A guerra dos panos

13-06-24_silvia-viana_a-guerra-dos-panosSilvia Viana* – Blog da Boitempo

Diante das bandeiras do Brasil e do hino nacional sendo entoado a torto e a direito, pude observar duas reações diametralmente opostas: alguns exigem seu expurgo imediato e agridem aqueles que exibem esses símbolos, acusando-os de fascistas; outros enxergam, na maioria dessas pessoas, o resultado de duas décadas de despolitização, levada a cabo pela transformação da política em gestão. Apesar de essa segunda concepção ser a mais acertada, em termos de leitura dos campos em disputa, peca por manter a mesma despolitização ao ser condescendente (“eles ainda não estão formados”, “são jovens” etc.). Por trás dessa perspectiva, mal se oculta o medo de perder adesões, quaisquer que sejam. A solução seria, então, “ter paciência e educá-los”.

Esse debate se monta em termos de lutas simbólicas, que aparecem também no embate a respeito das bandeiras partidárias e na espantosa importância que subitamente adquiriram as cores de nossas vestes (!). A dança inócua dos tecidos também pode ser creditada na conta da política como administração. Boa parte das manifestações de rua que se viu em São Paulo nos últimos anos não negava apenas os partidos políticos, o simples fato de haver uma causa gerava desconforto, e até vergonha. O próprio sair às ruas e tomar parte, seja lá do que for, já era tarefa cumprida. Adotava-se, mesmo à revelia, o jargão midiático que passou a usar o termo “política” de modo pejorativo: “não podemos politizar a questão”.

É claro que não há luta política sem a disputa por símbolos, mas isso ocorre apenas quando eles simbolizam algo. Não é o caso das disputas que vemos se ampliar. Uma pessoa que vaia as bandeiras de partidos não necessariamente é a favor de sua abolição, pode simplesmente não se sentir representada – cá entre nós, não sem razão; do mesmo modo, muitos dos que vestiram a bandeira nacional fizeram-no de modo automático, ou até como escudo contra os tiros ferozes da PM (realmente vi, em alguns grupos que se organizaram para as passeatas via internet, esse conselho, ao lado do anedótico vinagre). Longe de definir campos políticos, essas falsas dualidades que estão tomando corpo confundem, dando abertura para rancores perigosos. Esses sim levam ao fascismo, pois não creio que a direita golpista esteja tão organizada quanto se teme.

O problema do fascismo, no entanto, está precisamente no fato de se alimentar de automatismos: ele prescinde da argumentação, é um movimento de justaposição de símbolos e rituais. Não nos esqueçamos que a ideologia nazista defendia, por exemplo, o industrialismo ultramoderno e também o retorno ao campo. As marchas e bandeiras acreditavam em nome dos sujeitos, a esses bastava participar. Isso significa que, para o fascismo, não é necessário convencer; e organizar não exige mais que aglomerar – símbolos, quaisquer que sejam, e pessoas, independentemente de sua origem social. Sendo assim, maior que a preocupação com um futuro golpe deve ser a atenção para os elementos fascistas que estão presentes, há muito tempo e imperceptivelmente, entre nós.

Caso prestemos mais atenção ao sinal de alerta do que àquilo que o acionou, corremos o risco de tomar o caminho mais óbvio: o retorno à “normalidade democrática”, incluindo aí uma aliança com os partidos da ordem. Pode parecer um caminho seguro, definitivamente não o é. A sensação decorrente de que nada mudou, e de que a esquerda teve que recuar, não apenas manteria a gestão do social, que é o verdadeiro nome da “normalidade”, como a aprofundaria – pois, ao poder instituído, caberia administrar, entre tudo mais, o medo de um novo fantasma: o Golpe. Tal “opção” – que de escolha não tem nada, pois segue se pautando pela chantagem do “menos pior” – paralisaria as forças inovadoras que surgiram e, de lambuja, negaria a crítica ao golpe cotidiano que a “normalidade” aplica. Trata-se de um dilema semelhante àquele vivido há anos em países europeus, nos quais a política se vê trancafiada entre o estado de emergência econômico e a direita fascista, que consegue articular a revolta difusa de diversas classes, incluindo as mais precarizadas.

No nosso caso, tais frustrações vêm sendo canalizadas, há muito tempo, em torno da pauta da corrupção: “eles” são vagabundos, não trabalham e roubam o nosso dinheiro. Há dois riscos graves nessa formulação: em primeiro lugar, ela pressupõe o trabalho insano ao qual estamos submetidos, como algo a ser valorizado acima de tudo. Em segundo lugar, nesse “eles” podem ser fixados políticos ou estudantes, presidiários ou indígenas, manifestantes ou beneficiários de programas compensatórios, tais como o “bolsa família”. Sendo assim, o potencial de atração dessa bandeira vazia não pode ser negligenciado.

Fugir ao fascismo significa abandonar, ao mesmo tempo, a lógica de gestão do social e a dança dos símbolos, que a ela serve conferindo-lhe a aparência de política. Contra os dualismos, cabe repor a contradição: o anticapitalismo. A verdadeira fonte das humilhações, do cansaço, da revolta deve ser posta com clareza e organizar toda e qualquer pauta de reivindicação de quem se afirma de esquerda – independentemente se o móbile para o posicionamento político é a mercantilização da vida, o consumismo desenfreado, o desmantelamento dos direitos sociais em nome do mercado, a exploração e precarização do trabalho, as novas formas de controle e vigilância de corpos e pensamentos, a espoliação da natureza, das cidades ou dos saberes, a humilhação social de minorias e um etc. no qual caberia praticamente tudo.

A crítica ao capitalismo não é uma bandeira a ser somada às demais, nem tem como ser, pois é a única chave capaz de articular as pautas e definir os campos de luta. Dessa perspectiva, não é necessário sairmos à caça de novas causas e bruxas – como eu tenho visto em muitos posts na internet: “não podemos sair das ruas, temos agora que pensar em outras reivindicações” –, como se precisássemos aproveitar o bom momento do mercado para ajustar oferta e demanda. O olhar anticapitalista permite ver que a primeira questão quanto à mobilidade urbana só surgiu agora: afinal, de onde virá o dinheiro que garantirá os R$ 0,20?

A resposta a tal pergunta tem a potência de definir todo o campo que ora se encontra cindido por símbolos ininteligíveis. Pois muitos dos que espancaram militantes de partido não acharão justo que o segundo carro de sua família seja sobretaxado, não obstante sua aparência radical. Por outro lado, muitos dos que brincaram de verde-e-amarelo, podem eventualmente entender que essa solução é o mínimo que se possa fazer. E a resposta em termos da redução drástica dos lucros das empresas de transporte, sem o repasse dos prejuízos para o trabalho infernal do motorista e do cobrador, pode soar escandalosa para inúmeros defensores das “liberdades democráticas”.

É apenas assim que se formam verdadeiros traidores de classe: não dando aulas ou espancando, mas apresentando opções políticas diante das quais o posicionamento seja inequívoco e a escolha apresente um sujeito político. Uma certeza: a passeata que exigisse a redução do lucro das empresas perderia muita adesão, mas não seria passível de apropriações espúrias. Essa passeata já seria, em si, uma crítica à Nação de bandeiras e hinos, pois a questão assumiria a forma da contradição primeira: a luta de classes.

*Professora de sociologia da FGV-SP. Graduada em ciências sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), possui mestrado e doutorado pela mesma instituição.

Enviada por José Carlos para Combate Racismo Ambiental.

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