Mineradora multinacional que coloca em risco o abastecimento de água de uma região, Estudo de Impacto Ambiental (EIA) contestado por cientistas e indignação por parte da população local. Esses elementos lhe parecem familiar? Pois saiba, leitor, que falamos aqui não do Brasil, mas do Peru, onde um projeto de mineração intitulado Conga é alvo de críticas contundentes e de rebeliões populares desde meados de 2011.
Planejado para acontecer na região de Cajamarca, no noroeste do País, Conga beneficia a mineradora Yanacocha – consórcio formado pela estadunidense Newmont, que detém 51% da empresa, pela peruana Buenaventura, com 43%, e pela Corporación Financiera Internacional, do Banco Mundial. A Yanacocha planeja extrair ouro e cobre em dois lagos da província de Cajamarca (noroeste do Peru), num projeto que envolve 4,8 bilhões de dólares de investimento. Seriam esvaziados também outros dois lagos para depósito de despejos da mineração.
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do projeto Conga fortemente contestado por parte da população peruana foi aprovado em 2012 pelo ex-presidente do Peru Alan García. Entre os aspectos mais criticados, está a falta de um estudo hidrográfico, uma vez que a mineração nos lagos poderia danificar irreversivelmente o leçol freático que eles formam.
Um suplemento especial do Governo Regional de Cajamarca (em espanhol), principal oponente ao projeto Conga, explica as seis principais razões por que o projeto é inviável. Entre elas, está o fato de que o projeto seria realizado na cabeceira de cinco rios importantes que abastecem as províncias de Cajamarca, Bambamarca e Cellendín, atingindo mais de 41 mil habitantes. Os riscos de prejudicar abastecimento hídrico na região são negados pela Yanacocha, segundo o jornal peruano El Comercio.
Em novembro de 2011, o atual presidente Ollanta Humala suspendeu o projeto após seis dias de conflitos entre a população local, organizações não governamentais e forças de segurança do governo. O governo, então, propôs uma revisão do EIA de Conga, nomeando três peritos estrangeiros para a tarefa, que deveria ser finalizada em 40 dias.
O pesquisador do Centro de Estudos e Promoção do Desenvolvimento (Desco), Carlos Monge, concedeu entrevista ao também jornal peruano La Primera, mas o texto não foi publicado. “Disseram-me que [a entrevista] não será publicada por que decidiram não tratar no tema de Conga naquele jornal”, explicou Monge em lista de e-mails à qual a redação da Cúpula dos Povos teve acesso.
Reproduzimos aqui a tradução da entrevista, com a abertura assinada pelo jornalista do La Primera Carlos Alonso Bedoya.
Carlos Monge: “o esquema de mineração tem que mudar”.
Carlos Monge, pesquisador do Centro de Estudos e Promoção do Desenvolvimento (Desco) afirma que o esquema de mineração criado pelo ex-presidente do Peru Alberto Fujimori e mantido pelos também ex-presidentes do país Alejandro Toledo e Alan Garcia não é mais possível e deve ser transformado para evitar conflitos como o de Conga.
Entrevista por Carlos Alonso Bedoya
Muitos políticos e analistas afirmam que o lema “Conga não passará” (“Conga no va”) é extremista. O senhor acha que ele significa o mesmo que “não à mineração”?
Não. Dizer “Conga não passará” é dizer “não” a duas coisas. Em primeiro lugar, a um projeto específico que levanta problemas específicos. Como fazer mineração a céu aberto em uma área de altiplanos andinos e onde, lamentavelmente, o mineral se encontra disperso na terra – e, assim, para obter um grama de mineral deve-se mover toneladas de terra, em uma zona onde essa terra está no centro do processo de produção de água?
É dizer que o impacto ambiental não será sutil…
O drama da cordilheira norte do Peru, que abarca a serra da Liberdade, Cajamarca e Piura, é que a água se forma por meio da captura de umidade pela vegetação nativa dos altiplanos altoandinos e por retenção, captura de água de chuva pelos sistemas de lagos desses altiplanos altoandinos. A água não se forma por glaciação porque ali nao há neve. Esses altiplanos são a principal reserva de água. Além disso, o ouro não está concentrado, está disperso pela terra. Então, o lema “Conga não passará” não é um ‘não’ filosófico, é um ‘não’ muito concreto, pois necessariamente se deve escolher entre água e ouro.
