Renato Santana*
Deverá entrar na pauta da próxima sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal, terça-feira, 20, a votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000.
Depois de ser adiada duas vezes no final de 2011, o acordo entre governo e bancada ruralista é de que ela seja imediatamente pautada. Com o raiar do novo Código Florestal despontando no horizonte do agronegócio, as representações parlamentares dos latifundiários passaram a mirar os territórios indígenas e quilombolas.
A PEC propõe transferir do Poder Executivo para o Congresso Nacional a demarcação e homologação de terras indígenas e quilombolas, além de rever os territórios com processo fundiário e antropológico encerrado e publicado.
Nesta terça-feira, 13, a bancada ruralista forçou o presidente da CCJ, o deputado Ricardo Berzoini (PT/SP), a colocar a matéria em pauta. O parlamentar justificou se tratar de sessão administrativa, mas que cumpriria o acordo feito no final do ano passado e pautaria a PEC.
Por outro lado, cerca de 40 indígenas das etnias Pataxó e Tupinambá, ambas do extremo sul da Bahia, estiveram presentes no plenário da CCJ e com cartazes pressionaram para que ela não fosse colocada em pauta pelos parlamentares presentes. O clima ficou tenso.
Desde a última semana, povos indígenas de todo o país se encontram mobilizados no Congresso Nacional. Conforme as lideranças indígenas, se a PEC for aprovada significará o fim das demarcações de terras de ocupação tradicional no país.
“Com essa PEC em pauta o Congresso vai virar uma grande aldeia (…) em 1988 negociamos pelo artigo 231 na Constituição e ele ainda não foi cumprido. Agora nós não vamos negociar”, afirmou Neguinho Truká, durante reunião com parlamentares.
A PEC 215 atinge ainda as unidades de conservação. O movimento indígena, organizações indigenistas, deputados que compõem a Frente Parlamentar de Defesa dos Povos Indígenas e o próprio ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, apontam como inconstitucional a proposta.
No final da tarde desta terça-feira, 13, os indígenas foram recebidos pelo chefe de gabinete do ministro Gilberto Carvalho. Diego de Santana ouviu do cacique Aruan Pataxó, da aldeia Coroa Vermelha, município de Porto Seguro, carta dirigida ao Congresso Nacional e governo federal em que os povos indígenas expressam “indignação e repúdio” contras as PECs 215 e 038/1999 – esta última em tramitação no Senado Federal e de mesmo teor de sua irmã siamesa da Câmara Federal.
Os indígenas ouviram do chefe do gabinete de que o governo irá trabalhar para que a Constituição não seja violada, sendo assim se posicionando de forma contrária a alteração proposta pelas PECs. Mais cedo, a liderança da bancada petista, deputado Jilmar Tatto (PT/SP), recebeu os indígenas e garantiu que articulará contra a PEC 215. Outras bancadas, como a do PMDB, estão sendo procuradas.
“Na próxima terça-feira a base do governo tem que se posicionar. Essa PEC é maligna, queremos que a demarcação fique com o Executivo”, afirmou o deputado Padre Ton, presidente da Frente Parlamentar de Defesa dos Povos Indígenas.
Mobilizações permanentes
O Salão Verde do Congresso Nacional pode ser grafado em maiúsculas. Por ali desfilam parlamentares à espera das manchetes e noticiários diários, discursos repousam no carpete verde e encontram paz longe do alvoroço de vozes do plenário, além de ser um lugar distinto e parte de um ritual legislativo destacado – e que na maioria das vezes não engloba os ritos de um país mais diverso que a multidão engravatada da Capital da República.
No entanto, os Pataxó dominaram o espaço e realizaram um ritual depois que saíram da sessão da CCJ. “Os grandes latifundiários sabem o que os indígenas pensam e nós sabemos o que eles querem. Isso já vem de muito tempo, dos nossos antepassados”, disse o cacique Araticum Pataxó, da aldeia Araticum da Mata Medonha, localizada no extremo sul baiano.
