A história e o sentido da vida

A trajetória do ex-patrulheiro Carlos Roberto Pereira de Souza, hoje mestre

 

Maria Alice da Cruz

A rua foi a primeira empregadora de Carlos Roberto Pereira de Souza, especialista em história oral e mestre em Educação pela Unicamp. Das feridas causadas pela ignorância urbana, os pais nem tomavam conhecimento, pois Carlos tinha por hábito não aumentar o leque de preocupações que eles carregavam. Doeu, até deixou cicatriz, mas não feriu a alma, tampouco inibiu a vontade de crescer e melhorar a história da família, formada por ele, os pais e um irmão dois anos mais novo. A preocupação com este último foi o que o levou a buscar uma forma de contribuir para o orçamento familiar.

Romper com a infância nem pensar. Durante a procura de fregueses que quisessem deixar os sapatos mais lustrados, o menino ia alegre, colecionando brinquedos encontrados pelo caminho. Para trabalhar, ele tinha uma condição imposta pelos pais: estudar. Frisavam insistentemente que “bens materiais se deterioram, mas o conhecimento é um bem que dura para sempre”. Outra orientação importante dos pais, na época semi-analfabetos, era: “Esteja sempre perto de quem sabe mais que você, mas acolha, e não despreze, quem sabe menos”.

A cordialidade e a generosidade que impressionam as pessoas de seu convívio nos dias de hoje são herança materna. Preocupada com a educação dos filhos e das crianças das redondezas, a mãe montou um time de futebol em seu bairro, Jardim Garcia, Campinas, no qual oferecia treinamento aos filhos dos vizinhos. De contrapartida, as crianças tinham de fazer as tarefas escolares juntas, oferecendo auxílio aos colegas com dificuldades na assimilação de determinadas disciplinas. A casa cheia e as panelas “gigantes” que comportavam alimentação para toda a turma são traços da memória do mestre que hoje agradece por ter participado do sistema de troca desenvolvido pela mãe.

As peripécias urbanas logo foram substituídas pelo trabalho formal, intermediado pela Associação de Educação do Homem de Amanhã (Aedha). O chão de fábrica de uma multinacional passou a ser a referência de um ambiente seguro de trabalho para Carlos, até ele se encantar com o tom acinzentado da farda dos patrulheiros mirins do Círculo de Amigos do Menor Patrulheiro de Campinas (Campc). “Mudei porque achei a farda mais bonita”, brinca.

Tão logo concluiu o curso de aspirantes, em 1982, Carlos foi encaminhado à Unicamp pela presidente do Campc, Maria Angélica Barreto Pyles, que afirma que o garoto tinha o perfil da Universidade. Com a carta de encaminhamento na mão, Carlão saiu sorrateiro e mesmo sem grandes informações foi parar no Haras Barão, na Estrada da Rodhia. Sem recursos para tomar outro ônibus, foi conduzido de charrete ao centro do distrito de Barão Geraldo e chegou ao Instituto de Biologia quebrando mato. Muito mato. Orientado a atravessar a Praça da Paz, que, aliás, não era bem uma praça, foi encaminhado à Diretoria Geral de Administração I (DGA I).

Em meio aos sons da pequena floresta, Carlos – chamado hoje por muitos de “Carlão” – se perguntava se estaria mesmo em seu novo local de trabalho. Procurava o barulho das máquinas e o cheiro da graxa da antiga multinacional, mas tudo era mais tranquilo. Ao chegar à DGA 1, foi encaminhado à Reitoria e ficou se perguntando que loucura de nome seria esse. A única recomendação recebida da DGA foi: “Seja um bom menino que lá você tem futuro”.

Os ares de bom menino logo conquistaram o reitor Plínio Alves de Moraes e, em seguida, todos os reitores com os quais trabalhou até se transferir para o Laboratório de História Oral do Centro de Memória da Unicamp (CMU) a convite da professora Olga von Simson , onde trabalha atualmente como historiador. “Todos os reitores me incentivaram a estudar. E a professora Olga tem de ser citada por justiça, pois sua atuação na academia também me inspirou muito”, recorda. Mas o impulso impactante na decisão de retomar os estudos veio do físico Cesar Lattes.

Ao saber que seu “ídolo” da ciência era professor da Unicamp, o trabalhador juvenil não sossegou até que o indicassem o caminho para o Instituto de Física Gleb Wataghin. Ao colocar-se de pé, imóvel, diante da porta da sala de Lattes, Carlão logo recebeu um convite informal para entrar: “Vai ficar aí parado? Entre”, disse o cientista. Desse dia em diante, entre muitas frases que guarda para sua vida, uma move algumas decisões de Carlão até hoje: “Como vai ser alguém na vida sem estudar? Volte a estudar”. Cobrança esta feita a cada reencontro entre o patrulheiro e o descobridor do méson pi.

Apesar da gratidão às palavras de Lattes, não foi na física que Carlão decidiu explorar o que a Unicamp tem de mais importante: o ensino. A atenção ao ser humano, manifestada lá no time de futebol formado pela mãe, o levou a graduar-se em história pela PUC-Campinas. A preocupação em dar voz a sujeitos escondidos da história o conduziu para o mestrado em Educação, concluído na Faculdade de Educação da Unicamp com a dissertação “As vozes dos educandos do Projeto Educativo de Integração Social – Peis”.

Vida vai, vida vem, sem perceber Carlão revive a experiência da mãe com a tarefa escolar ao dedicar sua dissertação ao Projeto Educativo de Integração Social (Peis), que oferece reforço escolar a adultos no Colégio Técnico da Unicamp (Cotuca). Para Carlão, o Peis mostra que é possível proporcionar uma educação de qualidade sem grandes recursos. Uma das observações que fez ao acompanhar duas mulheres e um homem do projeto é que a qualidade do trabalho, pautado nas ideias pedagógicas de Paulo Freire, faz com que os alunos, mesmo matriculados em cursos de graduação, optem por continuar no projeto. De acordo com a memória narrada pelos entrevistados, ele pode perceber que o Peis é um espaço acolhedor e propício para a interação social. Para Carlão, o Peis ultrapassou o fazer pedagógico e fincou raízes no âmago de cada um, por meio da sensibilidade em fazer as amarras da aprendizagem.

E para quem pensa que a distância temporal é capaz de quebrar as amarras da aprendizagem, a história da infância, marcada pelos ensinamentos dos pais e pela generosidade da mulher que abrigava os filhos de outras mães durante o dia, levou Carlão a respeitar a história do outro. Para ele, o estudo de história leva à compreensão do sentido das coisas, da origem do país, das diferenças sociais e de gênero.

A história da vida de Carlos pode ser contada numa linha do tempo contínua e, diante disso, não há como separar o engraxate de ontem do mestre em Educação em história oral de hoje. “Tive uma infância maravilhosa. Somos resultado daquilo que vivemos”. Sobre continuar a ser identificado pela educação rígida e pela cordialidade, ele prefere recorrer a um poeta/profeta que viveu nas ruas do Rio de Janeiro: “Gentileza gera gentileza.”

Enviada por José Carlos.

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