Depoimentos feitos em CPIs que funcionaram em 1955 e em 1962 indicavam que terras indígenas foram arrendas ou vendidas com o aval do Estado
Luciana Lima – Ig
O Relatório Figueiredo, produzido em 1967 e redescoberto recentemente, já descrevia detalhadamente os conflitos agrários em terras indígenas que atualmente são base da violência no campo registrada no Mato Grosso do Sul. O documento aponta que nas duas comissões parlamentares de inquérito, que funcionaram em 1955 e em 1963, terras indígenas eram arrendadas ou vendidas, com aval do Estado, responsável por emitir os títulos.
A primeira CPMI, em 1955, funcionou com o objetivo de anular a doação de terras feitas pelo governo do antigo Mato Grosso. A segunda, em 1962, tinha o objetivo de apurar irregularidades no extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Esse foi o contexto que motivou a expedição realizada pelo procurador Jader Figueiredo, que produziu o relato de 7 mil páginas que inclui o roubo de terras indígenas, tortura e extermínio de tribos inteiras no Brasil durante o período da ditadura militar.
“O que estamos vendo acontecer agora no Mato Grosso do Sul é reflexo do que foi feito pelo Estado sobre terras indígenas”, comentou o pesquisador Marcelo Zelic, coordenador do projeto Armazém Memória, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais. Foi Marcelo Zelic quem encontrou o Relatório Figueiredo no Museu do Índio, no Rio de Janeiro.
O documento, que se julgava ter sido destruído em um incêndio no Ministério da Agricultura, em junho de 1967, relata métodos cruéis de tortura praticados contra índios com o apoio do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão criado em 1910, quando várias frentes de expansão para o interior do País promoviam um verdadeiro massacre da população nativa que resistia ao chamado “avanço da civilização”. A informação de que o documento não havia sido destruído foi revelada em abril, pelo jornal O Estado de Minas.
Loteamento
Para Zelic, o relatório contém um conjunto probatório sobre a espoliação de terras no Mato Grosso do Sul. Além dos depoimentos das CPIs, o relatório detalha também como famílias que se tornaram tradicionais no campo se apossaram de terras indígenas.
No caso da Colônia Tereza Cristina, por exemplo, o Relatório Figueiredo contém um mapa da área desenhado pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon no qual consta o nome das famílias que teriam ficado com cada pedaço de terra. Outro documento importante constante no relatório é o pedido feito pelo Estado do Mato Grosso em 1966 (portanto bem antes da divisão entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), para explorar a área “para efeito de colonização estadual e aproveitamento de manancial energético”.
Há também no relatório, inquéritos militares para a apuração de venda ilegal de terras indígenas nos quais agentes públicos eram os acusados.
Outras provas da apropriação de terras indígenas também estão nas cópias do Diário da Justiça, anexado ao relatório, que aponta nome de pessoas que se apropriaram de terras indígenas no Estado.
O SPI era ligado ao Ministério do Interior e funcionou até 1967, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O documento leva o nome de seu autor, o procurador Jader de Figueiredo Correia, que morreu em um acidente de ônibus em 1976, aos 53 anos e aponta que o órgão que seria responsável por proteger os índios das violações deu aval para a violência cometida pelas chamadas “frentes civilizatórias”.
Temor de retrocesso
O pesquisador Marcelo Zelic teme que atitudes do governo como a de começar a ouvir as pastas da Agricultura e Desenvolvimento Agrário e Combate à Fome nos processos de demarcações de terras indígenas representem uma mudança de rumo na política indigenista no Brasil. Em depoimento na audiência pública realizada no Senado sobre o relatório, Zelic considerou a mudança um retrocesso.
“Retornar a questão da demarcação das terras indígenas e as políticas públicas voltadas aos índios à esfera de influência do Ministério da Agricultura é um enorme retrocesso civilizatório. E é um retrocesso porque, de fato, as barbaridades que se relatam ali, no Relatório Figueiredo, foram monstruosas”, destacou.
“O Ministério da Agricultura, como já mostrou a experiência histórica, possui interesses conflitantes, como uma política pública de respeito à cultura, a recuperação de áreas subtraídas, a demarcação e preservação dessas áreas de existência das populações indígenas do Brasil”, justificou.
Crise
Na semana passada, a ministra Gleisi Hoffmann, voltou a defender que outros órgãos do governo além da Fundação Nacional do Índio (Funai) participem do processo de demarcação de terras indígenas. Atualmente, o decreto que trata do tema diz que a Funai pode solicitar a ajuda de outros órgãos públicos, mas o governo quer tornar obrigatório ouvir também as pastas que tratam do tema agrário e deve regulamentar essa mudanças até o fim desse semestre.
Também na semana passada, em meio à maior crise indígena do governo Dilma Rousseff, a presidente da Funai, Marta Azevedo, deixou o cargo alegando problemas de saúde. Marta pediu para sair após conflitos entre índios terena e fazendeiros no Mato Grosso do Sul, mas também após uma série de posições tomadas pelo Planalto que explicitaram o tom da política indigenista que o governo quer adotar.
O governo também passou a levar em consideração um relatório produzido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que indica que terras no Paraná, que a Funai pretende ver demarcadas não são ocupadas por índios. A questão diz respeito diretamente à ministra Gleisi Hoffmann que é do Estado e que pretende se candidatar no próximo ano ao governo do Paraná.
“Quando a Ministra Gleisi Hoffmann propõe a influência da Embrapa para discutir o papel da Funai, nós estamos voltando a esse passado. Nós não precisamos, pelas histórias que são levantadas, de uma posição que junte os antagônicos para decidir sobre os indígenas”, declarou Zelic.
Na quinta-feira, índios mundurukus se uniram para protestar no Palácio do Planalto contra diversos projetos do governo para a construção de usinas hidrelétricas na Bacia do Rio Tapajós, no Pará e no Mato Grosso. Os índios queriam ser recebidos por Dilma e recusaram uma carta enviadas a eles pela Secretaria-Geral da Presidência da República, designada para resolver o problema. Nesta semana, eles invadiram a sede da Funai.