Por Pedro Kalil
Hoje uma pessoa morreu nas manifestações. E só dá vontade do silêncio.
Mas tem algo de uma responsabilidade linguística que é necessário dizer. Porque se vejo hoje no Brasil uma crise, é uma crise de responsabilidade com as palavras – ou a irresponsabilidade do silêncio.
O Sr. Anastasia concede entrevista defendendo a ação da polícia, mesmo que tenha deixado um morto. Esse morto era dos “pacíficos”? Quem era essa pessoa? E quem eram as outras pessoas que caíram do mesmo viaduto – recorrente em todas as manifestações?
Não existe aí um erro repetido de ação da polícia que faz com que pessoas caiam de viadutos? E, como é óbvio que existe, por que o mesmo erro é repetido seguidas vezes e ainda elogiado/defendido?
O Sr. Anastasia assina o óbito. O Sr. Anastasia ajuda a empurrar jovens de um viaduto ao não condenar fortemente a ação da policia que matou uma pessoa. O Sr. Anastasia comanda uma polícia que só janta molho pardo. O Sr. Anastasia é o cozinheiro do inferno e não se constrange com isso.
Uma pessoa morreu. Era jovem. Morreu porque estava na rua.
Horas depois, sem constrangimento e até orgulho, o apelidado Comandante Xuxa sai com trio-elétrico pela avenida, inaugurando a Sapucaí para carro funerário. E, sem a menor responsabilidade com as palavra, declara um golpe. Porque o que ele disse na Praça Sete de Setembro foi um golpe da polícia militar.
“Estamos devolvendo a cidade para as pessoas de bem”; “É um momento histórico de resgate da democracia”; “Saiam da rua e voltem para suas casas”. Se ele não tem controle de sua língua de fogo, envenenada pelo desejo de redefinição semântica das palavras – ou a novilíngua do estado dirigido pelo Sr. Anastasia -, o problema não é de quem escuta as palavras.
Ele tomou pra si a cidade e disse a quem ela pertence. Ele decretou o que é histórico e o que é democrático. Proclamou um toque de recolher do terror, do medo, da coerção. Ele deu um golpe no estado de direito, ele deu um golpe na democracia, ele reacendeu chibatas e troncos e pau de arara que virtualmente ecoou pelas ruas do centro de Belo Horizonte.
Isso tudo depois de prender pessoas por portar bolinhas de gude, skate, máscaras, livros “subversivos”.
Essa polícia é inimiga do povo. Não é o próprio povo como a irresponsabilidade das palavras de alguns tentam argumentar.
O fogo que ascende e queima à noite é signo do convite feito para o piquenique de sangue. Signo que recusa o convite, na verdade. Se for pra ser o sangue no asfalto é melhor a fumaça que tenta fazer uma nuvem de um formato qualquer.
Se a gente tivesse responsabilidade linguística, responsabilidade semântica, responsabilidade com as palavras, o comandante Xuxa deveria ser conhecido por um motim contra o povo de Belo Horizonte e, em última instância, do Brasil.
A Polícia Militar de Minas Gerais proclamou um golpe. A Polícia Militar de Minas Gerais, sob responsabilidade do Sr. Anastasia, é responsável por ter matado uma pessoa.
E ninguém, ou quase ninguém, se espanta com o silêncio do Sr. Anastasia. E ninguém, ou quase ninguém, se espanta com as palavras proferidas pelo Comandante Xuxa.
Se respeitássemos as palavras, os seus sentidos e suas construções, o que aconteceu hoje em Belo Horizonte foi a subserviência do significado ao aleatório. Voltamos ao mundo da pré-linguagem, onde gente grande brinca de representar e/ou defender pessoas. E, para fazer isso, mata uma pessoa. Ou, ainda, para coagir 100, 200, 500 pessoas, atacam 60 mil. Não parece difícil ver o erro de cálculo aqui.
Não, não foi fogo amigo. Aqui está claro quem está de um lado e quem está do outro lado. O Sr. Anastasia e sua polícia e do outro o povo a quem deviam defender.
Uma pessoa morreu. Ninguém está constrangido. Tudo isso, pra eles, parece que foi apenas um efeito-colateral para um objetivo qualquer que ninguém consegue entender.
E eles não estão nem um pouco preocupados com a responsabilidade das palavras. E agora devem estar dormindo, babando sangue jovem.
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Madrugada de 26 para 27 de junho de 2013.
Enviado por Vanessa Rodrigues para Combate Racismo Ambiental.