Manifestações políticas da juventude exprimem sensação de orfandade simbólica de uma geração que não se sente representada pela política tradicional e busca inventar novas formas de expressão.
Por Inez Lemos, em Estado de Minas
Toda relação social é determinada por um discurso e o discurso que permeia o debate sobre a violência, na sociedade de mercado, aponta para o vazio, a falta de sentido e, portanto, de perspectiva. Como enfrentar o problema atacando apenas suas manifestações? Propostas de combater a violência com carros blindados, polícia e cerca elétrica deflagram o quanto a sociedade não está interessada em desvelar a questão até as raízes. Se ninguém nasce violento, é de se perguntar: em que medida o Brasil produz o delinquente, o vândalo – monstro que espalha terror?. Como evitar que eles se reproduzam? Sabemos que a questão é complexa e começa dentro das casas, nas famílias, e esbarra nas políticas públicas, instituições de ensino, mídia. Arranha todos nós, deixando de ser apenas uma questão de segurança pública, para ser uma questão subjetiva – diz das formas de subjetivação social, pois educar um filho é função social.
Todo país, como toda família, deve se sustentar em parâmetros filosóficos e sociológicos, os quais nortearão os rumos a seguir. Uma sociedade que prima pela competição, pelo desejo do ganho fácil, que prega a inveja e não a solidariedade, o que esperar de seus cidadãos? Prevenir – ver antes, agir por antecipação. Ao nos prevenir contra a violência, o melhor é ouvir os anseios do filho e considerar as demandas com seriedade. O cenário mostra crianças nas periferias que crescem sem perspectiva, convivendo com a polícia, que, muitas vezes, agride e mata mais que protege. Quais as chances de esse garoto se tornar um criminoso? É quando ele olhará o outro, o bem-nascido, com fúria, inveja e desejo de extermínio, uma vez que não recebeu carinho, tampouco um olhar de respeito e reconhecimento. Apenas lhe apontaram o lugar de negativo social. O que norteia o impulso agressivo é a identificação com um ódio pela criança que ele foi, uma infância de dor e sofrimento, exclusão e violência. Portanto, o outro, o que lhe confere ódio, deverá sofrer ainda mais, e nele descarregará toda a revolta pela injustiça social. Portanto, se realmente estamos interessados num Brasil melhor, devemos repensar nossa participação na sociedade – nosso compromisso por uma cidade melhor, uma família melhor.
Muitos dos jovens violentos são movidos a inveja, cujo conceito revela a forma como nos vemos no outro – olhamos o outro que nos incomoda. É quando desejamos ocupar o lugar desse outro e, não conseguindo, orientamos a ação no sentido de privá-lo daquele objeto ou lugar de privilegiado que ocupa. A inveja deflagra significantes como: compre, venha, participe, assine!. Todos são convocados a comprar a felicidade, um lugar de prestígio. E aos excluídos do banquete, o cacete! O revoltado, o desamparado, busca, muitas vezes, uma oportunidade de revanche contra a violência da qual foi vítima. Nunca combateremos a violência com cinismo e hipocrisia, fingindo que essa conta não é de todos nós. Os sofistas vão dizer que cabe apenas aos políticos, esquecendo-se que esses apenas legitimam interesses,o e se fazem malfeito, cabe a nós cobrar e protestar, como os jovens nesse momento. Nada mudará se nós não mudarmos, não repensarmos valores e práticas sociais. Será que realmente estamos dispostos a nos implicar em outras posturas, novos paradigmas? Como iniciar uma mudança de cultura, implementando micropolíticas – políticas de subjetivação? Como contribuir na formação de um novo sujeito, um novo brasileiro: humano, solidário, gentil, atuante e interessado nos conflitos individuais e sociais?