A que outra coisa esse lema diz não?
O “Conga não passará” também é um não simbólico à herança de Fujimori/Toledo/Alan García [ex-presidentes do Peru].
Em que sentido?
Um marco institucional no qual a promoção de investimentos é tudo. Isso pesa mais do que qualquer outra consideração ambiental ou social e se expressa no fato de que o ministério de Minas e Energia (Minem, na sigla em espanhol) concentra todas as decisões, incluindo a avaliação e aprovação dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA); o ministério do Meio Ambiente está pintado na parede; e os governos regionais e locais não existem.
E o que se deve fazer, então? Outra lei geral de mineração?
Reformular a lei geral de mineração, a lei orgânica do setor de minas e energia, e a lei orgânica dos governos locais e regionais.
Desde que se iniciou o processo de descentralização até agora, não se descentralizou Minas e Energia. O único setor que foi transferido para governos regionais são competências em matéria de pequena mineração artesanal, mas os grandes projetos energéticos de mineração continuaram no ministério.
Então, se criou o ministério do Meio Ambiente, mas o único setor no qual nenhuma concorrência foi feita foi em Minas e Energia.
Há uma versão que afirma que foi difícil para o próprio ex-ministro do Ambiente, Ricardo Giesecke, levantar a informação sobre o EIA (Estudo de Impacto Ambiental) de Conga…
Quando a equipe de Giesecke pediu a cópia do EIA de Conga, não conseguiram facilmente. As consultas que o minustério de Minas e Energia fez foram apenas à Autoridade Nacional de Água e ao Ministério de Agricultura. Acredita que a aprovação de um EIA não passou pelo ministério do Ambiente?
Não faz sentido.
Aos governos regionais tampouco. Temos um marco institucional, herança de uma admnistração setorialista e centralista criada por Fujimori, mantida por Toledo e Garcia, e é isso que está explodindo. A solução estrutural é mudar de sistema.
Mas isso requer tempo, uma moratória de concessões a mineradoras até definir o esquema. Isso é factível?
Em primeiro lugar, não se deve dar mais concessões de mineração neste esquema. Deve-se fechar a porta do Ingemet com chave e logo atirá-la no mar. Em segundo lugar, cancelar as concessões daquelas empresas que não fizeram nenhum uso produtivo e que simplesmente estão pagando seu direito de vigência, porque não têm por trás ninguém sério que queira fazer mineração ou porque foram adquiridas para fins especulativos.
Há técnicos que sustentam que não é mais conveniente continuar com o esquema de concessões, mas sim passar a um esquema de licitações internacionais do qual sempre deve participar uma empresa estatal peruana, e no qual os projetos sejam integrais a fim de desenvolver a indústria metalúrgica, metal-mecãnica etc.
Esse é o modelo petroleiro predominante em toda a América Latina, menos no Peru. Até no Chile, que produz uns poucos barris, existe uma empresa estatal de petróleo forte, a Enap. Ela investe no Peru, no Equador e em vários países. No modelo de hidrocarbonetos prevalente hoje, além da existência de uma empresa estatal, é formado um conjunto de exploradores como resultado de uma negociação bilateral ou de uma licitação pública, na qual, a empresa estatal começa competindo, e também outras empresas competem – mas apresentando propostas sérias, com base, experiência e tecnicos. Além disso, cumprem-se também outras condições ecológicas e sociais. Fica claro o investimento na exploração e, se tudo corre bem, as empresas recebem um direito preferencial para passarem à exploração secundária. Estou de acordo com esse caminho.
Qual seria o procedimento mais adequado para a exploração de mineração em um novo esquema?
Zonificação, ordenamento territorial e plano concentrado de desenvolvimento. A partir daí, recebe-se uma mistura de concessão com certificado ambiental e lei de consulta. Quando já se tem um projeto que passa pelo filtro da zonificação, se está contemplada no ordenamento territorial, é parte do plano de desenvolvimento, da visão do que fazer com esse território, tem-se licença social e acontece um processo de consulta, então se outorga a concessão. A concessão se torna uma negociação de um projeto sério para realizar a exploração primária antes e a secundária depois.
