Cora Rónai – O Globo
Ao contrário de todo mundo, acho que ter sido escolhida sede das Olimpíadas foi uma das piores coisas que podiam ter acontecido ao Rio. Junte-se a isso a famigerada Copa, e a desgraça está feita. Antes que me atirem mais pedras do que provavelmente já estarão atirando depois dessas duas primeiras frases, esclareço que não tenho nada contra as Olimpíadas nem contra a Copa como espetáculos, muito antes pelo contrário. Acho os dois eventos bonitos e simbólicos e fico fascinada com a mistura de gentes que proporcionam. Minha implicância é com a corrupção abissal que as cerca e com a sua realização no Brasil — sobretudo, no Rio de Janeiro. Não duvido que tanto Copa quanto Olimpíadas corram lindamente: somos os reis do jeitinho, e com um superfaturamento aqui e uma enganação ali, teremos (quase) tudo pronto a tempo. Se não forem assaltados, estuprados ou mortos, os turistas voltarão para casa com belas lembranças.
A questão, no entanto, não é o que os turistas dirão de nós; a questão é o que vai acontecer, e o que já está acontecendo, conosco. Tanto a Copa quanto as Olimpíadas têm funcionado, até aqui, como carta branca para tudo o que é descalabro. A sensação que tenho — e peço encarecidamente que me corrijam se eu estiver errada — é que nunca se roubou tanto, e tão impunemente, neste país. Não, não tenho números. Não tenho fatos. Tenho apenas a percepção de alguém que vê os valores de obras desnecessárias aumentando astronomicamente, enquanto os cidadãos ficam entregues à própria sorte num cotidiano cada vez mais degradado.
Com a desculpa das Olimpíadas, o metrô está sendo ampliado sem nenhum critério. Dia sim outro também mais uma árvore vem abaixo por causa das obras; a destruição no Leblon consegue ser pior do que a de Ipanema. Em breve não sobrará um único pedacinho verde no bairro. Os poucos equipamentos que nos ficaram do Pan foram sucateados sem a menor cerimônia; os atletas foram despejados porque, como bem sabemos, a principal preocupação do Comitê Olímpico não é com o esporte, e sim com o faturamento.
Mas ainda que tudo estivesse sendo feito com a maior correção, os benefícios trazidos pela realização desses eventos seria questionável. Montreal que é Montreal levou 30 anos para quitar a dívida dos Jogos Olímpicos de 1976. Até agora ninguém descobriu o que os jogos de 2004 fizeram de positivo por Atenas: os equipamentos construídos na ocasião já estavam desertos e em ruínas antes mesmo da crise, e o número de empregos diminuiu com velocidade ainda maior do que tinha crescido tão logo a festa acabou. O famoso Ninho do Pássaro, em Beijing, virou um elefante branco — e olhem que o que não falta na China é gente para encher estádio.
Não é de ontem que penso assim, mas se ainda me restasse qualquer dúvida em relação a esses desastres econômicos, ela teria se transformado na mais absoluta certeza depois que assisti à entrevista do ministro Aldo Rebelo, da Nike, no programa Roda Viva. Não sei o que me indignou mais, se a má fé com que ele respondia às perguntas dos jornalistas, ou o pouco caso que faz da inteligência dos brasileiros. Há muito tempo eu não ouvia tanta besteira entoada com tanto cinismo.
Ninguém precisa entender nada de futebol para prever que um estádio de 44 mil lugares em Manaus vai virar elefante branco; para o ministro, porém, questionar a necessidade dessa construção é ser preconceituoso com a região Norte. Ninguém precisa entender nada do caráter das leis para perceber como é absurdo um país abrir mão da sua legislação só porque a Fifa quer vender cerveja nos estádios; para o ministro, no entanto, essa distorção é tão trivial quanto a eventual realização de uma corrida de automóveis numa área urbana, onde a lei estabelece limites de velocidade.
No mais, como qualquer pessoa despreparada, ele não tem dúvidas, só certezas. Acha que não podemos nos queixar do Engenhão já estar podre porque, afinal, o estádio “recebeu os jogos dos grandes clubes nos últimos tempos”; considera que o país está perfeitamente preparado para grandes eventos, dado que recebemos a família real portuguesa em 1808; afirma, categoricamente, que teremos cobertura 4G em dois meses (até agora, existem apenas quatro cidades cobertas, entre elas as megalópoles de Búzios, Paraty e Campos do Jordão, e uma única operadora oferecendo o serviço); diz que o dinheiro público empenhado nos estádios foi emprestado “mediante garantias” e que “não há nada mais fiscalizado no Brasil do que o dinheiro da Copa”.
Em qualquer país medianamente civilizado, uma entrevista tão constrangedora seria motivo suficiente para apeá-lo do ministério. Se Aldo Rebelo falou da boca para fora, tentando nos enrolar, não merece respeito; se é sincero e acredita no que disse, não tem competência nem para servir cafezinho na repartição.
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Enviada por Vanessa Rodrigues para Combate Racismo Ambiental.