A mão do cearense Augusto Marcelino da Silva, 82 anos, é áspera como lixa metálica, depois de mais de cinco décadas de trabalho no campo como meeiro de um latifúndio vizinho. Da varanda da casa, na comunidade KM 69, distrito de Limoeiro do Norte, a 205 quilômetros de Fortaleza, avista-se uma ponta da plantação de bananas da norte-americana Del Monte Fresh Fruits, gigante da fruticultura que há uma década atua na região.
No fundo da casa, a Del Monte também é visível: uma área de mais de 1,5 mil hectares de terra nua, onde até recentemente a empresa cultivava abacaxi irrigado para exportar para os EUA e a Europa. A Chapada do Apodi, onde mora seu Augusto, separa o Ceará do Rio Grande do Norte e é uma extensa área de terras férteis e valiosas do Semiárido, desde que irrigadas. Na política de desenvolvimento regional, é tida como um polo promissor da fruticultura made in Brazil e de dólares para a balança comercial. Ou uma fonte inesgotável de problemas ambientais e socioeconômicos, segundo os críticos da monocultura em larga escala.
Alguns anos atrás, a multinacional com sede em Coral Gables (Flórida), atraída pelos incentivos estaduais, fez de tudo para convencer seu Augusto a vender a sua pequena área. Como a extensão é insuficiente para a agricultura comercial isolada, a família vive da aposentadoria rural dos mais velhos e do leite tirado de 12 vacas. “Avisei logo que não vendia”, diz o produtor, sentado ao lado da esposa, dona Rosa, que chega com o café fresquinho. “Eles nem insistiram muito, logo viram que eu tava falando sério. Quem vendeu terra por aqui e não comprou logo outra ficou sem terra e sem dinheiro.”
O que levou seu Augusto a viver ali com a família, onde estão desde 1977, não existe mais. “Antes eu caçava preá e outros bichos pra comer, além de plantar algodão na parte da fazenda que deixavam pra mim. Também tinha muita fruta por aqui, carnaúba. E a água no poço dava pra gente beber.” Ao longo das décadas de 70 e 80, sempre dominada pela oligarquia cearense, a chapada perdeu a mata, derrubada para abastecer as indústrias cerâmicas e para dar lugar ao algodão, cultura que entrou em crise a partir de meados dos anos 80. Os preás sumiram de vista. E, mais recentemente, a água deixou de ser potável, por causa do uso inadequado dos agrotóxicos e ao consumo crescente, após a chegada das grandes plantações de frutas – o abacaxi da Del Monte, mas principalmente a banana, que ocupa mais de 3 mil hectares na região. Resultado: o déficit hídrico, segundo especialistas, chega a 4 milhões de metros cúbicos de água ao ano no Aquífero Jandaíra.
Ao contrário de seu Augusto, os vizinhos foram aceitando as propostas da multinacional e de outras empresas que migraram para lá. Os mapas mais recentes de Limoeiro, por conta do êxodo, já não incluem a KM 69. E a maioria das cerca de 70 famílias que moravam ali até alguns anos atrás foi para a periferia da cidade, enquanto poucos conseguiam comprar terras em outros lugares. Hoje sobraram apenas quatro famílias.
Quando começar o período das chuvas, diz quem conhece a região, a situação tende a piorar. A Del Monte substitui aos poucos o abacaxi por banana e tem planos de pulverizar agrotóxico com aviões, como fazem as demais. O “veneno” será levado pelo vento para os canais de irrigação, como tem ocorrido nos últimos tempos, conforme reportagem publicada por CartaCapital na edição 610.
A mesma água dos canais segue para as casas da chapada, a despeito da contaminação comprovada por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará, sob a coordenação da professora Raquel Rigotto. A UFC encontrou água contaminada nos poços artesianos, lençol freático e nas torneiras das casas. Além do “veneno” usado nas bananeiras, a pesquisa também encontrou princípios ativos do agrotóxico do abacaxi, cultivado na região exclusivamente pela empresa norte-americana até uns meses atrás.
Principal porta-voz das campanhas contra as pulverizações aéreas, o líder comunitário José Maria Filho foi assassinado no dia 21 de abril, com 18 tiros. A partir de sua morte, a bandeira ficou com o MST local, a Igreja e pesquisadores da cidade. Ouvidor da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Fermino Fecchio visitará a região nas próximas semanas para acompanhar as investigações. “O Ceará é conhecido por seus grupos de extermínio, daí a necessidade de ir à região para pressionar”, diz Fecchio.
De volta a Limoeiro, percebe-se que por ali as informações são escassas, quando não abertamente deturpadas. Quando o repórter pergunta a seu Augusto se ele não pretende sair dali quando começarem as pulverizações, ele desdenha: “Esse veneninho vai fazer mal pra gente? Ele não mata nem muriçoca!”, comenta, reforçando a impressão de que dali ele não sai. E evidentemente sem atinar para as conclusões científicas que indicam a presença de princípios ativos “altamente tóxicos e persistentes” nas águas.
Com ações negociadas na Bolsa de Nova York e faturamento anual de 3,5 bilhões de dólares, a Del Monte Fresh Fruits tem um histórico de problemas causados nos países onde atua. Assim como a irlandesa Fyffes, também presente na região, outra gigante de atuação internacional. Em 2008, por exemplo, as duas foram acusadas pela União Europeia de fazer parte do “cartel da banana”, responsável por reduzir os preços das frutas compradas na América Latina. A Del Monte recebeu multa de 60 milhões de dólares pelo caso, enquanto a Fyffes, que comprou no Brasil a Nolem e atua com o nome de Banesa, saiu ilesa. As duas também já foram acusadas de desestabilizar governos que contrariavam seus interesses e até de terem financiado, uns anos atrás, milícias na Colômbia. O poder que elas têm é compreensível: em alguns países, elas detêm o monopólio da produção.
