Pronta e inativa, devido a liminar da Justiça, usina de Simplício custou R$ 2,2 bilhões e não tem data para funcionar
Valmir Moratelli, enviado a Sapucaia (RJ)
O silêncio que corta a BR-393, na altura do km 143, contrasta com o “barulho” que tem causado uma obra de grande envergadura no local. Sucessivas decisões judiciais impedem que entre em operação a usina hidrelétrica de Simplício, no pacato vilarejo de Anta, distrito de Sapucaia, a 145 quilômetros do Rio de Janeiro. O enchimento da barragem de reservatório do Aproveitamento Hidrelétrico (AHE) de Simplício, nome oficial do empreendimento, foi adiado, no final de fevereiro, devido à ação conjunta entre os Ministérios Públicos Estadual e Federal.
A obra não é vista por quem passa pela rodovia. A barragem de mais de cem metros de comprimento, que corta o rio Paraíba do Sul, só pode ser observada por inteiro do alto de uma ponte ferroviária desativada. O AHE conta com uma barragem de concreto, um vertedouro e um conjunto de canais, túneis, diques e reservatórios que desvia parte do curso do rio por 30 quilômetros, entre o Reservatório de Anta e a Usina de Simplício. As duas casas de força, Anta e Simplício, têm capacidade de geração de 28 MW e 303,7 MW, respectivamente, energia suficiente para abastecer uma cidade de 800 mil habitantes.
A grandiosidade do empreendimento está expressa em números. Os 93.962 metros cúbicos de concreto utilizados na construção são suficientes para erguer três Maracanãs. Já as 78 mil toneladas de aço empregadas no AHE Simplício correspondem a uma vez e meia a quantidade utilizada na Ponte Rio-Niterói. De escavação, serão 12,8 milhões de metros cúbicos em solo e 4,6 milhões de metros cúbicos em rocha.
As obras do AHE Simplício geraram, em seu pico, 4,8 mil empregos diretos. Desde o início, em 2007, o projeto já rendeu aproximadamente R$ 32 milhões em Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) aos quatro municípios abrangidos pelo empreendimento: Sapucaia e Três Rios (RJ) e Além Paraíba e Chiador (MG).
Sistema de esgoto inacabado
Números tão eloquentes, no entanto, não sensibilizam o Ministério Público do Rio. Por determinação do Juízo da 1ª Vara Federal de Três Rios, a empresa Furnas Centrais Elétricas, responsável pelo complexo, não pode nem iniciar a fase de testes da hidrelétrica, mesmo tendo obtido a Licença de Operação junto ao Ibama. Segundo informa o MP do Rio, entre outros problemas, a empresa não teria concluído as obras de implantação do sistema de coleta e tratamento de esgoto do distrito. Esta era uma das contrapartidas exigidas pelo Ibama.
A reportagem do iG esteve no local da obra. Cerca de trinta operários trabalham na construção de uma estação de tratamento de esgoto, mas é possível notar que várias manilhas ainda precisam ser colocadas por debaixo das ruas para fazer as ligações pendentes. Para a promotora de Justiça Anaíza Helena Malhardes Miranda, titular da 1ª Promotoria de Justiça de tutela Coletiva do Núcleo Teresópolis, são grandes os prejuízos ao meio ambiente, à população e à economia local. “O enchimento do lago sem as obras de cunho sanitário trará danos irreversíveis à saúde dos habitantes. Em 2010, ajuizamos a ação para assegurar medidas de prevenção em favor da população e do meio ambiente local. A operação seria iniciada sem a conclusão das obras de modernização da estação de tratamento de água e da construção da estação de tratamento de esgoto, além da instalação das redes coletoras”, diz a promotora. Mas a questão do saneamento básico não é a única e maior preocupação da promotoria.
Morte do rio
O rio Paraíba do Sul tem uma área total de 55.400 quilômetros, com nascente na Serra da Bocaina, no Estado de São Paulo, e passa por diversos municípios do Rio. Sua desembocadura é em Atafona, São João da Barra, no norte-fluminense, local que sofre há anos forte ação da erosão marinha devido a modificações no volume de água. Este problema, segundo o Ministério Público Estadual, deverá ser sentido, com o início das operações da usina, em todo o curso do rio.
De acordo com estudos elaborados pelo Grupo de Atuação Técnica Especializada (GATE) do MPRJ e pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (CREA-RJ), que analisaram o impacto ambiental da intervenção, o início da operação vai redirecionar 76% das águas do Rio Paraíba do Sul, por meio de túneis e lagos, para a geração de energia elétrica. Esse redirecionamento provocará redução da vazão do rio em Sapucaia, no distrito de Anta e em Chiador (MG), localidades que captam água do Paraíba do Sul para abastecimento público e despejo de esgoto.
Segundo a promotora Anaíza Miranda, a obra nem poderia ter sido feita. “O Paraíba do Sul morre em 2013. Ele passa a ser qualquer outra coisa, mas não um rio como conhecemos ainda hoje. A usina precisa de uma constante de 305 metros cúbicos de água por segundo, sendo que na época de seca, de abril a outubro, o rio tem um volume de 175 metros cúbicos de água por segundo. Como a usina vai funcionar? Retendo água nas barragens. Ou seja, o Paraíba vai secar a partir de Anta”, afirma a promotora.
Furnas contesta
Engenheiro de Furnas, responsável pelo AHE de Simplício, Flavio Martins não vê a situação da mesma maneira. “Não existe esta possibilidade. Nas condições que vamos operar, as características do rio vão permanecer, mesmo no trecho da construção de barragem. É uma das obras mais importantes já feitas no Paraíba do Sul. Se o rio secar, a gente abre as barragens. Fizemos tudo exatamente como determina o Ibama”, explica Martins.
