“Ambientalismo-espetáculo?”

Foto: Desmond Boylan/Reuters

Por Henri Acselrad*

O título acima não pretende afirmar que a festa não seja importante e que a cultura não seja essencial à vida dos povos. Pretende apenas sublinhar o fato de que, ao longo da recente Conferência Rio+20, realizada em junho no Rio de Janeiro, houve um grande ausente no debate ambiental, desconhecido ou desconsiderado pela grande imprensa: a questão do poder sobre os recursos do planeta. Isso porque disputas por esse poder são reais e estão em jogo particularmente quando se discute a elaboração de políticas – nacionais ou internacionais – relativas ao meio ambiente.

Tais disputas não se restringem à definição de quem vai fornecer os recursos para financiar o ‘desenvolvimento sustentável’. Elas estão subjacentes, por exemplo, a qualquer debate sobre mudança climática. Seja sobre sua pertinência (é preciso alterar o modelo de desenvolvimento ou pode-se dar livre curso aos usos correntes dos recursos em nome de ‘combater a pobreza’?), seja sobre seu diagnóstico e enfrentamento (é preciso alterar a matriz energética ou alterar padrões de produção e consumo?).

A questão diz respeito, por um lado, à competição entre proprietários, notadamente entre as grandes corporações cujos negócios dependem de recursos naturais. Por outro lado, envolvem também embates entre esses grandes proprietários e as comunidades rurais de áreas tradicionalmente ocupadas e situadas em áreas de expansão das fronteiras do mercado. Por fim, as disputas podem opor – por meio dos efeitos da poluição da atmosfera, das águas e dos sistemas vivos – certas corporações e a população em geral ou, com maior intensidade, opor as empresas a moradores e trabalhadores de áreas cujo ambiente é usado de forma privatista por grandes negócios agropecuários, minerários e industriais.

DISPUTAS VARIADAS

No primeiro tipo de disputa, é o mercado que configura a competição entre as empresas: competição por espaço entre soja e pecuária, entre eucalipto e cana, assim como entre os que buscam acesso a recursos diferentes (minerais, hídricos, solos férteis ou outros). Os processos de regulação governamental enquadram – ou, supõe-se, deveriam enquadrar – essa competição, por meio de códigos e normas ambientais. No caso brasileiro e no atual modelo de desenvolvimento, fortemente baseado na exploração de recursos naturais e na exportação de produtos primários (commodities), tais regulações têm sido marca das pela aceleração dos licenciamentos ambientais e pela flexibilização de leis para permitir a realização de certos negócios, apresentados como vantajosos para a economia nacional.

Os governos legalizam, assim, os projetos de apropriação dos recursos, por vezes atendendo a pressões dos interesses privados sobre os aparelhos de Estado – como largamente demonstrado no caso emblemático da revisão em curso do Código Florestal brasileiro. Ocasionalmente, os governos são levados a arbitrar entre um e outro grupo de interesse, segundo a força relativa de cada um e na expectativa de que as corporações favorecidas produzam mercadorias cuja comercialização internacional contribua para um equilíbrio macroeconômico, legitimando esses governos junto ao empresariado, à grande imprensa e, indiretamente, ao eleitorado.

Outro tipo de enfrentamento contrapõe os grandes interesses econômico-territoriais às populações que ocupam tradicionalmente esses espaços: é o caso de ribeirinhos deslocados compulsoriamente para a implantação de hidrelétricas, de pequenos produtores removidos para a instalação de infra-estruturas portuárias e petrolíferas, de povos indígenas e tradicionais destituídos pela expansão da exploração madeireira e do agronegócio.

Trata-se, nesse caso, de um conflito entre, de um lado, grandes proprietários do agronegócio, da indústria ou da mineração e, de outro, grupos sociais não inseridos em relações capitalistas. Para esses grupos, a reprodução sociocultural depende da preservação de uma estreita relação com o território – sejam comunidades quilombolas, pescadores, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu ou outros grupos extrativistas. Aqui, a esfera política é decisiva para aplicar princípios democráticos à proteção dos mais despossuídos, embora com frequência seja autorizada, em nome dos imperativos da competitividade, a implantação de projetos que resultam na transferência de recursos dos mais pobres para os economicamente mais fortes.

