Ainda antes de os filmes terem sido usados, em Angola, como uma arma pelos movimentos de libertação, já um cinema de causas – militante – ensaiara um contributo para a criação de um verdadeiro cinema angolano. Será abusivo afirmar que a primeira causa do movimento cineclubista em Angola foi a de, através da educação para o cinema e pelo cinema, criar um cinema angolano?
Por Maria do Carmo Piçarra, em Buala
Depois de, no primeiro volume, subintitulado «O cinema do império», termos procurado mostrar as visões que, através do cinema de ficção e documental, o colonialismo português propos sobre Angola, este segundo volume retém um vislumbre de um olhar corte-de-navalha – como o proposto por Buñuel com Un chien andalou – nascido da militância, do uso do cinema como arma política.
Em «O cinema é uma arma» enceta-se, pois, um trabalho de redescoberta de filmes militantes que têm permanecido invisíveis participando, naturalmente, num movimento de revalorização e releitura de obras de autor com um ponto de vista político, como a de Sarah Maldoror. Complementar e cruzar o visionamento das obras acessíveis e a leitura de documentação inédita sobre outros filmes com a recolha de testemunhos foi a metodologia escolhida e evidencia que, também quanto a este tema, este é o primeiro inventário possível.
A panorâmica sobre «A alvorada do cineclubismo», feita por Paulo Cunha, sublinha bem como a militância se faz, também, a partir desse movimento. Os cineclubistas estavam conscientes da inexistência de um cinema angolano, de quais os «vícios» dos filmes feitos em Angola e, em alguns casos, faziam explicitamente a apologia de um cinema de intervenção. A investigação de Cunha é complementada e integrada historicamente pelo ensaio de Jorge Cruz «O filme de família nos últimos anos da Angola colonial», que assumiu o difícil desafio de estudar os filmes amadores e de família numa fase em que estes começam a ser depositados nos arquivos estatais e valorizados como objecto de estudo.
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Antes do ensaio de Joana Pimentel «Imagens de Angola colonial na colecção da Cinemateca Portuguesa», essencial para conhecer os títulos existentes no arquivo português, detentor da maior coleção de filmes feitos em Angola durante o colonialismo, Leandro Mendonça aborda a produção deste «cinema sem laboratório». Trata-se de uma reflexão sobre a exibição possível em Angola ainda antes da independência integrando a pesquisa, com base em testemunhos orais, numa perspectiva sobre os modos de produção de cinema em África.
Esta panorâmica integra os olhares de vários homens que viveram de modos diferentes a aventura do cinema em Angola: o de Fernando Costa que, em «Uma vontade de cinema», entre outras histórias, esclarece como filmou a sequência de ficção de um dos sete filmes ambientados em Angola; os de Júlio Pereira e António Pinto de Carvalho, em conversa sobre as atividades do Cineclube Universitário de Luanda; o de Manuel Rodrigues Vaz, o primeiro crítico de cinema em atividade em Angola; o de António Escudeiro, que conta como, a propósito do aniversário da cerveja Cuca, quis mostrar Angola, Terra do Passado e do Futuro e o de José Fonseca e Costa, cujo Regresso à Terra do Sol é o mote para uma conversa sobre «cinema, merengue e censura».
Regresso à terra do sol: cinema, merengue e censura
Regresso à terra do sol (1967) deveria ser só uma celebração, modernista, da nova sede do Banco Comercial de Angola, em Luanda. Com esta curta-metragem José Fonseca e Costa quis, porém, fazer “o percurso entre o passado e o presente, ao ritmo da memória”. O Concerto de Aranjuez dá ritmo à evocação da “cidade europeia nos trópicos, flor artificial numa das mais belas baías da costa de África” enquanto o merengue serve de fundo à fixação da vida, de trabalho, dos homens e mulheres da terra do sol. Terá sido por esses “instantâneos” e devido ao olhar – um olhar em que há, finalmente, cinema – que foi retirada do Monumental, logo após a estreia?
Qual é a história do seu Regresso à terra do sol?
