A partir de 1990, as cidades brasileiras — e o Rio de Janeiro em especial — passaram a ser consideradas e tratadas pelo poder público e pela elite empresarial como cidades-mercadoria. Megaeventos são apenas a cereja do bolo
Por Rogério Ferreira de Souza* e Lucia Capanema Alvares**
Em pesquisa recente, a Global Property Guide, empresa britânica de avaliação de imóveis, apontou o Brasil como um dos principais países a liderar a valorização dos imóveis nos últimos meses. Alguns analistas divergem quanto às explicações dessa onda de valorização fundiária urbana: uma corrente defende que não se trata de uma onda especulativa, mas sim a consequência de fatores estruturais, como o déficit habitacional e a falta de espaços urbanos com boa infraestrutura disponíveis para construção.
Já os fatores conjunturais seriam atribuídos aos megaeventos que a cidade sediará a partir de 2013, como a Copa das Confederações, Copa do Mundo 2014 e as Olimpíadas 2016. Outra corrente de especialistas, principalmente os analistas internacionais, apontam para critérios de desempenho econômico, como o aumento da renda do consumidor brasileiro, a facilidade de obtenção do crédito à moradia e a crise econômica que atinge os países ricos da Europa e os EUA.
Entretanto, ambas análises apontam para uma força quase contingencial, esquecendo que há duas décadas teve início um projeto político, urbano e ideológico de valorização da cidade e dos espaços urbanos para o mercado. A partir de 1990, as cidades brasileiras — e o Rio de Janeiro em especial — passaram a ser consideradas e tratadas pelo poder público e pela elite empresarial como cidades-mercadoria.
Dava-se início a um tipo de administração pública explicitamente articulada com os setores da iniciativa privada, em que interesses privados cada vez mais eram vinculados às políticas públicas. Vale lembrar que o marco inicial desse projeto foi o Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, na primeira gestão do prefeito César Maia (1993-1996), conforme apontado por Carlos Vainer em seu artigo “Os liberais também fazem planejamento urbano?” (1996).
O âmago desse movimento tinha e tem como proposta a venda da cidade. A valorização dos espaços públicos, com melhorias pontuais e esteticamente planejadas, possibilitaria uma melhor colocação da cidade no mercado global. O geógrafo David Harvey denomina esta maneira de administrar e olhar a cidade e seus espaços públicos como empreendedorismo urbano.
É nesta esteira que os megaeventos podem ser incluídos: mote de grande apelo público para que se elabore todo um corpo de leis excepcionais, se remova forçadamente grandes contingentes populacionais e se implante novas malhas de transporte a serviço dos novos empreendimentos. Os megaeventos em si têm uma natureza tão efêmera como seus benefícios. O que fica é uma enorme dívida pública e uma cidade remodelada conforme as demandas de expansão do capital.
A questão, porém, é que cidade é feita de gente: são os cidadãos que dão sentido à cidade e não o inverso. A lógica do empreendedorismo urbano e da cidade como mercadoria subverte a ordem social das coisas. Assim, a valorização imobiliária que a cidade do Rio de Janeiro vem sofrendo nos últimos dois anos é consequência clara de um projeto ideológico que põe os interesses do capital acima dos interesses citadinos.
Até que ponto os cidadãos conseguirão transformar a lógica do “legado dos megaeventos” (amplamente divulgada por governos, elites empresariais e vários setores da mídia) numa lógica que realmente beneficie a população no longo prazo? E ainda: até que ponto esse “legado” poderá se vincular mais aos interesses públicos e sociais e menos aos interesses econômicos de uma minoria?
*Sociólogo e professor do Instituto Universitário de Pesquisa Social do Rio de Janeiro (Iuperj).
**Arquiteta-urbanista e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).
http://rede.outraspalavras.net/pontodecultura/2012/03/21/especulacao-e-projeto-antigo-das-elites-cariocas/
Enviada por Antonio Martins.