Elaíze Farias Especial: Povo indígena do AM quase extinto pela Transamazônica quer investigação da Comissão Nacional da Verdade

Nilcélio Jiahui (à esq.) e o cacique geral, Pedro Jiahui. Foto: Arquivo Pessoal
Nilcélio Jiahui (à esq.) e o cacique geral, Pedro Jiahui. Foto: Arquivo Pessoal de Elaíze Farias

Por Elaize Farias

A rodovia Transamazônica (BR-23) não causou apenas imensos impactos ambientais. Ela também quase dizimou um povo indígena, os Jiahui, e reduziu drasticamente outro povo, os Tenharim.

Segundo relatos de lideranças Jiahui, mais de mil indígenas deste povo morreram entre o período de construção da estrada e a sua operação. Muitos indígenas foram escravizados pelos envolvidos na obra e o contato com pessoas vindas de outras regiões do país após o início da atividade da rodovia levou a quase extinção do povo devido às doenças desconhecidas pelos Jiahui.

A população dos Jiahui atualmente soma apenas 44 pessoas, segundo Nilcélio Jiahui, liderança indígena (leia entrevista abaixo).  Já para a Fundação Nacional do Índio (Funai), a população de Jihaui é formada por 88 pessoas.

Os Tenharim são um povo mais populoso: 700 pessoas, segundo a Funai. O território destas duas etnias está localizado no sul do Estado do Amazonas (em áreas vizinhas), na região do município de Humaitá.

Construída no início dos anos 70 como parte do planejamento do governo militar de “ocupação da Amazônia”, a Transamazônica destruiu grandiosas áreas florestais e provocou a migração de vários trabalhadores para a região.

Seu passivo ambiental é inquestionável e sua utilidade é praticamente zero em grande parte de seus trechos. No Amazonas, o estado precário da Transamazônica impede a sua plena trafegabilidade.

A mão de obra utilizada na construção da rodovia não se restringiu aos “brancos”. Indígenas foram forçados a trabalhar e suas mulheres, abusadas. Doenças transmitidas pelos trabalhadores e demais migrantes provocaram a morte de centenas de indígenas.

Comissão da Verdade

Mais de 40 anos depois da construção da estrada, os Jiahui e o Tenharim querem reparação dos impactos causados em suas vidas. Querem que o Estado reconheça que a sua quase extinção foi causada por um planejamento que não levou em consideração as populações que viviam na região. E também querem que sua história seja incluída na pauta da Comissão Nacional da Verdade da Presidência da República como mais um caso de violação de direitos humanos.

A CNV já realiza investigação sobre possíveis crimes contra povos indígenas de outras regiões do País. No Amazonas, um povo que está na agenda de investigação é o Waimiri-Atroari.

Inquérito

Há dois meses, o Ministério Público Federal no Amazonas informou que “instaurou inquérito para apurar a responsabilidade do Estado brasileiro por possíveis violações de direitos humanos cometidas contra os povos indígenas Tenharim e Jiahui, durante a construção da Rodovia Transamazônica (BR-230), no período da ditadura militar”.

O inquérito é assinado pelo procurador da República Julio José Araújo Junior, que também é o procurador-chefe do MPF no Amazonas. A decisão foi tomada após reunião do procurador com lideranças Tenharim e Jiahui que estiveram em Manaus (AM), entre elas, Nilcélio Jiahui.

Procurei o MPF para me informar sobre o andamento do inquérito. A assessoria de imprensa respondeu que um relatório está sendo elaborado pelo analista pericial em Antropologia da PR/AM Walter Coutinho, com as informações colhidas em entrevistas durante os três dias (4, 5 e 6 de junho) em que ele esteve com os Tenharim e os Jiahui, na semana do programa MPF na Comunidade em Humaitá (3 a 7 de junho).

Em paralelo, segundo a assessoria, o MPF/AM também está coletando documentos de antropólogos da Funai sobre o assunto para juntar ao inquérito e analisar o conjunto para decidir os próximos passos da apuração.

A assessoria diz que embora não haja vínculo direto entre a investigação do MPF e o da Comissão Nacional da Verdade, foi aberta “uma troca de informações e dados, mas não há obrigatoriedade de envio de cada ato mutuamente”.

