A mudança em uma expressão no projeto do novo Código Florestal pode deixar 25% da Amazônia sem proteção legal. O alerta é da equipe coordenada pelo Museu da Amazônia – Musa e de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa. Os cientistas solicitam que as áreas sujeitas a inundações da Amazônia e do Pantanal sejam tratadas por uma legislação específica. Em agosto, o grupo entregou um pedido de emenda no Projeto de Lei 30/2011, que trata da revisão do Código Florestal.
Unisinos – “A mudança no termo ‘margem média dos rios’, contida no artigo 4º da nova lei, pode deixar até 400 mil km² de floresta sem proteção”, diz Ennio Candotti* à IHU On-Line em entrevista concedida por e-mail. Segundo ele, caso as áreas de florestas alagáveis não sejam incluídas nos dispositivos legais que protegem as florestas, “os ecossistemas ficarão fragilizados com graves consequências para as funções biológicas e climáticas das florestas”.
José Antonio de Aleixo da Silva*, membro da diretoria da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, também concedeu entrevista à IHU On-Line sobre as mudanças propostas pelo novo texto do Código Florestal. Para ele, “as dificuldades encontradas nessa discussão são decorrentes da disputa entre agronegócio e ambientalismo. Mesmo com apresentações de nossos resultados realizadas no Congresso (Câmara e Senado), têm prevalecido interesses setoriais que tentam desqualificar nosso trabalho, principalmente com argumentos de que chegamos tarde”. Confira a entrevista:
A mudança no termo “margem média dos rios”, contida no artigo 4º da nova lei, pode deixar até 400 mil km² de floresta sem proteção. Quais prejuízos para a fauna e flora da Amazônia isso pode acarretar?
O Código Florestal em vigor faz referência às margens altas para definir o leito dos rios. O projeto em tramitação desloca essa margem (art 3º inciso IV) para as margens do leito “regular” não definindo o que seria regular. A Secretaria do Patrimônio da União utiliza a margem alta como referência. Isso significa que o deslocamento dessa margem e redução da extensão das propriedades (e responsabilidades) da União (o leito dos rios pertence à União segundo a Constituição Art. 20) reduzirá o Patrimônio da União em muitos bilhões de reais, fragilizará a proteção e a responsabilidade da União sobre essas áreas e, além disso, propiciará movimentos de ocupação e posse de terras que não mais pertenceriam à União.
Na Amazônia, a extensão dessas terras é da ordem de 300 000 km². Trata-se de uma área de floresta alagada de 400 000 km² (que corresponde às áreas entre as margens altas) menos a área entre as margens “regulares”, que se estima ser de 100 000 km²). Nem todas as áreas alagadas correspondem a áreas de floresta como, por exemplo, no Pantanal, que são áreas de cerrados. No Rio Grande do Sul há os dois casos: áreas alagadas de floresta e outras correspondentes a biomas diferentes.
Quais resguardos essa área, que equivale ao dobro do tamanho do estado de São Paulo, teria caso fosse garantida a proteção legal?
A proteção ambiental no caso das áreas do Patrimônio da União estaria garantida pela própria propriedade da área de floresta alagável. A essa área deve-se acrescentar uma pequena faixa de 15 metros às margens dos rios, que também é da União. As Áreas de Preservação Permanente deveriam ser medidas a partir dessa faixa marginal aos rios. Não resta dúvida de que o leito do rio deve ser medido entre as margens altas, uma vez que não podemos ter duas linhas de demarcação para o Patrimônio da União: uma para a cheia outra para a vazante. Novamente enfatizo: a questão é muito importante na Amazônia porque a diferença de nível dos rios entre a cheia e a vazante chega a ser de mais de 10 metros na vertical. Em outras partes, essa diferença não chega a ser tão significativa e a margem alta e a “regular” podem estar próximas.
Para quando espera a aprovação da emenda no Projeto de Lei 30/2011 encaminhada em agosto? Que embargos políticos o senhor acredita que podem comprometer essa aprovação e por quê?
