Direitos Humanos no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte

Bruno Cardoso[1]

No dia 28 de novembro de 2012, representantes de entidades Defensoras dos Direitos Humanos, do Instituto de Direitos Humanos, do CONEDH[2] e outros, inclusive eu, visitamos no aglomerado da Serra, bem Belo Horizonte, MG, a Dona Zelita, mulher negra com cerca de 60 anos, moradora há mais de 40 anos do Aglomerado.  Mãe de muitos filhos. Mostrou um rosto estampado pelo sofrimento de uma vida de luta, amargado mais ainda pelo sofrimento destes dias: teve o filho caçula morto por uma ação policial na última segunda-feira, dia 26/11/2012. Fato estampado nos jornais e TVs, no mês de Zumbi dos Palmares e da consciência negra, mais um jovem negro de periferia assassinado.

Fizemos um primeiro contato por telefone. “Dona Zelita, somos dos Direitos Humanos, queremos conversar com a senhora, levar a nossa solidariedade”.  Ela respondeu: “Venham sim, estarei aguardando vocês.” Desligou o telefone, soluçando de choro. Passamos pela Vila Cafezal, uma senzala da atualidade, e chegamos à Praça do Cardoso, que estava repleta de policiais militares. Além de viaturas, tinha um ônibus da tropa de choque encostado. Clima tenso. Fomos entrando pela vila até chegarmos à rua onde dona Zelita estava nos esperando. Recebeu-nos e saiu correndo para comprar refrigerante e biscoito. Em seguida, chamou-nos para subir até a sua casa. Fomos subindo um beco, uns degraus bem acentuados, escorregadios pelas chuvas. Logo, ela disse: “Olhem essa casa simples aqui, à direita. Era do meu filho. Vejam que é casa pobre, poucos cômodos, tem até goteiras! Vejam se isso é casa de traficante como estão dizendo nos jornais”.

Continuando o caminho, chegamos à casa de dona Zelita. Fomos apresentados à jovem viúva, e logo vimos os quatro filhos que ficaram órfãos de pai. Dois meninos – um de onze meses e outro de dois anos – e duas meninas, uma de quatro anos e outra, de seis. A avó lamentou que o filho de dois anos, apesar da pouca idade, tinha ficado falando que o pai tinha sido acertado na cabeça. Com o coração cortado de dor, sentamos. Foi-nos oferecido o guaraná, os biscoitos. Dona Zelita começou a nos contar: “Ele estava chegando do trabalho, tinha trabalhado o dia inteiro como pedreiro. Chegou, tomou banho e saiu para rua. Passou um tempo quando me gritaram: “Zelita, mataram o Neca!” Saí correndo desesperada e fui ver meu filho. Quando cheguei ao local, ele estava coberto por um lençol. Não deixaram que eu o visse, mas insisti. É meu filho e eu vou ver, levantei o lençol e vi. Era meu filho. Tanto trabalho para criar, e terminar desse jeito…”

Lágrimas escorreram em nossos rostos.  Um tempo de silêncio, interrompido pela pergunta: “Mas como aconteceu?” Ela respondeu: “Ele estava descendo e encontrou com o policial, que apontou pra cabeça dele e atirou. O policial ficou dizendo: “Fiz besteira, fiz besteira”, e desceu correndo o morro. Depois começou a chegar aquele monte de policiais: ROTAM, GATE, Batalhão de Choque, até helicóptero. O povo ficou revoltado e começou a atirar pedras, queimaram ônibus protestando. A polícia revidou atirando balas de borracha. Acertaram até um jornalista. Eu não queria que tivessem queimado o ônibus, atrapalha o povo que vai trabalhar, ficam sem ônibus.” E continuou:   “O policial que matou meu filho foi o mesmo que prendeu meu outro filho meses atrás. Ele não tinha feito nada. Vieram de madrugada, invadiram a casa, e disseram que a arma era dele. Está já há sete meses na cadeia por isso!  Esse ano está sendo muito difícil, um filho preso e outro morto…” Mais lágrimas.  “Não quero que nenhuma mãe passe pelo que estou passando.”

Trazendo consolo, chega uma vizinha e exclama: “Zelita, perdoe-me, porque eu não tive coragem de ir ao cemitério ontem. Vim agora te dar o meu abraço. Pode contar com o que precisar.” Em seguida, outra senhora chegou também prestando solidariedade. Dona Zelita apresentou-nos dizendo: “Eles são dos direitos humanos.” Uma das vizinhas disse: “Fazem ronda aqui por volta das 23 horas. Se tem alguém no beco, mandam correr, jogam pedras. Acertou a cabeça de alguém certa vez e quase matou. Outra vez pegaram a filha de fulano. Ela estava tomando cerveja, não acharam drogas nem nada. Bateram nela dentro do carro. Aqui somos tratados assim… Estamos pensando em fazer uma marcha pela paz. Não pode ficar assim.”

A conversa se alongou. Escutamos bastante, sabendo que mais que um depoimento, ali o odor da solidariedade aliviava a dor. Prometemos fazer os encaminhamentos devidos. Ao final, demos as mãos, rezamos um Pai Nosso, pedindo a Deus Justiça e Paz. Que nos livre de toda violência e de todo mal. Na despedida, recebemos de dona Zelita um abraço apertado e um sorriso recheado de lágrimas de agradecimento pela visita. “Na visita de vocês, Deus nos visita”, revelou dona Zelita.

Saímos com a sensação de que muito ainda deve ser feito. É visível que a indigestão da ditadura continua ainda provocando seus arrotos. Mas vamos continuando, ainda construiremos uma sociedade onde reine a justiça e fraternidade, onde as famílias possam viver em paz. Mais uma vez restou claro como o sol do meio dia para nós: não é pela repressão que combateremos a violência e conquistaremos justiça e paz.

Belo Horizonte, 04 de dezembro de 2012.


[1] Agente da Comissão Pastoral da Terra – CPT/MG – e conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos do Estado de Minas Gerais.

[2] Conselho Estadual dos Direitos Humanos do Estado de Minas Gerais.

Enviada por Frei Gilvander.

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