Lutas sociais no campo

Debate sobre o Código Florestal traz à tona a questão da concentração da propriedade da terra e a atuação dos movimentos sociais rurais no Brasil

Lucilia de Almeida Neves Delgado

Também no crepúsculo do século 19 e na aurora do século 20, o Brasil era um país assombrado por rebeliões e revoltas camponesas, que se fizeram visíveis em diferentes estados da federação. Foi assim com a Campanha do Contestado em Santa Catarina e com a saga de Canudos, na Bahia. Essa epopeia social, marcada por forte misticismo, foi descrita com detalhes pelo escritor brasileiro Euclides da Cunha no livro épico Os sertões. O romancista peruano Mário Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura de 2010, também escreveu sobre Canudos um belo e contundente texto, A guerra do fim do mundo. Nele traçou um retrato contundente da tragédia histórica vivida pelos desterrados daquele arraial de esperançosos esfarrapados perdidos na aridez do sertão brasileiro.

Contestado e Canudos foram rebeliões esmagadas pelo Exército brasileiro. A resistência dos camponeses que se reuniram em Canudos, liderados pelo messiânico Antônio Conselheiro, tornou-se acontecimento lendário e emblemático da história do Brasil.

Todavia, as rebeliões nas áreas rurais brasileiras nos primeiros 20 anos do século 20 foram, na verdade, mobilizações isoladas que não tiveram qualquer impacto na reformulação da distribuição da terra e no assentamento de trabalhadores rurais. Naqueles anos, predominavam práticas coronelísticas e clientelistas e uma estrutura fundiária maciçamente latifundiária e monocultora que absorvia mão de obra extremamente barata. O predomínio econômico era o da agricultura, com destaque para a produção cafeeira, destinada à exportação. Nem mesmo o impacto da grande depressão do fim da década de 1920, que diminuiu o consumo mundial de café e provocou uma superprodução no Brasil, contribuiu para modificar a estrutura latifundiária brasileira e também para reter o camponês em sua região de origem.

Crise e revolução

Depois de 1930, ocorreu uma crescente industrialização acompanhada de uma urbanização definitiva. As áreas rurais empobrecidas pela crise mundial transformaram-se em focos de expulsão de mão de obra para as cidades. Esse movimento migratório acabou por contribuir para uma ocupação desordenada das áreas urbanas. Ocupação caracterizada por favelização crescente e aumento, ano após ano, da violência.

Em seguida à crise de 1929 e à Revolução de 1930, houve pequenas mudanças na estrutura de distribuição da terra, em especial na região Sudeste, pois muitos cafeicultores endividados tiveram que dividir parte de suas terras com seus colonos. Mas esse foi um movimento sem maiores desdobramentos e a estrutura fundiária brasileira continuou predominantemente concentrada. Alguns casos de exceção a esse modelo localizam-se no Sul do Brasil, em especial em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, em decorrência do tipo imigração – colonato e ocupação de terra (minifúndios) lá realizada.

Também ao longo da década de 1930, novo ordenamento jurídico trabalhista foi sendo construído. Sua consolidação ocorreu em 1943, quando da publicação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Esse conjunto de leis, todavia, não se estendeu ao campo. As relações de trabalho nas áreas rurais só foram regulamentadas em 1963, no governo João Goulart, quando da edição do Estatuto do Trabalhador Rural.

Entre 1945 e 1955, foram muitas as iniciativas de organização dos trabalhadores rurais, incentivadas tanto por comunistas como por grupos de católicos que começaram a vincular fé e preocupação social. Depois de 1955, com a interiorização do país decorrente do ciclo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, discussões sobre reforma agrária contaminaram o cotidiano da política, dos movimentos sociais e da intelectualidade que se ocupava em “pensar o Brasil”.

Nessa época, a União dos Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), influenciada pelo Partido Comunista Brasileiro, defendia a união entre operários e camponeses. Em 1955, surgiu no Nordeste, no Engenho Galileia, a primeira Liga Camponesa. Esse movimento, que defendia a realização imediata de uma profunda reforma agrária, teve efeito multiplicador e simbólico efetivo e contou com a liderança do advogado socialista Francisco Julião. Seu lema era: “Reforma agrária na lei ou na marra”.

Igreja e Cepal

Também inspirados pelo ideário terceiro-mundista, pelas renovações por que passava o catolicismo no mundo e por ideias de superação do subdesenvolvimento, difundidas pela Comissão Econômica para América Latina (Cepal), militantes da Ação Católica e do clero progressista atuaram no campo brasileiro e contribuíram para difundir o Método de Educação de Base (MEB) como fórmula ideal para alfabetização da população rural.

Em 1961, foi realizado em Belo Horizonte o 1º Congresso Nacional dos Trabalhadores Agrícolas, que contou com a presença de Julião, Riani, presidente do Comando Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGT), de lideranças estudantis e operárias e também de políticos de diferentes filiações partidárias, como Tancredo Neves e Magalhães Pinto. Esse último, poucos meses depois, participaria ativamente da deposição do presidente João Goulart, em 1964.

O golpe de 1964 pôs fim a essa mobilização crescente nas áreas rurais. Durante a vigência dos governos militares, lideranças dos movimentos de trabalhadores agrícolas do pré-1964 foram presas e muitas organizações sindicais de trabalhadores rurais sofreram intervenção. Como contrapartida, o governo federal instituiu um programa de previdência para o campo, que recebeu o nome de Funrural. Além disso, aprovou o Estatuto da Terra, que estabeleceu termos e orientações, implementados sem maior força e organicidade, para realização de uma moderada reforma agrária no país.

Ao fim do ciclo militar, os problemas decorrentes da concentração da propriedade da terra no Brasil continuaram agravando-se. Tal fato levou a Igreja Católica a constituir a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e os trabalhadores rurais a se agregarem na Confederação dos Trabalhadores Agrícolas (Contag). Nesse ambiente, foi fundado, em 1984, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

A palavra de ordem do MST passou a ser: “Ocupar, resistir e produzir”. Sua extensão crescente alcança a maior parte do território nacional e tem efetiva projeção internacional, inclusive no Fórum Social Mundial. Sua organização, bastante profissionalizada, inclui escolas, cursos técnicos, cursos de formação sobre sociologia, geografia e história, além de administração rural. Defensores de uma reforma agrária planejada e da ocupação de terras por eles consideradas improdutivas, os militantes sem terra projetam em seus ideais uma melhor distribuição das terras cultiváveis e a adoção de agricultura familiar sustentável como modelo prioritário para o Brasil.

No decorrer dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, para se contrapor ao crescimento do MST e às suas propostas, foi organizada pelos grandes produtores agrícolas brasileiros a União Democrática Ruralista (UDR), que teve grande influência à época da Assembleia Nacional Constituinte.

Todos sabem que a resolução dos problemas de acesso à terra no Brasil e que a adoção de um modelo de agricultura sustentável é estratégica. Todavia, acordos sobre como solucionar essas questões são um horizonte ainda longínquo. Talvez um pouco mais de lucidez na percepção da complexa relação entre acesso à terra, proteção ao meio ambiente, políticas efetivas de apoio aos produtores rurais, em especial aos de menor porte, possa contribuir para que um dos mais graves problemas da história brasileira possa alcançar adequada e justa solução.

*LucIlia de Almeida Neves Delgado é historiadora, professora da UnB, da UFMG e da PUC Minas (colaboradora).

ESTADO DE MINAS, 11-6-2011

Enviada por José Carlos.

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