Todos devem se implicar. Os empresários – muitos podem devolver à cidade parte dos lucros aviltantes em forma de cultura, arte, fundações. As montadoras de carro podem contribuir com a qualidade do transporte público – chega de tanto lucrar no Brasil, país onde o carro é o mais caro do mundo. Como o oligopólio do transporte coletivo, que há anos enriquece e pouco devolve à população – nunca o olhar chega ao usuário. E as famílias se comportando melhor no trânsito – fila dupla nas escolas, até quando?. Seria muito sugerir que estacionem o carro e levem o filho até lá? Ética e cidadania ensinam-se com mais leitura e menos TV. O Brasil é um dos países onde menos se lê no mundo. Somente esticando o olhar à nossa volta, somente mudando o foco, posturas e paradigmas conseguiremos um país mais agradável para se viver. Sejamos realistas, exijamos o possível! É o Brasil no divã por um futuro melhor.
Erotismo e política O erotismo ganhou as ruas. Eros evoca paixão, fervor – garra em defender um país, uma causa. É o que presenciamos quando a geração Facebook, que fingia apodrecer diante da web, resolve dar lição de cidadania. Num só grito, rompe com o biopoder, quando confinava desejos e sonhos em apartamentos – espremendo utopia, esperança e coragem. Sim, eles estão lutando por muito mais que smartphone e iPad. Os significantes que emergem das ruas são: compromisso e respeito com o público. Não brinquem com o sentimento do povo, há algo no ser humano que não pode ser violado e que se chama dignidade. Não se fere com balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo o coração que pulsa na cidade. O país, ferido em seu narcisismo, sangra e exige perdão. Perdoar em política é assumir erros, rever prioridades. Aos políticos, cabe repensar suas práticas, pois a vida sem Eros é abismo, osso duro de roer. Sem o erotismo da juventude, o país brocha. Exigir reconhecimento é erótico, é desejar festa. Eros sabe apreciar a vida, gosta de bons vinhos, é amigo de Baco.
A cidadania metaforizada nos 20 centavos ultrapassa a escuridão, abre clareira e aponta rumos. A rua foi ocupada e nela registraram o recado – não desejamos o que vocês querem que desejemos. Há de haver o dia em que o filho terá um lugar no desejo dos pais. Gostamos de Copa, mas deveríamos definir prioridades, como saneamento básico, escolas profissionalizantes de qualidade, hospitais, planejamento familiar para as mulheres de baixa renda, políticas de fixação do homem no campo, visando desafogar as metrópoles. Governar é saber priorizar.
Onde a bandidagem é maior no país? O povo foi violentado e desrespeitado por aqueles que o deveriam proteger, amparar. Somos órfãos de pais vivos – políticos irresponsáveis, descompromissados e corruptos. Lutemos por um Congresso sério, políticos que trabalham por amor à pátria e não apenas para defender seus feudos e altos salários. Onde buscar um discurso que sustenta uma moral de princípios? Em Kant? Onde buscar forças para acreditar que a lógica perversa e cínica dos sofistas não irá prevalecer ao sofrimento dos desvalidos, aos protestos dos desamparados? O cinismo é a caricatura da moral iluminista – a guerra entre capital e trabalho, a falência do marxismo sob o espetáculo, a exploração e a manipulação. O fetiche da mercadoria virou contra os feiticeiros. Ninguém acredita mais em seus feitiços. A confraternização dos perversos com a exclusão dos pobres, negros e homossexuais está com os dias contados. Presenciamos a revolta dos filhos contra pais fundamentalistas e obscurantistas, que debocham dos direitos humanos – Feliciano e sua “cura gay”, entre tantas pautas descabidas e insanas.
A massa ressentida exige o fim da orgia. Exigir respeito é promover autoestima, é ser protagonista da história, registrando escolhas e propostas. Devemos ler o recado das ruas para além dos olhos. A frente fria de inverno chega anunciando: não queremos apenas bens de consumo. Nossos sonhos não cabem num micro-ondas. Desejamos ir além das montanhas – parem de nos propor o vazio, o nada que nos levará a lugar nenhum. Desejamos a essência – tocar a vida na plenitude, apreendê-la com sabedoria. Queremos sorver o conforto material e o existencial. Para tanto, estamos aprendendo a fazer política e pretendemos continuar na escola – revendo lições, debatendo propostas. Vale lembrar Freud e suas três profissões intermináveis: educar, governar e analisar. Tarefas que não se findam.
Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.