“A prerrogativa de atuação judicial no caso dessas violações é privativa do MPF (a Comissão pode apurar e, se confirmar as denúncias, encaminha ao MPF para propositura de ação). Caso seja solicitado ou, após a análise, o procurador entenda que é o caso de encaminhar o relatório à Comissão, isso é possível. Mas como ainda não houve análise porque o mesmo ainda não foi concluído, não há como afirmar algo nesse sentido no momento”, conclui.

Nilcélio Jiahui me deu uma entrevista na semana passada. Aos 35 anos, Nilcélio Jahui é o principal interlocutor entre seu povo e a sociedade não-indígena, mas faz questão de enfatizar que não é a principal liderança entre os Jihaui. “As principais lideranças são os mais velhos, os caciques que estão nas aldeias”, disse. Leia a seguir a entrevista exclusiva para este blog:

Quais foram os impactos da Transamazônica na vida dos Jiahui?

Pelo que nossos “velhinhos” (lideranças indígenas Jiahui mais velhas das aldeias) contam foram mais de mil que morreram por conta de doenças e mortes mandadas por fazendeiros, grileiros e outros. Eram doenças como catapora, malária, tuberculose e rubéola, entre outras. O contato que fortaleceu estas situações para os Jiahui. Outras  consequências foi que devastou nosso território e acabou com os cemitérios  tradicionais onde estavam sepultado nossos parentes e pajés. Afastou os animais que fazem parte de nossa sobrevivência, prejudicou nossa cultura e desfez nossa organização social cultural milenar e fora o meio ambiente que foi devastado em nosso território.

Como se dava o contato com os “brancos” e em que circunstância ocorreu a transmissão de doenças aos indígenas?

As pessoas brancas pegavam os indígenas e os faziam trabalhar na abertura da BR por troca de alimentos, roupas, bebidas e influenciando as nossas mulheres no ato sexual com eles. Forçavam nossos parentes a trabalhar para eles construir a BR. As doenças chegaram mais quando teve a abertura da estrada e ficou forte por conta do contato com o branco que era constante porque eles entravam no mato e chegava até os nossos parentes. A circunstância era direta porque tinha muito branco perto dos indígenas. As doenças foram matando de um a um porque na época não tinha muito tratamento e os parentes não conheciam as doenças.

Houve muito conflitos?

O conflito era muito na época por conta que os posseiros que queriam tomar os territórios dos indígenas e tirar as madeiras de lei que têm na área. Até hoje ainda existe conflito nos territórios Jiahui e Tenharim.

Os Tenharim e os Jiahui sofreram algum tipo de ameaça ou morte por tiros, bombas, etc?

Várias vezes os indígenas tanto na época da abertura como nos dias de hoje sofrem ameaças. Já tivemos lideranças atirados por arma de fogo pelos brancos e atropelados por vários tipos de veículos na estrada.

O que vocês esperam que o MPF faça a partir deste inquérito? Que denuncie na justiça? Que encaminhe o caso para a Comissão da Verdade?

Nós esperamos que ele (procurador da República) veja o que aconteceu e ajude nós a fazer com que aconteça a justiça. Que aconteceu a injustiça com os Jiahui com a abertura da estrada e quase dizimou os Jiahui da face da terra. Queremos que a Comissão da Verdade consiga resgatar o acontecimento e descobrir como aconteceu a abertura da Transamazônica e a culpe pelo massacre que quase nos dizimou.

Vocês esperam que a situação vivida por seu povo naquela época seja tão conhecida quanto a dos Waimiri-Atroari?

Esperamos sim que a situação seja divulgada e conhecida. O governo quis acabar com os povos indígenas Jiahui e Tenharim na época mas nós conseguimos resistir e estamos até hoje e o governo tem que pagar por isso regularizando a compensação para os indígenas Jiahui e Tenharim. Quero que você escreva isso na para que todos conheçam o que o governo anterior fez e o atual esta fazendo com os Jiahui e Tenharim.

Qual a população do povo Jiahui atualmente?

É de 44 pessoas, mas moram outros povos em nossa aldeia, que tem uma população de 120 indígenas.

Leia mais sobre Povos Indígenas, Comunidades Tradicionais e Questões Amazônicas no blog Elaize Farias.

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