Responsável por licenciar a obra, o Ibama, através da coordenação de Energia Hidrelétrica da Diretoria de Licenciamento Ambiental, não esclarece como será o impacto do enchimento do reservatório em época de seca, mas informou ao iG que “a época das chuvas (de novembro a março) é a mais propícia para o enchimento do reservatório da UHE Simplício, pois, com maiores vazões no rio Paraíba do Sul, se reduz o risco de piora da qualidade da água”.
Comparação com Belo Monte
“Todo mundo está preocupado com Xingu (e a construção da usina da Belo Monte), mas ninguém se preocupa com o Paraíba. O projeto é idêntico. A diferença é que a usina aqui já está corporificada. Vamos ver em breve acontecer no Rio de Janeiro o que vai acontecer com Xingu. Eu diria: quer saber o que será Xingu? Venham ver o Paraíba do Sul”, provoca Anaíza Miranda. De acordo com o engenheiro Flavio Martins, de Furnas, esta comparação do Aproveitamento Hidrelétrico (AHE) Simplício com o Parque Nacional do Xingu é “inexistente”. No Rio, a área total alagada é de 16 quilômetros quadrados.
“O AHE Simplício apresenta uma relação entre área inundada e potência de apenas 0,05 km2/MW, uma das menores do mundo. Isso torna o empreendimento ainda mais viável ecologicamente”, afirma Flavio Martins. Devido à baixa densidade demográfica, de todo o circuito hidráulico, foram removidas apenas 150 pessoas, incluindo a construção de uma APP (Área de Preservação Permanente) em 1200 hectares de reflorestamento. “É o triplo do que foi cortado e desmatado para a obra”, diz o engenheiro.
Farinha de peixe
Um lago de 15 quilômetros quadrados foi construído no antigo lixão de Anta. Este é outro ponto crítico apontado pelo Ministério Público Estadual. “Quem garante que não há riscos no subsolo? O Ibama está sendo leviano ao fazer análise das licenças ambientais do impacto desse empreendimento”, diz a promotora Anaíza Miranda. Furnas, mais uma vez, rebate às críticas. No último dia 28 de março, técnicos contratados por Furnas foram ao antigo lixão para avaliar os riscos ambientais. Segundo a empresa, “não existe qualquer evidência de que ficou resíduo no solo”.
Para a promotora, o Ibama, ao dar a licença ambiental da obra, não se pautou na defesa do bioma e no impacto climático da região. Procurada pelo iG, a Coordenação de Energia Hidrelétrica da Diretoria de Licenciamento Ambiental do Ibama informa que “uma vez identificada a existência de um lixão irregular às margens do rio, o licenciamento exigiu a remediação da área, prévia ao enchimento do reservatório, com remoção integral do material contaminado (…), o que representa importante ganho ambiental para a região”.
Duas espécies de peixe habitam exclusivamente esta região: o cascudo e a piabanha. São peixes endêmicos fadados à extinção, segundo relatório do Ministério Público Estadual. Para solucionar o problema, Furnas construiu uma escada que possibilitaria à fauna atravessar na parte lateral para o outro lado do rio. É a mesma tecnologia usada em outras usinas do país. Para a promotora de Justiça Anaíza Miranda, isso não resolve. “O que vai acontecer é que as turbinas de Furnas farão farinha de peixe. O rio já sofre com a poluição e vê sua fauna ser reduzida drasticamente a cada ano”, diz.
Ouvido pela reportagem do iG, Gilberto Pessanha, professor do departamento de Análise Geoambiental da UFF (Universidade Federal Fluminense), concorda que a redução dos níveis de água e de velocidade de escoamento do rio prejudicará a qualidade da água do Paraíba do Sul e afetará os municípios vizinhos. “O rio, já tão castigado de poluentes em suas águas, enfrenta mais uma obra de engenharia com impactos diretos sobre as populações locais. As obras promovem aumento expressivo do escoamento superficial de sedimentos nas áreas em suas margens, pela exposição do solo e também pela subtração de vegetação. Essas práticas contribuem para o indesejado assoreamento do rio”, afirma Pessanha.
Gastos muito acima dos previstos
O valor inicial da obra, na época do primeiro leilão de hidrelétricas, em 2005, era de R$ 1,3 bilhão, com financiamento do BNDES e prazo de entrega para agosto de 2011. Mas atualmente os custos já ultrapassam R$ 2,2 bilhões. “Não havia exata compreensão da complexidade geográfica da região. O terreno é instável, com diversos problemas. Tivemos que construir 33 quilômetros de circuito hidráulico. A água é levada em canais de 12 quilômetros em túneis com 15 metros de diâmetro”, detalha o engenheiro de Furnas, Flávio Martins.
A grandiosidade do AHE Simplício ganhou repercussão internacional ao ser escolhido um dos dez empreendimentos de engenharia do mundo. Chegou até a ser tema do programa “Mega Construções”, do canal Discovery Channel, no final de 2010. Com as obras praticamente prontas, o início do funcionamento da usina, no entanto, depende agora da ação judicial.
Quanto à rede de esgoto em construção, as obras devem ficar prontas até julho. Serão três estações de tratamento: Sapucaia de Minas (com capacidade de 3 milhões l/s), Anta (12 milhões l/s) e Sapucaia (20 milhões l/s). Estas obras estão avaliadas em R$ 20 milhões e estão sendo bancadas por Furnas, de um total de mais de R$ 240 milhões em ações ambientais e fundiárias de Simplício. Até lá Furnas tentará derrubar a liminar do Ministério Público que impede o início da operação. Muita água ainda deve rolar até a inauguração de Simplício.
http://economia.ig.com.br/empresas/infraestrutura/mp-do-rio-acusa-ibama-de-ser-leviano-por-liberar-hidreletrica/n1597737895976.html
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