O passivo ambiental, ainda que gravíssimo, não é a única encrenca em que essas empresas se meteram no Brasil. Há anos as duas “empresonas” – assim como as brasileiras Fruta Cor e a Agrícola Famosa – atuam dentro do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi, utilizando lotes familiares para a produção de bananas e uma estrutura de irrigação de mais de 50 milhões de reais construída com dinheiro público. De responsabilidade do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs), a área foi desapropriada em 1986, da qual mais de 150 pequenos produtores ficaram sem a terra e sem a indenização. A intenção divulgada na ocasião era a de dividir a área em lotes de 4 a 16 hectares entre os ‘irrigantes’, como deveria acontecer em todos os perímetros irrigados do Nordeste.
O que se passa ali, no entanto, é algo bem diferente, como descreve o procurador Luiz Carlos de Oliveira Júnior, do Ministério Público Federal em Limoeiro: “O Dnocs parece ter perdido inteiramente o controle dos lotes, sendo certo que grandes empresas e grandes agricultores ocupam inúmeros lotes destinados a pequenos assentados. A Del Monte, por exemplo, estava a cercar terras pertencentes ao Dnocs (ou seja, à União), conforme fotos que acompanham a representação. É relevante frisar que boa parte da área recebeu maciços investimentos federais, contando com ampla infraestrutura que se acha a serviço de empresas privadas”.
Tudo seguia até que a morte de Zé Maria despertou atenção para a chapada. Diante da ação do procurador, a Justiça Federal chegou a um Termo de Ajustamento de Conduta, homologado em julho. E deu prazo de seis meses, a expirar em outubro, para o Dnocs identificar as próprias terras, realizar nova licitação para os pequenos concessionários e retirar os invasores. Em ofício de 5 de janeiro de 2008, por sinal, o próprio Dnocs relaciona algumas das empresas que se encontram nessa condição: “Existem empresas que invadiram terras do Dnocs, é o caso da Banesa (Fyffes), da Del Monte e da Carbomil Química S.A.”, anota o despacho, assinado pelo diretor José Felipe Cordeiro.
Autora de uma dissertação sobre a Chapada do Apodi, a geógrafa Bernadete Freitas resume da seguinte forma o que se passa, desde a mudança de orientação do perímetro, iniciada nos anos 90: “O incentivo à inserção de empresas nacionais e transnacionais intensificou o processo de expropriação de agricultores familiares do perímetro, levando a uma forte concentração de terras sob o domínio dessas empresas. Há mais empregos, porém, em condições de extrema vulnerabilidade”.
Diante das dúvidas, uma equipe liderada por dois engenheiros agrônomos do departamento federal encontra-se em Limoeiro com a missão de levantar as informações para, em seguida, iniciar o processo de regularização fundiária. “Ocorre que os irrigantes cadastrados originalmente nunca tiveram registro das terras, que acabaram ficando com a União”, diz Reinaldo Costa, um dos engenheiros do Dnocs. “O cadastro da Fapija, a federação responsável por administrar o perímetro, indica que existem 324 irrigantes que, ao fim do processo receberão um novo contrato de concessão para usar as terras. Algumas áreas do Dnocs também estão requeridas em processos de usucapião, o que não é permitido em terras públicas. Ou seja, ainda vai haver uma briga grande na Justiça.”
Presidente da Fapija, Raimundo dos Santos, o Alemão, como é conhecido na cidade, sai em defesa das empresas que atuam na área do perímetro, argumentando que espera o Dnocs concluir seus trabalhos para refazer o cadastro de concessionários. “Aqui sempre houve muita pobreza, são essas empresas que estão trazendo o desenvolvimento pra cá. Elas geram empregos e dão para o pequeno as condições técnicas pra aumentar a produtividade. Quando perdemos os bananais no ano passado, com as chuvas fortes, o governo não apareceu para ajudar. O apoio do governo federal e do estadual, por sinal, é zero.” A ausência do Estado chega ao limite de deixar os pequenos produtores sem assistência técnica alguma porque a licitação para contratar uma empresa para a tarefa, também a cargo do Dnocs, foi considerada irregular. Por outro lado, as empresas, inclusive nas áreas fora do perímetro, ajudam decisivamente a Fapija, ao pagar pela água usada na irrigação.
Diretor do Dnocs, cuja sede localiza-se na capital cearense, Rennys Aguiar Frota assumiu o cargo há três meses, após uma disputa jurídica que ameaçava vetar a sua nomeação. “Mandamos os técnicos e constituímos uma comissão que está refazendo o cadastro do perímetro. Sei que estamos com um passivo do tamanho do mundo, mas com essas ações vamos separar o joio do trigo. Nessa história, tem os que venderam irregularmente os lotes do Dnocs e aqueles que compraram irregularmente esses mesmos lotes. Por outro lado foram as grandes empresas que deram viabilidade comercial ao perímetro, o mais viável do Ceará. Mas sabemos que esses contratos de gaveta são completamente irregulares”, afirma Frota.
As empresas, por sua vez, negam que haja qualquer irregularidade. “Nos seus dez anos em atividades no Brasil, a Del Monte se orgulha em mencionar que não possui qualquer passivo de ordem ambiental, tampouco registros, sequer um, seja de que natureza for, que coloque as operações da companhia sob suspeição.” A argumentação das outras empresas que atuam no perímetro segue na mesma direção, a despeito do que diz o Ministério Público Estadual (que investiga a contaminação das águas), do Ministério Público Federal (que cuida da regularização fundiária) e do próprio Dnocs, que tem a obrigação legal de zelar pelo patrimônio público.
http://www.cartacapital.com.br/carta-verde/o-poligono-da-exclusao