José Fonseca e Costa – Em 1966 inaugurava-se em Luanda um edifício mandado construir por um banco que pertencia ao Banco Português do Atlântico e se chamava Banco Comercial de Angola. Era o primeiro edifício feito em altura em Luanda, na parte baixa da cidade, não longe do Banco de Angola. O banco resolveu fazer um filme sobre o novo edifício de Luanda. Provavelmente lembraram-se de me convidar porque, na altura, fazia bastantes documentários, filmes de publicidade e, além disso, era angolano. Antes de aceitar, hesitei. Porquê? Porque sendo militante anti-fascista, estando ligado ao MPLA, estando a decorrer em Angola uma guerra sangrenta na qual estavam a morrer alguns camaradas meus, pensei: “Fica-me mal se fôr a Angola!”. Tive um grande problema de consciência com isso. Pessoas a quem estava muito ligado – família e amigos meus, empenhados na luta política – [disseram-me]: “Deves ir. Não sejas trouxa. Vai. Vai”. “Então, está bem. Vou.” Isso depois de ter tido uma conversa com uma pessoa, o Orlando da Costa, que acabou por ser quem escreveu o texto do filme e que também tinha acompanhado a criação dos movimentos de libertação de Angola, que ocorreram aqui em Lisboa antes de 1954.
Fazíamos parte do mesmo grupo: Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Amílcar Cabral. Andávamos por aí a conspirar por Lisboa, estando ligados, também, ao MUD juvenil. Eu tinha estado na URSS a representar o Movimento Anti-colonial – que resultava de todos os movimentos em embrião e depois levou à criação do PAIGC, do MPLA e da FRELIMO num festival da juventude, em 1957. Portanto, era militante do MPLA. O Orlando disse-me: “Acho que deves ir”. Perguntei-lhe: “Queres fazer o texto?”. Falei com os homens do banco e eles deram-me inteira liberdade para fazer o filme. Tinha que mostrar o edifício, claro está. Querem que o mostre no seu conjunto, ou seja, onde é que ele está implantado, como é que está implantado, interiores, mas fico com liberdade para depois fazer o que quiser. Inventámos um título para o filme. Este é o meu regresso a Angola. Há muitos anos que não ia lá. Vivi lá até aos 11 anos. Sou angolano de quinta geração. De modo que é o Regresso à terra do sol.
Porquê “terra do sol”? Tem algo a ver com Deus e Diabo na terra do sol, do Glauber Rocha?
Não. Nasci a 1800 metros de altitude, num dos sítios mais bonitos onde já estive, onde começa o planalto em Angola. A linha do comboio sai de Benguela, vai subindo, vai subindo, chega a uma serra – que é a serra da Caála – e, de repente, quando se está em cima da serra, estende-se, à frente, uma enorme planície. É o planalto, que acaba no Lubango com a queda da Tundavala, que cai mil metros. No sopé dessa serra fica a Caála, a terra onde nasci e que é uma espécie de paraíso. Vivi aí até aos 11 anos. De maneira que os elementos da natureza tinham muita importância para mim e os principais eram as estrelas… À noite, as estrelas estavam à nossa mão. Era como se, levantando o dedo, pudéssemos tocar nelas. E era o sol e a chuva. O Regresso à terra do sol era o regresso à minha terra, uma terra onde os elementos da natureza tinham, para mim, a maior importância.
Chego a Luanda em 1966. Era uma cidade absolutamente incrível. Era a cidade onde você sentia que havia um clima muito crispado que levava as pessoas a caírem num tipo de vida desenfreado. Como se fossem viver o último dia da sua vida. Luanda era a cidade mais frenética do mundo. Uma vez, falando com um americano e comentando isso, ele dizia-me: “Isso era o que acontecia em Saigão, quando havia a guerra”. Também havia em Luanda muitos cabarets. Era uma coisa incrível. E restaurantes magníficos. Depois aquilo estava povoado por uma série de militares que estavam à espera de ser mandados para a frente ou de serem enviados para aquilo a que se chamava a metrópole. A guerra, nessa altura, começava a estar neutralizada em Angola, ou seja, os movimentos de libertação – ou o principal movimento de libertação, que era o MPLA – tinham sido rechaçados para as fronteiras. Angola tinha índices de crescimento brutais. Era uma terra de uma riqueza incrível. Tinha, portanto, um teor de vida onde a componente lúdica era fora de série. Agarrei na máquina de filmar, filmei o que tinha que filmar e que fazia parte do caderno de encargos no que respeita às obrigações de filmar aquele edifício…
Esteticamente fez-me lembrar o Tati e o Play Time (Tempos modernos)…
Está-me a dizer uma coisa na qual nunca pensei. Depois agarrei na máquina e fui para o meio do mato. Recolhi imagens que correspondiam a rememorações de coisas do meu tempo de juventude. O filme é feito como lhe estou a dizer. Cumpri as minhas obrigações no que diz respeito ao edifício e depois filmei aquilo que me apeteceu filmar, principalmente de angolanos no trabalho. As lavadeiras, os meninos da ilha, aquela vida não propriamente idílica que alguns portugueses diziam que havia em Angola e que estava lá generalizada, e que não era, e que recolhi com inteira liberdade e como me apeteceu. Voltei para Lisboa e montei também o filme como me apeteceu, com o texto do Orlando da Costa.
