Por Lúcio Flávio Pinto*
Em março deste ano, toda imprensa nacional – e também do exterior – se interessou intensamente pela hidrelétrica de Jirau, que está sendo construída no rio Madeira, no Estado de Rondônia, no extremo oeste do Brasil, Milhares de trabalhadores, de um total de 18 mil, se amotinaram e destruíram o acampamento.
A violência não teve paralelo na história dos “grandes projetos” na Amazônia. Nem se justificou por causas explícitas. Não havia um movimento reivindicatório associado à explosão de protesto. O acampamento foi reconstruído e um mês depois as obras foram retomadas, embora com atraso de cinco meses no cronograma. Não houve mais interesse por Jirau.
Agora, sob silêncio quase total, três fatos ainda mais importantes se sucederam no mês passado em Jirau e na outra barragem do complexo hidrelétrico do Madeira. As águas começaram a ser represadas pela represa de Santo Antônio, no baixo curso do rio, no dia 15 de setembro. A partir daí começou a ser formado o reservatório da hidrelétrica, que alcançará, quando completamente cheio, área de 546 quilômetros quadrados.
Uma semana depois, a primeira das 44 turbinas da casa de força principal foi montada. Até o final do ano serão mais duas. Na segunda quinzena de dezembro Santo Antônio começará a gerar energia. Sua capacidade nominal instalada é de 3.850 megawatts.
No mesmo mês de setembro a água voltou a passar pelo leito natural do Madeira, depois de ter sido desviada por uma barragem de terra, para permitir a construção do vertedouro principal da usina de Jirau, que fica mais acima da de Santo Antônio. Em julho do próximo ano será a vez de começar o enchimento do reservatório de Jirau, que em outubro de 2012 colocará em operação a primeira das suas 55 turbinas, capazes de produzir 3.900 negawats de energia.
A falta de interesse da opinião pública por esses acontecimentos causa perplexidade e põe em xeque a dita relevância que a Amazônia tem para o país. É um contraste com o interesse, sobretudo dos grupos organizados da sociedade civil, pela construção de grandes hidrelétricas na região.
Toda atenção parece se concentrar – e se esgotar no momento – na hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará. Enquanto a programação de Santo Antônio chegava ao ponto culminante e a de Jirau se lhe seguia, Belo Monte ainda se encontra numa polêmica fase de montagem do acampamento de obras. Não chegou a haver ainda uma intervenção sobre o leito do rio porque a justiça local a proibiu. Permitiu apenas que continuem os serviços em suas margens, onde está sendo erguido o acampamento e as obras secundárias.
É provável que mesmo essa medida seja logo suspensa, conforme tem sido a rotina no ziguezague das decisões entre o juízo de primeiro grau e os tribunais superiores, mais propensos a atender os recursos do construtor contra os pedidos do Ministério Público Federal. O MPF do Pará já ajuizou 12 ações contra a continuidade de Belo Monte. Nenhum processo transitou em julgado.
A obra de Belo Monte pode ser considerada a terceira maior do país, depois de Itaipu, no Paraná, e Tucuruí, no Pará. Sua capacidade nominal supera a da usina do rio Tocantins. Mas não a sua energia média, que é muito baixa: apenas 40% do que a usina pode produzir serão disponíveis o ano inteiro, o menor índice entre todas as grandes hidrelétricas nacionais.
A razão: a enorme diferença de vazão do Xingu entre o inverno e o verão, quando não haverá água para movimentar nenhuma das suas 20 gigantescas turbinas. Com pequeno reservatório, Belo Monte será quase uma usina “a fio dágua”, funcionando com água corrente. Suas turbinas são as convencionais, que precisam de uma grande queda para que suas pesadíssimas engrenagens se movimentem.
As duas hidrelétricas do Madeira são completamente “a fio d’água”, com uma diferença fundamental: suas turbinas, tipo bulbo, funcionam na horizontal e não na vertical. Enquanto a queda em Belo Monte será de mais de 50 metros, em Santo Antônio e Jirau será de menos de 20 metros. Essa possibilidade se deve à vazão constante do rio Madeira, o que permitirá que a energia firme das duas usinas fique entre 60% e 70%.
Como os grandes rios da Amazônia são de planície, com baixa declividade natural, barragens de alta queda provocam a inundação de extensas áreas, com terrível dano ecológico e efeitos negativos sobre a geração de energia. Se o governo pretende continuar a extrair energia desses rios, como anuncia no Programa de Aceleração do Crescimento, as represas devem ser de baixa queda. Para que gerem mais energia, é preciso usar turbinas bulbo.
As quase 100 turbinas que serão instaladas nas casas de força de Jirau e Santo Antônio são as maiores do mundo. Além disso, nenhuma outra hidrelétrica teve tantas dessas máquinas como as duas usinas do Madeira, que é o 17º mais extenso rio do planeta e o 7º em volume de água. É também o principal afluente do maior de todos os rios da Terra, o Amazonas, e o que mais sedimentos deposita na sua calha, que lhe propicia a maior descarga sólida de todas as bacias hidrográficas no mar. E é o terceiro maior rio brasileiro.
Essas dimensões e as características originais dos empreendimentos hidrelétricos nele em implantação deviam atrair para a região o alegado interesse nacional pela Amazônia. O silêncio mantido enquanto as obras chegam ao marco da sua realização, já sem possibilidade de retorno, talvez confirme o que se costuma suspeitar: que os cuidados com a Amazônia são mais para impressionar inglês desatento.
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Lúcio Flávio Pinto é paraense de Santarém; tem 61 anos e é jornalista há 44. Passou por algumas das principais publicações brasileiras, e hoje é editor do Jornal Pessoal, newsletter quinzenal que circula em Belém desde 1987. Já recebeu quatro prêmios Esso e dois Fenaj, além do International Press Freedom Award. Tem 15 livros publicados, a maioria sobre a Amazônia.