Nota do Centro de Assessoria Jurídica Universitária sobre a atitude da IX Semana de Direito em relação às lideranças indígenas do CE

“Hoje, a gente foi tratado como bicho nessa casa”. Tal frase, quando falada por um índio, tem pleno sentido em qualquer tempo e em qualquer lugar do Brasil. Durante a IX Semana do Direito, essas palavras ecoaram pelo auditório através de Cassimiro Tapeba, que, conjuntamente com cerca de 50 indígenas dos povos tapeba, pitaguary, anacé e tabajara, trouxe um pouco de realidade para uma faculdade que insiste no seu isolamento social.

Vivem, hoje, cerca de 19.000 indígenas em território cearense, habitando 23 terras próprias, das quais, apenas uma teve seu processo de demarcação e regularização devidamente concluído. É óbvio, portanto, que muito se tem para reivindicar de direitos historicamente negados, principalmente quando existe a possibilidade de fazê-lo frente ao ministério da Justiça, representado, em última instância, pelo próprio ministro José Eduardo Cardozo.

Apesar de o Ministro da Justiça não ter comparecido à Semana do Direito, não é de se estranhar que os indígenas tenham insistido em realizar a sua intervenção, afinal não é recente que a opressão dos índios encontra legitimidade na prática de juristas. Nessa perspectiva, infeliz é a conclusão de que os índios não possuíam motivos para se manifestar na Faculdade de Direito da UFC, que sob a luz de um ensino tecnicista e dogmático, forma juristas incapazes de realizar uma análise social crítica e de lidar com conflitos transindividuais.

Não é de se estranhar que a discussão tenha se restringindo a questões meramente formalistas, como a de que categoria de bem público pertence a Faculdade de Direito ou da exigência do aviso prévio para a realização de manifestações. Esta abordagem legalista, que passa longe de reconhecer a profundidade da questão indígena, mostra como ainda precisamos avançar para possuir uma educação jurídica de qualidade e que seja capaz de lidar com questões complexas, muito além dos concursos públicos ou das provas do exame da ordem.

Logo que chegaram à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, os índios se depararam com portas fechadas. Ademais, mesmo quando foi tentada a conversa com os funcionários da Universidade, foi dito, de maneira truculenta e intransigente, que a ordem foi de proibir a entrada dos indígenas. Vale ressaltar que os diretores do Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua (CACB) mantiveram uma postura bem parecida, principalmente quando expressavam a posição de manter os indígenas do lado de fora da FACULDADE com o objetivo de não atrapalhar o andamento da Semana do Direito que acontecia no AUDITÓRIO. A intransigência da atitude mostra como a Faculdade de Direito vem tendo uma relação cada vez mais distante dos movimentos sociais, que, na visão dos estudantes e da diretoria, apresentam, a priori, uma ameaça ao patrimônio da Universidade.

Lamentamos esse acontecimento e reconhecemos a importância de debater a questão indígena na Faculdade de Direito da UFC, abordando a sua totalidade e não reduzindo um fato político, como o caso da intervenção dos índios, a uma discussão abstrata situada no plano normativo das diferenças entre os tipos de bens públicos. Focados em debates abstratos voltados para os códigos, os acadêmicos do direito parecem não recordar que momentos importantes da história do Brasil passaram por ocupações de bens públicos de uso especial e que tal prática constitui em uma das poucas formas de pressionar instituições para que as demandas dos movimentos sociais se concretizem.

A forma limitada como vários estudantes e a direção da faculdade de direito lidaram com a situação é um forte indicativo de como a educação jurídica na UFC e em várias Universidades do Brasil ainda têm muito o que evoluir. Não é por acaso que boa parte dos processos de demarcação de terras indígenas estão estancados em instâncias do Poder Judiciário. Um primeiro passo é superar a arrogância jurídica e aceitar que nem todos os problemas possuem resposta na letra da lei. Se a situação dos indígenas passasse apenas pela questão legal, os índios cearenses, bem como os de todo o Brasil, não estariam até hoje travando lutas como a que foi travada na sexta-feira para possuírem suas terras demarcadas.

Como foi hipocritamente pontuado após a intervenção do movimento indígena, realmente a presença de todas as quatro etnias na Semana do Direito, assim como a leitura e a exposição de suas reinvindicações, engrandeceu bastante o evento. Dessa maneira, será difícil esquecer como “uma das melhores faculdades de direito do Brasil” ficou sem resposta diante de problemas concretos não abordados na produção hegemônica do conhecimento jurídico.

Finalmente, nós do CAJU gostaríamos de declarar o nosso repúdio ao comportamento de membros do Centro Acadêmico Clóvis Bevilaqua e da administração do curso, perante uma simples intervenção de um movimento social, que fisicamente não causou nenhum abalo às estruturas da faculdade, embora tenha exposto o quão frágil é a nossa educação jurídica destaque no ranking da OAB.

“Teve um tempo que nós, para viver, precisamos nos calar. Hoje, nós, para viver, precisamos falar”.
(Pajé Luiz Caboclo – índio Tremembé do Ceará)

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