Na ficha técnica o Fonseca e Costa também surge como autor…
O autor principal é o Orlando. Limitei-me a fazer uns acrescentos ao texto do Orlando visto que havia no filme coisas que não tinham sido faladas entre nós e que acrescentei. Depois, fui buscar para ilustrar o filme o Concerto de Aranjuez, do Joaquín Rodrigo, e uma musiquinha que está lá. Numa altura em que estávamos a filmar no meio do mato, numa aldeia não longe da Gabela, na qual nos tínhamos embrenhado – que você percebia que era uma aldeia de pessoas que tinham sido rechaçadas do seu sítio para se irem colocar ali –, a certa altura descobri uma série de meninos a cantarem um merengue. O merengue não nasce em Cuba. O merengue nasce em Angola! Ouvi-os cantar aquilo e disse: “Tenho que gravar isto”. O técnico de som não estava. Tínhamos saído eu, o Elso Roque, que era o director de fotografia, e um ajudante, mas não tínhamos trazido connosco o técnico de som. Tinha o gravador, tirei-o do bolso e gravei aquela música: “O merengue chora”. Meti a música no filme. Aquilo foi gravado em muito más condições.
No início do filme, e antes de começar a filmar o banco e seus interiores, mostra uma parte da cidade que está a ficar arruinada, com casas em estilo luso-tropical…
Completamente arruinadas.
E o comentário, que é feito pelo Costa Macedo, explica que aquela é uma Luanda que está, dia a dia, a desaparecer. Foi essa parte, ou terá sido aquela em que fixou as pessoas a trabalhar, que resultou em problemas com a censura? Consta, pelo menos, que os teve.
Sim, o filme foi estreado no Monumental e ao fim de uns dias de exibição foi retirado. Sem me terem sido dadas quaisquer explicações. Como imagina, calei o bico. Já tinha estado duas vezes na prisão. Tinha um forte cadastro na PIDE.
Nunca ninguém lhe explicou?
Não, e também não quis saber. Só por ordem da Inspecção Geral dos Espectáculos é que aquilo pode ter sido retirado e não me mexi. Fiquei quietinho. A última coisa que queria é que descobrissem em que é que andava envolvido.
O seu filme é dos poucos, se não o único, que vi daquele período em que efectivamente há cinema. Em geral são filmes de propaganda sem olhar… Mesmo quando são filmes de promoção a actividades económicas, são filmes pouco elaborados.
Tirando, provavelmente, os filmes que o Jean Noel Pascal-Angot lá filmou.
Os filmes feitos pelo Pascal-Angot, mas também os do Jean Leduc, são filmes à parte, de facto, mas optam pelo registo da reportagem.
Conheci muitíssimo bem o Pascal-Angot. Era uma pessoa simpatíquissima. Vivia aqui, tinha muitos amigos estrangeiros, franceses. Um dos meus grandes amigos era o Alain Oulman, de origem francesa. O Jean Noel Pascal-Angot entra em contacto comigo por intermédio de um amigo do Alain. Telefona-me…
Ele era francês ou belga?
Belga mas estava instalado em Paris. Eu ia muito a Paris e muitas vezes encontrava o Pascal Angot. O Jean Noel Pascal-Angot filmou o país inteiro. Devia ser pago a peso de ouro. Agora, os filmes que ele fazia eram, de facto, de uma qualidade técnica muito grande e, do ponto de vista da promoção publicitária, deviam ser muito eficazes. Era um homem muito simpático, tinha a plena consciência daquilo que estava a fazer… Houve a suspeita de que trabalhasse para a CIA ou para Serviços Secretos. Não me parece que isso fosse verdade. Trabalhava pura e simplesmente para ganhar dinheiro e para fazer bem uma coisa em que não acreditava muito mas que fazia porque lhe trazia dinheiro.
Nunca conheceu o Jean Leduc?
Então não conheci o Jean Leduc?! A diferença é que o Pascal-Angot era um tipo interessantíssimo, muito inteligente, sabia bem o que estava a fazer. O Jean Leduc era medíocre. Fez um filme em Macau, também.
Quanto ao Regresso à terra do sol, depois dessa exibição no Monumental, nunca mais foi exibido?
Nunca mais.