Apesar de não parecer surpreendido com as intenções da bancada ruralista, Araticum explicou que sabendo dessas relações antigas os indígenas não podem ir pelo caminho que os ‘engravatados’ querem. Ao contrário, devem fazer com que o caminho dos indígenas seja respeitado, ou seja, a aldeia precisa ser levada em conta, não só a vontade do Congresso.
“Quando éramos analfabetos na mata tínhamos nossos direitos. Quando aprendemos as leis do branco os perdemos. Temos que exigir que o nosso jeito seja parte do processo”, enfatizou.
As palavras de Araticum podem ser traduzidas em números: são cerca de 200 deputados federais que compõem a bancada ruralista – respaldados pelo atual modelo de desenvolvimento do governo federal, por sua vez ancorado nos pastos, canaviais e deserto verde da soja.
Dessa maneira, a correlação de forças no Congresso é sempre desfavorável aos povos indígena se quilombolas. Ainda mais que as bancadas evangélica, de delegados e policiais, além de parlamentares sob influência de madeireiros, votam junto com os ruralistas.
Representados pela Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia, os indígenas acreditam que só com mobilização a PEC 215 poderá ser barrada e os direitos por terra, saúde e educação cumpridos. Entre a última semana e essa, cerca de 150 indígenas de todas as regiões do país passaram pelo Congresso Nacional.
Mais grupos indígenas
Nesta quarta-feira, 14, cerca de 20 indígenas Tupinambá da Serra do Padeiro, também da Bahia, desembarcaram na Capital Federal. Mais grupos indígenas devem chegar nos próximos dias. O cacique Babau Tupinambá discursou na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, tomada pelos indígenas.
Emocionado, Babau declarou que os povos indígenas resistiram durante todos estes séculos e seguirão resistindo. As lágrimas derramadas pelo cacique trazem tormentas de um passado não muito distante, mas ainda presente na memória dos indígenas da Serra do Padeiro.
A irmã do cacique, Gricélia Tupinambá, chegou a ser presa com o filho recém nascido, também autuado pela Polícia Federal, em processo de criminalização das lideranças Tupinambá à frente da comunidade em luta pelo território tradicional – ainda sem processo de demarcação finalizado e sob intenso assédio da elite agrária baiana. Realidade intermitente também para outros povos brasileiros.
Eliseu Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, ressaltou que o movimento fará mobilizações, porque “desde a invasão do Brasil os índios estão aqui e por isso temos direito e queremos o território tradicional”. As terras Kaiowá estão em processo de demarcação desde 2008.
PEC 215: caminho perigoso ao país
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) determinou, em relatório divulgado no último dia 3 que o governo brasileiro demarque as terras Kaiowá, proteja a vida dos indígenas e investigue os assassinos das lideranças. “Com a PEC, eles vão dizer que não pode demarcar tudo ou que não é para demarcar nada. Podemos recorrer ao Supremo (Tribunal Federal – STF), mas isso se arrastará por anos e anos”, disse Sandro Potiguara, da Paraíba.
Situação semelhante vive vários povos do Brasil, entre eles os Kanela do Maranhão. A liderança Armando Kanela se indignou ao dizer que as terras de seu povo aguardam há 11 anos pela demarcação, depois de Grupo de Trabalho (GT) da Funai ter realizado trabalho. “Por quê? Agora nosso território está sendo invadido por caçadores e madeireiros. Não interessa essa PEC. Vamos brigar contra”, enfatizou.
Antônio Apinajé, do Tocantins, destacou a importância da mobilização indígena e não esquece: o artigo 231 na Constituição foi uma grande conquista dos indígenas e seria um retrocesso de direitos a PEC 215 ser aprovada. Sobretudo, para as lideranças, um caminho perigoso frente às demandas internacionais com as quais o Brasil se comprometeu.
“Nós vamos nos mobilizar pelo futuro de nossa gente. Minha alma chora só em pensar se isso for aprovado e por isso quero me entregar na luta, porque o sofrimento será terrível. Fazemos um apelo aos deputados que nos apóiem”, declarou emocionada Dária Krikati, do Maranhão.
*Colaborou a jornalista Mara Paraguassu
Foto: Eden Magalhães/Cimi
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