Prefeitura tem oportunidade única de transformar prédios abandonados em moradias, livrando-se das construtoras e do risco de segregação. Alternativa passa por aluguel social
Por João Sette Whitaker, em seu blog
Até onde sei, a Prefeitura adquiriu, na gestão passada e por meio da Cohab, alguns poucos edifícios vazios na área central, que foram desapropriados para fins de moradia social. Esses edifícios fazem parte de um grupo maior, de cerca de 50 prédios, já levantados e indicados por serem passíveis de reabilitação para uso habitacional.
Não soube de nenhum, entretanto, que já tenha sido transformado para o novo uso. Parece que a Cohab empenha-se em fazê-lo com dois prédios que eram antigos hotéis, fazendo neles moradia com aportes do Programa Minha Casa Minha Vida. Tomara que dê certo, e rapidamente. Porém, não sei se irão para a chamada “faixa 1?, de baixa renda, ou se acabarão sendo vendidos para uma faixa acima, como é de hábito.
Acho, entretanto, que a Prefeitura tem a faca e o queijo na mão para promover uma inédita e fundamental política habitacional na área central. E não é exatamente a proposta de Parceria Público-Privada que foi apresentada em conjunto com o Estado. Uma proposta própria, independente e bem mais democrática.
Tudo bem, o Estado que vá trabalhando em sua proposta de PPP para o centro expandido. Se pode por um lado até promover alguma renovação urbanística, com uma diversificação de usos (comercial nos térreos e habitacional nos pisos superiores), ela é porém claramente voltada para as classes média e média-alta. Visa uma faixa salarial muito superior à da população efetivamente mais pobre, e não promove a reabilitação de edifícios usados (mais racional e sustentável), mas privilegia a construção de novos, o que sacia o apetite do mercado imobiliário. Além do mais, a proposta da PPP mostra soluções de projeto urbano bem longe de serem aplicadas na realidade, pois não resolvem um nó central, que é o fundiário. Mas essa é outra história.
Em outras palavras, a PPP pode ser uma política urbana, bem amarrada para os interesses econômicos mais poderosos, mas definitivamente não é uma política que aborde a questão mais premente em nossas cidades, que é o enfrentamento da radical e vergonhosa segregação urbana, que relega os MAIS pobres sempre para longe.
Como já é sabido, essa segregação faz com que no centro de São Paulo (não o expandido, o centro velho mesmo) tenhamos centenas de edifícios abandonados e ilegais (porque não cumprem a sua função social ao ficar sem uso), enquanto que milhares de paulistanos de classe muito baixa, que trabalham nos empregos populares do centro, e reivindicam inteligentemente o direito de morar perto de seu trabalho (promovendo o reequilíbrio dos fluxos de mobilidade que o Prefeito tanto quer), não têm oferta de moradia para sua renda. Em movimentos organizados, há décadas que ocupam os prédios abandonados para evidenciar o descalabro dessa ausência absoluta de política pública habitacional no centro.
É claro que para essa gente a PPP do centro (expandido) pouco oferece. No papel, o projeto apresentado fala em 2 mil unidades nessa enorme região para os movimentos, do total de 22 mil previstos. Muito abaixo, portanto, da proporção dos mais pobres na composição social.
Ao mesmo tempo, no início desta gestão, havia nada menos do que 28 mil pessoas vivendo com as chamadas bolsas-aluguel. Um atestado de incompetência da política habitacional nas gestões anteriores. Pessoas que recebiam da prefeitura, como “solução” de moradia, uma limitada bolsa para alugarem por aí algum espaço para morar.
Pois bem, por que a Prefeitura não pega, por conta própria e independentemente da tal da PPP, esses 50 prédios vazios que ela já repertoriou, e continua as desapropriações que ela havia começado a fazer (em pouquíssimos prédios, menos de meia duzia, pelo que sei), promovendo imediatamente sua reabilitação e destinação para habitação para a renda muito baixa, por meio de aluguel social?
Como disse, ela tem a faca e o queijo na mão. Claro que o problema sempre alegado é o da falta de dinheiro… mas neste caso não é impossível tentar montar um programa de habitação diferenciado de locação social que busque recursos internacionais ou mesmo, por que não, do Minha Casa Minha Vida. O MCMV não prevê financiar para locação. Mas uma prefeitura com a força de São Paulo teria como estruturar uma nova política nesse sentido e negociar essa modalidade junto ao governo federal, para equacionar, entre financiamentos e recursos próprios do fundo de habitação, a compra dos edifícios e sua reabilitação,e posteriormente subsídios para ajudar no aluguel. Sem contar os inúmeros prédios vazios que devem horrores de IPTU e que deveriam ser objeto de desapropriação imediata. Sem contar a lei de Dação em Pagamento, que nesses casos também poderia ser aplicada. Com o tempo, a Prefeitura poderia aplicar também o direito de preempção sobre prédios abandonados, aumentando seu parque locacional e assegurando, a longo prazo e independentemente da ação do mercado imobiliário, a existência de oferta habitacional para os mais pobres na região central.