Não tenho sinal que a emenda tenha sido considerada pela Comissão de Justiça, onde deveria receber a devida atenção por envolver questões de caráter constitucional. Se isso acontecer, temos ainda a possibilidade de submetê-la à Comissão de Ciência e Tecnologia, uma vez que o termo “margem regular” carece do rigor que se exige em uma linha de referência dessa importância. Por outro lado, consultas técnicas poderão confirmar que boa parte da floresta Amazônica se encontra em áreas alagadas periodicamente. Deve-se lembrar que as árvores, quanto têm suas raízes submersas, pausam a respiração, isto é, deixam de absorver e emitir CO². Por essa razão se acredita que, na Amazônia, as emissões e sequestros de CO² estão em equilíbrio.
O senhor destaca a importância de um tratamento diferenciado para as áreas úmidas do Brasil. Nesse contexto, partindo do princípio de que o Código Florestal é uma instância federal, como restringir o uso dessas áreas às comunidades tradicionais?
A sua atuação deveria ser regulamentada através de Portarias elaboradas pelos organismos competentes, de acordo com o conhecimento científico à disposição. Em todo caso, deve-se garantir às comunidades tradicionais e aos pequenos agricultores que seja permitido o plantio e a colheita nessas áreas. Elas têm sido dadas em concessão a estas comunidades, preservando à União a propriedade.
Caso as áreas de florestas alagáveis não sejam incluídas nos dispositivos legais que protegem as florestas, que reflexos ecológicos, biológicos e econômicos isso pode acarretar?
Creio que os ecossistemas ficarão fragilizados com graves consequências para as funções biológicas e climáticas das florestas. A precipitação é a principal fonte de água na bacia amazônica; cerca de 50% dessa precipitação depende da evaporação e da transpiração da cobertura vegetal. Por outro lado, cerca da metade da precipitação incidindo na bacia é transformada em descarga, indo primeiramente para os pequenos riachos, os igarapés. A trama de pequenos igarapés da bacia amazônica alimenta os grandes rios com seu fluxo de água de diferentes propriedades químicas. Por sua vez, esses igarapés são margeados por florestas que alimentam os organismos aquáticos, mostrando a íntima relação e mútua dependência entre água, floresta e organismos na Amazônia. Devido a diferenças ao longo do ano no volume da precipitação, o nível dos grandes rios flutua sazonalmente com uma amplitude da ordem de 10 metros na Amazônia Central, podendo chegar a quase 15 metros em outras áreas, implicando uma expansão da cheia de quilômetros nas planícies alagáveis marginais e suas florestas.
No pico da fase de águas baixas, as áreas alagáveis podem ser reduzidas a apenas 20% da área total inundada durante o pico das cheias. Contudo, elas contribuem com 30% do balanço total de água do canal principal do rio, pois a capacidade de estocagem das áreas alagáveis, desde que mantidas com suas florestas associadas, é bem superior à do canal principal. Em nenhum outro lugar do planeta são encontradas florestas que toleram períodos de inundação tão longos, de até 270 dias ao ano, como aquelas encontradas nas áreas alagáveis ao longo dos grandes rios amazônicos. Todos os anos, durante as cheias, quando a água invade as margens laterais, as árvores passam a fazer parte dos corpos de água por vários meses, tendo suas raízes, troncos ou mesmo as copas inteiramente recobertas pela água dos rios associados. Essa vegetação é adaptada a tal situação de inundação, compondo florestas únicas no mundo, com a maior biodiversidade registrada para esses ambientes (mais de 1000 espécies).
A vegetação das florestas alagáveis é também de capital importância para o desenvolvimento e manutenção da biodiversidade amazônica, oferecendo alimento e habitat para vários animais, como peixes, macacos e pássaros. Além disso, um número muito grande de invertebrados terrestres vive permanentemente nas copas das árvores da floresta ou migra para elas no intuito de escapar às inundações. As áreas de florestas alagáveis devem ser incluídas nos dispositivos legais que protegem as florestas, uma vez que a sua devastação ou sua retirada massiva trarão reflexos negativos imediatos à estrutura física e integridade dos processos ecológicos dos ambientes alagáveis, como também à diversidade biológica de toda a região amazônica.
