11 Teses para a Universidade Indígena

por Maria Inês de Almeida

CURAR
O furo por onde passa o fluxo. Traço escrito. Linha e linhagem. O traço como um feixe, mil fios por onde passam energias. Uma coisa física, material. Tão concreta que forma um sujeito –  o do sonho, visível no mais distante. Visão da estrela cadente.

NEUTRALIZAR
Há um saber perfeitamente articulado, pelo qual, falando propriamente, nenhum sujeito é responsável.[1] O inconsciente. Nem individual, nem coletivo. O mundo: pode-se dizer com os indígenas. Desde que passa a existir, é marca corporal no terceiro, e acaba desaparecendo.
Tudo está bem articulado em diversas histórias.
Perder o sujeito é a que se dedica um ensino que é potência.

CONVIVER
Coreografia. A dança, a música, a poesia não se cansam de mostrar as possibilidades de convivência. Artes do humano: nós, humanos, as seguimos em suas linguagens, que demandam nossos sentidos. Mas nem só os ditos humanos são pessoas, cada espécie tem suas artes.
E há os que não classificam as espécies do mesmo modo que os cientistas.
Os mitos estão à disposição para ensinar outras biologias, matemáticas e medicinas.

TRANSFORMAR
Além do princípio do prazer tem a metamorfose. A troca verdadeira – ensina a indígena Llansol. Da cópia ao canto é o exercício da cura na alegria: copiar, copiar, até se tornar apto ao erro.
Nem a mentalidade crítica do universitário nem o discurso do mestre são responsáveis pela sabedoria.
A universidade indígena tem como suporte – e isto talvez impossibilite sua realidade – um saber disjunto que não exclui, no entanto, a dinâmica da verdade.
As substâncias psicoativas e as técnicas xamanísticas são seus componentes metodológicos, assim como os livros.

SOLTAR/APRENDER
A felicidade  tem a ver com a maturidade sexual, que aponta para o terceiro. Por isso a metáfora da fruta madura, em sua plenitude, com suas sementes, diz de quando o prazer cede ao desprazer.
O dom, fundamento do sacrifício.
O terceiro sexo, o da paisagem, com o qual a cópia ensina o caminho.
A tradição é um furo e não um saber. Por isso ela se confunde com a tradução.
Os cantos e as histórias fazem parte desse vórtice que reúne os tempos, e, se algo retorna, é o desconhecido.
Um sujeito é um traço aparente no devir.

LER E OUVIR
A escrita é sempre a escrita de uma fala.[2] Não a voz do passado, mas a do futuro. O ouvido é a cavidade receptiva por excelência. E o sopro é a vida que segue. Para ler é preciso captar sinais de outros lugares. Um texto se faz quando um lugar é habitado pelo leitor.

LER E DIZER
A fala da escrita nasceu com o ah! de admiração do primeiro leitor, ensina o sábio huni kuin Agostinho Manduca. A fala ligada à escrita não é a do discurso, é a miragem que o desenho transforma em canto. Esse princípio de não contradição formal coloca no mesmo fluxo tradutório a oralidade e a escrita. São ondas autônomas e dependentes levando ao infinito.

ENCONTRAR
O lugar que a gente vive. Formado justamente quando se ouve os cantos de cada desenho.
Um povo se forma com sua literatura, a terra onde cada corpo se dissolve.
Na floresta tropical a morte não é uma velha seca e medieval com uma foice na mão, vestida de negro. Simplesmente porque o corpo não é cindido, não se corta a cabeça. A pessoa se transforma, mas inteira e fluida.
O ensinamento das águas.

VAZAR
A pessoa é feita no sonho. O ponto de abandono em que o sujeito se perde, resvala, desvia. Talvez por isso sejamos todos acompanhados de invisíveis existentes. As forças e os fantasmas, o yuxin. Todas as culturas os compreendem e nomeiam. O mesmo sonho pode mostrar a perda da colheita e a chegada de um neto. Cada caminho pode ser lindo em sua natureza: lição que os mais velhos tiram dos trabalhos e dos dias.

CURAR
O caminho mais demorado. Com muitos mistérios gozosos, porque o saber é para depois. O aprendizado curtido, enxugado, que nem sempre tem a ver com a consciência.
Na escola dos índios, a multiplicidade dos espíritos ensina que ciência e tecnologia não encerram a sabedoria.
Mas também não são exclusivas da modernidade ocidental.

ALEGRAR
A dança e todos seus componentes depurados formam a humilde biblioteca do palhacinho[3]: as pinturas no corpo, os chapéus, os instrumentos de música, a roupa enfeitada. O canto conduz a leitura, e o amor nasce da alegria, a que alguns chamam também de conhecimento. Mas é muito difícil imaginar o que vem depois da encruzilhada.

[1] Frase tirada do livro O Seminário. Livro 17: O avesso da Psicanálise (1992), de Jacques Lacan.

[2] Do livro O Inconsciente e seu Escriba de Moustapha Safouan (1987). p. 23.

[3] Termo retirado da Partícula 53, do livro Os Cantores de Leitura (2007), de Maria Gabriela Llansol, p.129.

http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/11teses.html#texto1

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