Mas por que promover o aluguel social e não vender as unidades, como se faz habitualmente e como a princípio MCMV o recomenda?
Se há 28 mil pessoas morando com a bolsa-aluguel, na prática significa que a prefeitura já faz aluguel social, com a diferença que não oferece ela mesmo as habitações para alugar. Fazer locação permitiria à prefeitura constituir um parque habitacional próprio na área central, utilizável a longo prazo. Se as famílias ascenderem socialmente com o tempo, deixarão as unidades que serão então ofertadas para novas famílias de baixa renda. Estará sempre garantida uma oferta de moradia a baixo preço no centro, regulando também para baixo a valorização imobiliária da região, e democratizando o uso da região. Em suma, permitiria uma coisa que até hoje nenhuma prefeitura brasileira fez: constituir um estoque fundiário e imobiliário para garantir o acesso dos mais pobres à moradia, com a vantagem de que esse estoque é perene, sendo sempre de propriedade da prefeitura, que o aluga.
É claro que tudo isso só tem interesse por ser uma forma do Poder Público garantir o direito de moradia no centro para os mais pobres. Ou seja, tergiversações que elitizem o processo não interessam, pois tiram toda sua força. Depois de selecionar e desapropriar uns poucos prédios, a gestão passada acenou para uma política direcionada. As novas habitações teriam perfil “social” no sentido de que não eram para o mercado de alta renda, mas assim mesmo seriam destinadas a setores específicos, na verdade de classe-média: funcionários públicos municipais que trabalham no centro, bombeiros e policiais militares, etc. Claro que a oferta para esses segmentos é também importante. Mas eles têm condições de acesso à propriedade por meio de outras políticas, como a da PPP do centro, ou o MCMV. A locação social nos edifícios públicos deve ser destinada exclusivamente à população de muito baixa renda.
Aliás, se já há nem que sejam 4 ou 5 prédios desapropriados (alguns antigos hotéis, aliás), a prefeitura já teria como oferecer uma boa centena de unidades habitacionais em locação, em prazo razoavelmente curto, desde que se faça rapidamente a adaptação dos prédios para o novo uso.
Na gestão Marta Suplicy, a SEHAB promoveu e avançou muito no campo das técnicas construtivas para fins de reabilitação, contando com o auxílio de técnicos franceses. Vale observar que, na só França mas na Europa em geral, cerca de 50% de toda a atividade da construção civil é de reforma e reabilitação de imóveis. A sanha pela construção nova não é comparável à do nosso mercado imobiliário, que como diz Caetano, “ergue e destrói coisas belas”. Lá, o setor privado foi criando, com o tempo, um novo mercado, muito rentável, de reformas e requalificações de edifícios antigos.
Seria possível envolver o Instituto dos Arquitetos do Brasil – IAB para promover concursos para a reabilitação desses edifícios. Na universidade, há muita disponibilidade para se lançar estudos-piloto de reforma de prédios, pesquisando tecnologias específicas para tal. No mercado da construção, há quem se interesse em avançar nesse novo campo de atuação, pesquisando novos materiais específicos para reforma, e técnicas construtivas para esse fim.
É claro que a grande dificuldade está em estruturar uma política de locação, que sobreviva às mudanças de gestão. Na última tentativa, feita pelo governo Marta no Parque do Gato, a política de aluguel foi abandonada logo na gestão seguinte. Como sempre, o que é bom em uma gestão é sistematicamente destruído quando um novo governo entra, para não deixar as “marcas positivas” do concorrente político. No caso da locação, é mais fácil, pois basta abandonar a política. Como a locação depende de gestão constante e aproximada desse parque locacional que é propriedade da prefeitura, ela só funciona se bem estruturada e perene. Mas nada muito mais difícil do que a gestão de 28 mil contratos de bolsa aluguel pela cidade.
Os prédios estão aí. Uns poucos já são propriedade da COHAB e podem ser rapidamente destinados a lançar uma política consistente de locação social no centro. Por conta própria, além da PPP ou de outras iniciativas para recuperar a cidade. Com a diferença que esta sim seria, de fato, uma política efetiva de promoção da reforma urbana e de uma cidade mais democrática.
–
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.