A busca por uma solução para a questão da saúde dos povos indígenas do Vale do Javari (AM) foi o que motivou o trabalho realizado em parceria entre o CTI e o ISA, e, entregue nesta quinta-feira (27/10) a Antônio Alves, titular da Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde. O diagnóstico médico-antropológico baseou-se em entrevistas feitas entre abril e setembro de 2011, em Atalaia do Norte, Tabatinga e Manaus e em depoimentos de lideranças indígenas, de profissionais de saúde e organizações indígenas e traz recomendações para resolver de forma permanente a questão.
O documento Saúde na Terra Indígena Vale do Javari, diagnóstico médico-antropológico: subsídios e recomendações para uma política de assistência, entregue ontem ( 27/10) ao titular da Secretaria Especial de Saúde Indígena, Antônio Alves, aborda diversos aspectos da assistência no Vale do Javari a partir das informações reunidas. Os dados de saúde são do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) – Vale do Javari. Alves recebeu o documento de uma comitiva formada por Marcio Santilli, do ISA, Gilberto Azanha e Conrado Rodrigo, antropólogos do CTI, Erivelto Marubo, vice-presidente do Condisi (Conselho Distrital de Saude Indígena), instância de controle social do DSEI Vale do Javari e Jader Marubo, coordenador geral da Univaja – União dos Povos Indígenas do Vale do Javari.
Em entrevista ao ISA, o secretário disse que a Sesai já conhecia várias das informações contidas no diagnóstico mas que ia ler com atenção. “Várias das recomendações que o relatório aponta já estamos cumprindo em nosso esforço nesse primeiro ano de Sesai. O documento enriquecerá a nossa avaliação, o diagnóstico que já tínhamos. É uma grande contribuição para a política que queremos fazer.”
Além de levantar dados sobre as condições atuais de saúde, os pesquisadores tentaram entender junto a essas populações qual o tipo de assistência consideram mais adequada às suas necessidades. A ideia é que a partir desse diagnóstico, a Sesai possa oferecer um sistema de saúde de qualidade aos povos que habitam a TI Vale do Javari, a saber: Marubo, Matis, Korubo, Kulina, Kanamari, Tsohom Dyapá e Mayoruna-Matsés.
Vale lembrar que esses povos têm sofrido historicamente com epidemias variadas de doenças infectocontagiosas com altos índices de mortalidade. A hepatite é a principal delas, seguida pela malária e doenças sexualmente transmissíveis. Além disso, há registros de isolados na área, em situação de fragilidade e vulnerabilidade, que acabam expostos às doenças. O diagnóstico é complementado por um relatório antropológico realizado por pesquisadores que trabalham na região. Das informações reunidas resultaram recomendações que foram revisadas por representantes do movimento indígena do Vale do Javari e incorporadas ao documento.
As recomendações do diagnóstico
Duas questões centrais na gestão são apontadas pelo diagnóstico e devem ser consideradas na transição em curso da Funasa para a Sesai e que envolvem políticas públicas em nível nacional: a necessidade de uma gestão mais participativa como meio de controle das influências políticas e econômicas locais e uma política específica de contratação de recursos humanos para o trabalho em áreas indígenas. Entre as principais recomendações estão:
1- Que os DSEIs sejam de fato unidades gestoras;
2- Que os Conselhos distritais sejam consultados para escolher os chefes dos DSEIs para impedir que prevaleçam interesses políticos e econômicos locais;
3- Que o orçamento dos DSEIs seja garantido de forma que não haja interrupção nos repasses, com base em um plano de metas a serem alcançadas e aprovação de prestação de contas para controle social;
4- Que seja abandonado o modelo de convênios para contratar pessoal, já que isso se mostrou inadequado e ineficiente;
5- Que seja elaborado um plano de cargos e salários para profissionais da saúde indígena;
6- Que se promova uma discussão nacional sobre a saúde indígena focada em gestão e contratação de pessoal por meio de concurso público para preencher as vagas.
Sobre essas recomendações, o secretário Antônio Alves disse que a primeira medida está sendo concentrar o orçamento da saúde indígena na Sesai. Na Funasa, o orçamento era dividido entre prefeituras, com outras secretarias. “Por meio desse processo, estamos assumindo a gestão de pessoas. Já a partir de agora fizemos um chamamento público para selecionar uma só entidade que fará convênios para o Vale do Javari. Portanto, o recurso humano vai ser contratado por ela, com a gestão do DSEI. Estamos encaminhando uma proposta de política de recursos humanos para o Ministério do Planejamento na perspectiva de definir isso e não trabalhar com convênio, que tem de ser temporário. Enquanto secretaria dentro do ministério, estamos trabalhando para fortalecer também as unidades dos municípios, que são a primeira referência das aldeias. Vamos trabalhar para ajudar os municípios de Atalaia do Norte e Tabatinga e articular com o governo estadual – porque os atendimentos mais complexos são feitos em Manaus.”
