer que I. era menor e que o morteiro não era dele” e que a ordem foi “algema ele e leva para a Delegacia Policial” e assim ele fez, já que essa era a ordem que recebera, e só retirou as algemas do adolescente na delegacia. Segundo ele, “não deu pra ouvir se o 2º acusado [tenente] em algum momento afirmou para o 1º [major]” que o morteiro era do menor.
Testemunhas da acusação
Testemunha da acusação, Eduardo Paparguerius de Souza, professor de história da rede estadual do Rio, estava com a família nas manifestações dos professores e afirmou ter presenciado a maior parte dos fatos. Ele conta que viu a perseguição do tenente ao primeiro rapaz, que aparece no início do vídeo do Globo. Depois disso, ele “observou que os Policiais Militares estavam acusando um rapaz de estar com os morteiros” e conta que quis intervir pois “achou que os policiais estavam cometendo um erro, já que aquele rapaz que estava detido ali não era o mesmo que havia fugido pouco antes”. Também diz ter argumentado que “era impossível” que o rapaz que fugiu fosse o menor que estava sendo apreendido, e que várias vezes disse aos PMs “que não era correto algemar um menor de idade (…), porque ele não estava opondo nenhuma resistência e sim muito assustado”. Sobre os rojões, afirma que “não viu o 2º acusado [o tenente] argumentar com o 1º [o major]” que o material não era do menor. De acordo com ele, “ambos sabiam” que o rojão não era do adolescente, “por causa da perseguição ao rapaz que se evadiu”. Ele também disse que as pessoas e o próprio menino avisaram várias vezes que o rojão não era dele.
Outra testemunha da acusação, Eliza Sanzi, a “Sininho”, figura carimbada das manifestações no Rio, também presenciou o caso e aparece no vídeo do Globo. No depoimento ela diz que no momento da abordagem “todos começaram a falar que o rojão não era de I.B. e que o policial estava ‘implantando’” (sic) e que também falou várias vezes que o menino que estava sendo preso era menor de idade e não teve nenhuma reação que justificasse as algemas. Sininho também afirma que “ficou claro para todos naquele momento” que I.B estava sendo apreendido pela posse dos morteiros. O próprio menino, em seu depoimento, afirmou ter sido preso sob a justificativa de ter sido flagrado portando o morteiro.
Uma nova rodada de oitiva de testemunhas está marcada para ouvir testemunhas chamadas pela defesa dos PMs. O major Fábio Pinto Gonçalves convocou para depor o Coronel da PM Luis Henrique e o Tenente-Coronel Segala, ambos do 5º BPM, o mesmo do major. Já o tenente Bruno Cesar Andrade Pereira chamou o 3º sargento da PM Alexandre Magno do Prado para depor em seu favor. Eles devem ser ouvidos no dia 28 de agosto deste ano. A Pública procurou os advogados dos PMs por email e telefone, mas até o fechamento da reportagem eles não retornaram os contatos. A reportagem também solicitou com a PM uma entrevista com o sargento Zanardi, mas a corporação disse que não seria possível.
O julgamento final do caso deve sair dentro de quatro meses, segundo o promotor do caso, Bruno Guimarães. “Uma condenação é uma coisa muito forte, ainda mais para a carreira de um militar. Mas eles não devem cumprir em regime fechado. O que acontece geralmente, para um caso desses, é ‘sursis’. Nesse caso, eles ficariam condenados, sem serem afastados das funções como policiais, mas tendo que comparecer todo mês em juízo para prestar conta das atividades deles”. Segundo o promotor, a PM afastou o major da contenção de manifestações.