Elaíze Farias – Amazônia Real
De que maneira doenças como depressão e esquizofrenia atingem as populações indígena? Esse é o tema desenvolvido pelo professor de pós-graduação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Renan Albuquerque, no livro “Sofrimento Mental de Indígenas na Amazônia”, que foi lançado nesta semana.
A pesquisa de Renan Albuquerque foi realizada a partir de sua vivência pessoal e profissional com duas etnias indígenas da Amazônia – sateré-mawé e hixkaryana – cujos territórios estão localizados nos municípios de Parintins, Barreirinha e Nhamundá, no Amazonas, divisa com o Pará.
Inicialmente, o livro será distribuído para Programas de Pós-Graduação da UFAM e da Universidade de São Paulo (USP). A publicação tem formato digital e é gratuito. Segundo Renan Albuquerque, o livro marca a criação do Laboratório de Editoração Digital do Amazonas (LEDA), que integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (NEPAM).
“Sofrimento Mental de Indígenas na Amazônia” é editado segundo padrões das plataformas Open Journal System e Creative Commons 3.0, que possibilita o acesso livre às publicações. Ele será disponibilizado no site da Revista Eletrônica Mutações, a partir do próximo dia 10 de maio.
Renan Albuquerque, que é colunista da agência Amazônia Real, é graduado em jornalismo, tem mestrado em psicologia e doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia. Atualmente é professor do colegiado de Comunicação Social/Jornalismo da UFAM no município de Parintins (a 369 quilômetros de Manaus). Em 2013 passou a integrar, como professor permanente, o Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/Ufam). Antes de ingressar na carreira acadêmica, atuou durante 10 anos nas redações dos jornais de Manaus.
Albuquerque explica, na apresentação de seu livro, que sua pesquisa procurou observar em que medida a migração aldeia-cidade tende a influenciar na dinâmica do cotidiano e no ordenamento da qualidade de vida individual e coletiva de ameríndios situados em regiões consideradas não tradicionais do Baixo Amazonas, leste do Estado do Amazonas.
Ele afirma que o trabalho foi orientado a partir de vivência social e integração humana nas sedes municipais da região, o que possibilitou reflexões acerca da situação dos aldeados das terras Andirá-Marau (sateré-Mawé) e Nhamundá-Mapuera (hixkaryana), reconhecidamente em trânsito nos ambientes citadinos dos municípios de Parintins, Barreirinha e Nhamundá, na bacia do baixo rio Amazonas.
“Os municípios vêm recebendo aportes significativos de índios que migram por motivos diversificados, sendo inúmeras as vidas vividas mediante o signo da reconstrução. O cotidiano de indígenas, a partir do momento em que saem das aldeias e experimentam o universo ocidentalizado, tal e qual ele se apresenta, tendeu a ser pensado sob perspectiva de marcos teóricos interdisciplinares, aproximados à psicologia sociocultural e etnologia”, explica.
A pesquisa recebeu financiamento do Banco Santander, por meio do edital Santander Universidades. Renan Albuquerque, 34 anos, concedeu entrevista exclusiva à agência Amazônia Real sobre sua pesquisa. Leia a entrevista:
O que levou você a pesquisar sobre este tema?
Moro em Parintins desde 2009, onde é comum encontrar indígenas migrantes Sateré-Mawé e Hixkaryana no dia a dia. Essa vivência – e o interesse por populações indígenas desde quando atuava em redações de jornais em Manaus – fez com que eu me voltasse à temática da pesquisa, cujo segmento tem sido abordado sobretudo por cientistas da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), como Luiza Garnelo e Maximiliano Souza, da USP, a exemplo de Dominique Gallois, e Aparecida Vilaça, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, para citar algumas pessoas.
A ideia da pesquisa surgiu a partir de sua observação da realidade dos indígenas? Algum fato específico chamava sua atenção?
Temas relacionados à transtornos mentais me chamam atenção desde quando iniciei o mestrado em Psicologia, em 2006, na Universidade Federal da Paraíba. Mas só depois do doutorado consegui financiamento e apoio de outros pesquisadores para iniciar estudos na área. Cito, particularmente, incentivos dos Drs. Danilo Guimarães (psicologia) e José Guilherme Magnani (antropologia), ambos da USP. Quanto a um fato específico que me levou a efetivar a pesquisa, isso ocorreu em 2012, quando um amigo apresentou quadros persistentes de depressão e ânsia de suicídio, e só então notei que o problema era coletivo em Parintins e também relacionado a índios migrantes.