Quanto às indicações políticas, Alves afirmou que em um ano de Sesai, não houve nenhuma indicação política. “Criamos um perfil do gestor e trabalhamos com ele. Ele foi pactuado com as próprias lideranças indígenas, dos Condisis. Procuramos preencher os cargos em função desse perfil. Mas há regras que não podemos descumprir porque fazem parte da administração pública. Quem nomeia o cargo da Sesai é o ministro até o DAS 4. Quem nomeia os demais cargos da Saúde Indígena é a presidenta da República. A delegação que tem para o ministro é a presidenta que faz. Nem sempre temos total controle sobre isso porque tem uma regra definida por lei.”
A assistência no DSEI Vale do Javari
O diagnóstico recomenda ainda a total organização do atendimento no DSEI Vale do Javari, incluindo a permanente de profissionais de saúde na área indígena, com logística e infraestrutura de campo adequadas. O atual modelo, de acordo com o documento é de assistência eventual “com a organização e viagens das equipes para atendimento nos pólos-base e o seu retorno para a cidade sem a sua imediata substituição, descontinuando a assistência”.
Para a implantação de um novo modelo documento ressalta que será necessário realizar cursos e treinamentos específicos incluindo reciclagens continuadas tanto na questão técnica quanto na antropologia da saúde, e materiais didáticos tanto para as equipes quanto para os indígenas.
Leia aqui o documento na íntegra.
O coordenador do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, Márcio Santilli, afirma que o caso do Vale do Javari preocupa muito. “A sensação que temos é que a situação está sempre fora de controle. Estamos tentando sensibilizar corações e mentes e abrir caminho para a ação da Sesai. É um caso muito delicado. Temos de dar prioridade a regiões remotas, como o Vale do Javari.”
Para Gilberto Azanha, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o objetivo era fazer outro diagnóstico, provocar de novo o Ministério da Saúde e a Sesai para prestar atenção ao Vale do Javari antes que seja tarde. “Existe lá uma situação delicada do ponto de vista sanitário por conta das hepatites virais. É preciso um cuidado todo especial. Os índios não querem mais ter esse atendimento porque ele está resultando em coisa nenhuma. Eles estão reagindo saindo da beira do rio, se interiorizando dentro da mata de novo. Não querem mais deixar os filhos irem para as cidades com medo do contágio das hepatites. A Funasa tapou o sol com a peneira a vida inteira. Há uma situação muito delicada. É preciso estabelecer convênios com outros hospitais, unidades de pesquisa.”
Nesse período de um ano de criação da Sesai, algumas melhorias podem ser apontadas. “Já aconteceram coisas positivas, como a melhora no fornecimento de combustível e o encaminhamento da contratação de pessoal. Mas há um discurso de que o Vale do Javari é prioridade e ainda estamos esperando as coisas acontecerem. Os parentes que, desde a época da Funasa não veem as coisas acontecerem, se continuarem a não ver as coisas acontecerem, começarão a achar que tudo vai ficar como antes”, disse Erivelto Marubo do Conselho Distrital de Saúde Indígena. “Tememos que a situação se arraste como aconteceu com a Funasa. As aldeias não dão mais crédito ao governo. Pedimos que o governo tome uma atitude de governo e passe do discurso à prática. Se o governo não se antecipar, a situação do Vale Javari vai continuar a mesma em 2012.”
Questão complexa
Depois de quase uma década de críticas à ineficiência e à pratica de irregularidades na Fundação Nacional de Saúde (Funasa), responsável pelo atendimento à saúde indígena, e de contínuas reivindicações do movimento indígena, foi criada em outubro do ano passado a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde. A Sesai assumiu as atribuições do Departamento de Saúde Indígena (DSAI) e passou a cuidar exclusivamente do atendimento prestado nos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Os DSEIs eram subordinados à Funasa, órgão encarregado das ações de saúde, aquisição de insumos, apoio logístico, licitações e contratos. Em agosto de 2010, Senado aprovou a criação da Sesai sob aplausos e comemorações nas galerias. Uma cyberação com envio de cartas pedindo aos senadores que criassem a secretaria foi desencadeada pelo ISA.
Ao tomar posse, o secretário Antônio Alves disse em entrevista ao ISA que a meta era estruturar o subsistema de saúde de forma a garantir-lhe autonomia. E também defendeu a qualificação de indígenas para capacitá-los a assumir gerenciamento e serviços. “Vamos formular um plano de recursos humanos que permita que os indígenas se formem na área de saúde, para que tenhamos enfermeiros indígenas, médicos indígenas, farmacêuticos indígenas – de forma que possam ir assumindo a gestão desse subsistema e também o trabalho das equipes multiprofissionais”, disse. O diagnóstico agora entregue ao secretário Antônio Alves traz também uma cronologia que mostra as idas e vindas da questão da saúde indígena no Brasil.
http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=3441