ABA – Nota da Comissão de Assuntos Indígenas sobre os Xukuru do Ororubá

A ABA vem, por meio desta, manifestar sua preocupação diante dos processos judiciais que envolvem o povo indígena Xukuru do Ororubá e que têm se desdobrado na criminalização das suas lideranças e no cerceamento dos seus direitos.

Através da Comissão de Assuntos Indígenas e da Comissão de Direitos Humanos, a ABA tem acompanhado o processo de regularização fundiária do território Xukuru e os fatos a ele relacionados ao longo dos últimos 20 anos. As dissertações e teses produzidas sobre os Xukuru e os diversos documentos, como relatórios técnicos e laudos produzidos por antropólogos, apresentam a gravidade da situação. O conflito e a tensão são, marcadamente, as principais características observadas nesse percurso e que vêm se concretizando através de reiteradas investidas contra os direitos indígenas, desconsiderando os princípios estabelecidos pelos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos: da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e da Convenção 169 da OIT, dos quais o Brasil é signatário, e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Além disso, esse quadro de violações fere os princípios constitucionais de autonomia e livre determinação dos povos indígenas, também reiterados em todas as versões do Programa Nacional dos Direitos Humanos.

Até o momento são contabilizadas 06 pessoas assassinadas, sendo 05 indígenas e um procurador da FUNAI. Dentre elas, o cacique Xicão Xukuru, liderança proeminente no cenário nacional, que foi morto em 1998. Todas as pessoas assassinadas estavam diretamente ligadas à histórica luta do povo Xukuru pela garantia do seu território tradicional. Isso nos leva a crer que os crimes foram praticados como forma de impedir o avanço das reivindicações indígenas.

Dentre os vários problemas identificados, estão aqueles apresentados pela Comissão constituída através de Resolução do CDDPH de 20 de março de 2003, que aponta importantes fatos presentes no decorrer das investigações das mortes do cacique Xicão (1998), da liderança Chico Quelé (2001) e do atentado sofrido pelo atual cacique Marcos Xukuru (2003), que resultou na morte de outros dois índios, Nilson e Nilsinho. Dentre as várias constatações, a Comissão Especial destaca que, da condição de vítimas, os indígenas têm sido colocados na situação de réus; que não houve apuração adequada dos fatos sob investigação (motivação para o crime); que há preconceito contra as lideranças indígenas; que o papel e a credibilidade das testemunhas não são ponderados num ambiente reconhecidamente de polarização e suspeição.

No momento, a ABA coloca em destaque o processo nº 2006.83.02.000366-5, que se refere à ação penal por “crime de violação de domicílio, dano e incêndio”, decorrente do ocorrido em 07 de fevereiro de 2003 na terra indígena Xukuru, localizada em Pernambuco, nordeste brasileiro. Nessa data, o cacique xukuru Marcos Luidson foi vítima de uma tentativa de assassinato dentro do seu território tradicional; em conseqüência, foram mortos dois índios que o acompanhavam e identificado como responsável pelos disparos outro índio Xukuru integrante de um grupo opositor ao cacique. Indignada com as mortes e a referida tentativa, a população indígena da aldeia de Cimbres se voltou contra um grupo de famílias Xukuru ligadas ao assassino; casas e carros foram destruídos e tais famílias foram banidas do seu território. O Ministério Público Federal em Pernambuco denunciou 35 (trinta e cinco) pessoas por estarem envolvidas no evento.

Em maio de 2009, os denunciados foram condenados a penas que variam de 13 anos a 10 anos de reclusão, além de vultosas indenizações em dinheiro. Tal sentença é decorrente do desmembramento dos inquéritos, excluindo o cacique Marcos Luidson da condição de vítima, e o considera agente provocador no processo em que se investiga, precisamente, o atentado contra a vida daquele; no inquérito sobre as destruições, é o cacique indiciado e sua condição foi agravada em virtude de ter sido condenado à prisão pela suposta prática de crimes, sem uma análise isenta e contextualizada dos acontecimentos que resultaram na destruição de casas e carros do grupo dissidente.

Pelos relatos colhidos dos indígenas e dos seus advogados, as recomendações da Comissão Especial designada pelo CDDPH às autoridades responsáveis pela investigação policial e judicial desse caso não foram seguidas, o que pode gerar graves danos aos direitos individuais e coletivos aos diretamente acusados, mas, igualmente, sujeitar o Brasil a questionamentos junto aos órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Ressaltamos que há, perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA processo em aberto, aguardando juízo de admissibilidade perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em que se investigam diversas violações aos direitos humanos do povo Xukuru, em decorrência da demora injustificada do Estado brasileiro em concluir o procedimento de regularização da terra indígena Xukuru.

Para a ABA, somente  uma investigação isenta, livre de preconceitos e juízos prévios sobre a conduta dos acusados poderá produzir um processo judicial que assegure não apenas o pleno exercício dos direitos fundamentais da pessoa humana, mas, igualmente, o respeito ao culturalmente diverso. Trata-se do reconhecimento e do respeito à diversidade étnica e cultural determinados pela Constituição Federal de 1988, sendo dever do Poder Judiciário dar eficácia plena ao texto constitucional, interpretando as normas infraconstitucionais em conformidade com a Magna Carta.

Nessa perspectiva, o encarceramento de lideranças indígenas importantes, reconhecidas nacional e internacionalmente, representa uma medida extrema que atinge não apenas os direitos individuais dos diretamente acusados, mas  a toda a coletividade indígena, uma vez que se verá impossibilitada de contar com a participação efetiva dos responsáveis pela manutenção da unidade do grupo (vide importante documentação e análises contidas no recente livro Plantaram Xicão: Os Xukuru de Ororubá e a criminalização do direito ao território. Vânia Fialho, Rita de Cássia Maria Neves e Mariana Carneiro Leão Figueiroa (orgs). Manaus: PNCSA, UEA Edições, 2011). Tais lideranças também atuaram e atuam como defensores dos direitos coletivos do grupo junto ao Estado brasileiro e à sociedade nacional.

Por essa razão, a Convenção 169 da OIT orienta os Estados signatários desse diploma internacional a adotarem outras medidas de punição aos membros de populações tradicionais que não o encarceramento:

Artigo 10
1. Quando sanções penais forem impostas pela legislação geral a membros desses povos, deverão ser levadas em conta suas características econômicas, sociais e culturais.
2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento.

Diante do exposto, esta Associação, preocupada com as medidas que vêm sendo tomadas pelas instituições responsáveis pela averiguação dos casos e pelos encaminhamentos que estão sendo adotados, vem requerer:

1. Ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH/Secretaria de Direitos Humanos/Presidência da República: os procedimentos necessários à investigação das denúncias das graves violações aos direitos humanos sofridos pelo povo indígena Xukuru, inclusive  já denunciados pelas organizações indígenas e indigenistas;
2. À Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) para conhecimentos dos fatos e adoção das medidas que entender necessárias.
3. Ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região a revisão do processo nº 2006.83.02.000366-5, a fim de garantir os direitos fundamentais do povo Xukuru e de suas lideranças. Trata-se de respeitar princípios básicos nos procedimentos, especialmente a realização de perícia antropológica no âmbito criminal para melhor contextualizar esses acontecimentos e propiciar outros elementos que auxiliem  no julgamento desse caso.

Brasília, 29 de setembro de 2011.

http://www.abant.org.br/news/show/id/161

Observação: a Nota, embora assinada em 29 de setembro, somente agora foi divulgada pela ABA em seu saite. TP.

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