De que forma os deslocamentos (migração) dos indígenas de suas comunidades de origem para um centro urbano, as diferenças e os impactos socioculturais podem afetar e influenciar nas alterações psicológicas?
Os resultados parciais da pesquisa indicam que há quatro fatores que tendem a fomentar transtornos mentais entre migrantes sateré-mawé e hixkaryana. São eles: a moradia, o contato com o outro, a barreira linguística e a solidão na urbe. Evidente que os contextos diários de enfrentamento desses problemas são diferentes de pessoa a pessoa e nem todos que passam tais dificuldades desenvolvem transtornos. Mas essas questões representam “gatilhos” a impulsionar delírios, depressões, obsessões, esquizofrenia e ansiedade em variados graus.
Como você conceituaria o “sofrimento mental” entre os indígenas, sob os paradigmas do conhecimento ocidental?
Na área da psicologia cultural, o sofrimento mental tende a ser considerado todo e qualquer transtorno psíquico marcado por delírios, devaneios ou desvarios em graus diversos. Muitas doenças caracterizam o sofrimento mental de indígenas no Baixo Amazonas, porém a mais comum atualmente é a depressão orientada por fatores socioculturais.
As doenças psíquicas entre os indígenas possuem os conceitos e influências culturais entre os não-indígenas?
De forma alguma. Muitos estudos já indicaram que os conceitos de saúde e doença são diferentes para indígenas e não-indígenas, bem como são diferentes os conceitos de bom, belo, riqueza, poder etc. entre sociedades mundiais. Contudo, os estados mentais de sofrimento dos índios migrantes são parecidos com os das pessoas da urbe porque se formam a partir de problemas similares. Daí decorre a grande questão: em que medida essa similaridade do problema representa também uma similaridade para a solução? Em outras palavras, até que ponto devem ser tratados igualmente os transtornos mentais dos indígenas via medicamentos sintéticos, assim como se faz com a população não-indígena?
As patologias de saúde mental entre os indígenas têm tratamento? Como eles são atendidos?
Tem tratamento, sim, e é feito na maioria dos casos em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) localizados em áreas urbanas próximas a aldeias. Os índios são internados para receber auxílio na cidade de forma voluntária e quando se sentem melhor, em geral, escolhem voltar às aldeias. Quando pioram, retornam à urbe. Eles ficam nesse trânsito. Em suma, o que ocorre hoje é muito mais uma tentativa de efetivar tratamentos por meio de remédios prescritos por médicos psiquiatras em ambientes urbanos do que buscar auxílio na medicina tradicional indígena nas aldeias. Com isso, não estou afirmando que o tratamento via medicamentos sintéticos é inadequado para os tradicionais, só que ele vicia quimicamente de forma avassaladora o corpo e a mente dos indígenas.
Diante da precariedade do atendimento à saúde indígena para doenças de natureza física, como tratar uma doença de ordem psíquica?
No livro, tenta-se fazer uma reflexão sobre as possibilidades de tratamento xamânico, concomitante à prescrição de remédios para sofrimentos mentais leves, medianos e até mesmo graves. Eu tive notícias de ações de pajé que deram certo e amenizaram delírios esquizofrênicos de pacientes indígenas. Para mim, isso foi animador. Por isso, penso que referente a quadros estáveis de ansiedade e depressão os trabalhos de pajelança são essenciais.
Você identificou casos de suicídio entre os doentes?
Houve o caso em que uma menina de 8 anos tentou suicídio se atirando de um barranco. Ela não conseguiu se matar. Foi encontrada inconsciente, muito machucada, próximo à área do Porto da Francesa, em Parintins. Após se recuperar, no hospital, ela disse que se jogou nas pedras porque queria morrer e encontrar seu pai, já falecido, pois ele a estava chamando em sonhos. Ela disse também que quis morrer porque não conseguia voltar à sua aldeia natal para fazer trabalhos de pajelança em memória da alma de seu pai.
Houve algum aumento nos transtornos mentais de indígenas na região de estudo nos últimos anos?
Não podemos falar em aumento ou diminuição porque infelizmente não há uma série temporal de registros. O que há são dados de 2010 até hoje. Temos de esperar ao menos uma década para postular comparações.
Dos transtornos mentais mencionados na pesquisa, quais os mais comuns?
Depressão e ansiedade são os sofrimentos mais comuns em todo o mundo. Quanto aos familiares de indígenas com transtornos, duas situações se configuram: em um cenário, há famílias que cuidam de seus doentes; noutro, há famílias que abandonam seus doentes para que eles morram.