E as instituições?
Definido um procedimento, deve-se definir que papeis terão o governo central, o governo regional, o governo local e a população. O que há agora é que, por um lado, os governos regionais começaram a fazer zonificação e ordenamento territorial, como aconteceu em Cajamarca, e, por outro lado, o ministério distribui concessões como quem distribui naipes em um jogo de cartas com amigos. Essa é uma receita para o conflito.
Com esse novo procedimento se poderia detemrinar que a mineração em algumas zonas é inviável?
É possível que os processos de zonificação e ordenamento territorial bem feitos nos digam que há extensas zonas onde não deve haver mineração. (…) Eu também gostaria de poder extrair ouro com um canudunho, mas se não é possível, não é possível.
Como deve ser a perícia necessária para solucionar o conflito de Conga?
Se colocarmos as coisas de forma direta, nos damos conta de que estamos enfrentando uma situação sui generis e até certo ponto ilegal. Por que o processo Conga está suspenso se havia cumprido todos os requisitos? De acordo com a lei, já deveriam estar secando as duas primeiras lagoas para usá-las como fonte para os despejos da mineração enquanto se explodiriam as duas segundas, mas o projeto está parado por uma decisão política que vai mais além de qualquer marco normativo. O governo pediu que o projeto parasse enquanto tentava buscar uma solução para o conflito social e para o problema político que se configurou.
Isso significa que a perícia está alheia ao sistema de mineração atual?
De fato, o marco institucional explodiu, já estamos operando fora dele. Estamos tomando decisões de política que transcendem um marco institucional esgotado que não é mais possível. Para mim, essa é a lição principal.
E o que você acha que sai daí?
Acho que o governo decidiu que ‘Conga passará’ de todas as formas. Disse isso de vários jeitos e, como especialista, sinto que, dependendo da pessoa do governo que venha a falar, a mensagem é diferente. Por exemplo, o premiê disse que a perícia é para dissipar as duvidas da população…
População que supostamente foi manipulada…
Então, estamos gastando um quarto de milhão de dólares para trazer três pessoas para dar palestras na cidade de Cajamarca, para explicar às pessoas que estão confusas, que foram enganadas, que são ignorantes ou que nao entendem nada. Outros dizem que a perícia é para melhorar o EIA. Em 40 dias, é possivel revisar seriamente um EIA que demorou quatro anos, que tem 30 mil páginas e que tomou oito meses de avaliação? Mas o governo, além do mais, insiste que o projeto começará em março, então as matemáticas já não me fazem sentido. Quarenta dias úteis não são suficientes para que se inicie o projeto em março.
Mas, além disso deve-se somar o tempo necessário para que a empresa implemente as recomendações da perícia…
Digamos que em 40 dias se têm as recomendações. Se forem sérias, a empresa terá que fazer uma análise técnica delas. Durante anos se desenhou um projeto que iria terraplanar quatro lagoas, e, agora, se a recomendação for terraplanar esta e não aquela…
Terão que reformular o projeto…
E isso supõe não só uma qeustão técnica, mas também financeira. O projeto terá que incorporar e analisar os custos que essas modificações acarretarão. Se o governo insiste que começa os trabalhos em março, a perícia deve ser uma piada, porque iria produzir recomendações muito superficiais, para que a empresa possa, em 48h, avaliá-las tecnicamente, incorporá-las em um novo desenho, resolver seu custo financeiro e começar.
Acho que isso está ligado a uma visao mais geral: é necessária toda essa grande mineração, com os 29 projetos que estão por trás (Conga e os outros 40 bilhões de investimento), porque isso financia a inclusão social. Esse foi o sentido da negociação dos 3 bilhões de soles adicionais.
O senhor se refere ao novo imposto de mineração e à modificação dos royalties?
O conceito foi: exploro você, mas com isso financio a inclusão social. Se essa era a visão, então Conga garante a grande transformação. Para mim, essa frase é a que melhor resume o enfoque dado até agora à situação. Não estou falando de corrupção – não acho que Conga foi comprada do presidente ou do ministro. Esse não é o governo de Alan García, o que há é uma discrepância de visões que se traduz em marcos institucionais.
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