As implicações de alterações dessa natureza irão se refletir diretamente nos ciclos climáticos e na redução dos múltiplos recursos naturais explorados pelas populações humanas locais, com reflexos negativos na economia e no abastecimento dos maiores centros urbanos na Amazônia.
Qual o papel político da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC e da Academia Brasileira de Ciências – ABC em relação ao Código Florestal?
O papel político da SBPC e da ABC nessa discussão do Código Florestal é, fundamentalmente, mostrar ao Congresso Nacional que a ciência e tecnologia disponíveis na atualidade devem ser consideradas na elaboração de um instrumento legal eficiente, pois um código que trata das relações entre economia, meio ambiente e sociedade não pode ser tendencioso. Isto é, se não houver equilíbrio entre as partes consideradas, o grande perdedor será o país, pois poderá ser um grande produtor de alimentos causando sérios danos ambientais, ou um país relativamente protegido ambientalmente, mas com falta de alimentos para a população. O equilíbrio é fundamental e a ciência e a tecnologia mostram onde é possível encontrar esse equilíbrio, mantendo-se o elevado nível de produtividade agrícola com sustentabilidade ambiental e social.
A comunidade científica se omitiu em relação à discussão atual do Código Florestal? Quais dificuldades encontradas nessa discussão, uma vez que ela abrange diversos setores da sociedade e do governo?
Desde o primeiro Código Florestal, promulgado pelo decreto 23.793, de 23 de janeiro de 1934 e, posteriormente, a lei 4.771 de 15 de setembro de 1965, houve participação da comunidade científica, que usou o que se tinha disponível nas épocas em termos de ciência e tecnologia. O país cresceu, a ciência e tecnologia avançaram muito e a reformulação do Código Florestal se faz necessária, para se ajustar às condições atuais.
No processo de discussão da reformulação do Código Florestal, as entidades científicas SBPC e ABC não foram consultadas. A organização de um grupo de trabalho foi uma demanda da própria comunidade científica, e como resultado houve a formação de tal grupo em junho de 2010. Após estudos profundos, foi publicado o livro O Código Florestal e a ciência. Contribuição para o diálogo”, lançado em Brasília e entregue a todos os congressistas.
As dificuldades encontradas nessa discussão são decorrentes da disputa entre agronegócio e ambientalismo. Mesmo com apresentações de nossos resultados realizadas no Congresso (Câmara e Senado), têm prevalecido interesses setoriais que tentam desqualificar nosso trabalho, principalmente com argumentos de que chegamos tarde. O fato é que não fomos convidados. Não estamos defendendo o ambientalismo nem o agronegócio, como algumas pessoas afirmam. Achamos que, para se construir um instrumento legal que possa ser Código Florestal, ambiental ou da biodiversidade como muitos defendem, há necessidade de mais tempo para incluir toda a ciência e tecnologia no documento. Infelizmente são poucos representantes no Congresso que concordam com essa posição. A disputa é mais forte do que a racionalidade e isto é muito ruim para o país.
Quais são os pontos do Código Florestal que mais geram divergências para aprovação da mudança?
Na realidade, os pontos que mais geram disputas são de caráter jurídico no que diz respeito à ilegalidade de muitos produtores agrícolas ou da utilização de áreas com produção agrícola em Áreas de Preservação Permanente. Também a possibilidade dos estados terem legislações próprias tem gerado muita controvérsia. Anistia a quem desmatou ilegalmente também é muito criticada pelos movimentos ambientalistas, embora o setor do agronegócio fale que tal anistia não existe. O que realmente falta é bom senso para um acordo entre as partes. Se ambas cederem nos limites possíveis, o Brasil vai construir um instrumento legal equilibrado. Se o acordo não ocorrer, todos sairão perdendo.
*Ennio Candotti é físico formado pela Universidade de São Paulo – USP e atualmente é professor da Universidade Federal do Espírito Santo e atual presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC.
*José Antonio de Aleixo da Silva é graduado em Agronomia pela Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE, mestre em Ciência Florestal pela Universidade Federal de Viçosa – UFV-MG e Ph.D em Biometria e Manejo Florestal pela University of Georgia. Atualmente é professor do Departamento de Ciência Florestal da UFRPE.
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