Exemplo diverso de conflito se dá por conta do uso não mercantil de espaços ambientais: as águas, a atmosfera e os sistemas vivos. Aqui se concentram os esforços de certos movimentos sociais para fazer valer o preceito constitucional segundo o qual “o meio ambiente é um bem de uso comum do povo” . Aplicando-se a Constituição, o ambiente não poderia ser objeto dessa espécie de ‘privatização de fato’, por meio do qual certas empresas lançam os produtos invendáveis de sua atividade – resíduos sólidos, efluentes líquidos e gasosos – nos espaços comuns, formalmente não mercantilizados, das águas e da atmosfera.

Por certo, essa banalização da poluição dos espaços comuns se verifica desde os primórdios do capitalismo industrial. Nessa época, segundo afirmou o historiador francês Alain Corbin, no livro Saberes e odores – O olfato e o imaginário social nos séculos 18 e 19 (título no Brasil), publicado originalmente em 1982, “foi grande a tolerância dos peritos frente às emanações industriais e forte o otimismo frente à capacidade do progresso técnico de limitar os efeitos indesejáveis das fábricas; a missão dos conselhos de salubridade era apenas tranquilizar as ansiedades provoca das pelas pestilências fabris” .

LÓGICAS DE USO

As disputas anteriormente descritas servem para nos lembrar que a questão ambiental é eminentemente política: não se trata da atuação ‘humana’ em geral, ou da gestão de um planeta supostamente comum, embora muito desigualmente apropriado. Não há razões para nos regozijarmos, porque, como se repetiu à exaustão na grande mídia, ao longo da Rio+20, “a consciência ambiental avançou, assumindo-se que a responsabilidade é de cada um de nós …” Ao contrário, nunca foi tão necessário destacar que a ‘responsabilidade ambiental’ é absolutamente diferenciada entre os distintos agentes econômicos e sujeitos sociais no que diz respeito às lógicas de uso dos recursos ambientais e à sua possível degradação.

Por um lado, estão em situação particularmente vulnerável os trabalhadores urbanos, as comunidades camponesas e os povos tradicionais, cujas condições de existência são comprometidas pela privatização de fato do espaço não mercantil das águas, bacias aéreas e sistemas vivos por grandes projetos hidrelétricos, industriais, minerários e agroindustriais. Por outro lado, são esses mesmos grupos sociais despossuídos que desenvolvem as práticas que menos impactam o meio ambiente, assegurando a reposição dos recursos de que necessitam – em comparação com a degradação ambiental decorrente da enorme concentração de poder sobre o território nas mãos das grandes corporações, cuja lógica (mono-
cultural ou de extração em grande escala) desestrutura ecossistemas e desestabiliza comunidades camponesas e povos tradicionais.

Por essa razão, o debate ambiental, ao contrário do que sugere o senso comum economicista exposto na grande imprensa, não diz respeito simplesmente à racionalidade mais ou menos ecológica das escolhas técnicas, ou ao imperativo de economizar matéria e energia, mas, sim, à arbitragem da disputa entre diferentes lógicas de apropriação e
uso dos recursos ambientais – das terras, águas, atmosfera e sistemas vivos. Isso porque esses recursos, de um lado, são fonte de sobrevivência para os povos e, por outro, são fonte de acumulação de lucros para grandes corporações.

Quando nos damos conta de que 20% da população mundial consomem 80% dos recursos do planeta e são responsáveis por 80% das emissões de poluentes, a questão central – ausente dos debates – é a desigualdade ambiental. Ou seja, é o fato de que há uma divisão social do meio ambiente que concentra os danos ambientais sobre os grupos sociais menos capazes de se fazer ouvir na esfera política. É por isso que os movimentos sociais por justiça ambiental sustentam que, enquanto os efeitos ambientais indesejáveis dos projetos de desenvolvimento forem transferidos para os mais fracos, nenhuma mudança significativa será feita nos padrões ambientalmente predatórios do modelo. A título de exemplo, vale lembrar que as vítimas fatais do furacão Katrina, em Nova Orleans, nos Estados Unidos, em 2005, não por acaso eram todas pobres (em sua maioria negras), integrantes de grupos sociais desprovidos de meios de se proteger.

*Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (lppur), Universidade Federal do Rio de Janeiro.

http://gempo.com.br/portal/wp-content/uploads/2012/11/artigo-de-H-Acselrad.pdf

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