O racismo como subproduto da sociedade de classes

José Bezerra da Silva* & Maria Edna Bertoldo**

Resumo: O racismo é descrito no texto como uma forma terrível de apropriação do trabalho humano. Assim, subscreve-se como um subproduto em que a classe dominante explora o trabalhador e dentre estes seleciona a partir da cor e de outros traços morfológicos uma imensa parcela da população para exercer certos trabalhos tidos como trabalhos inferiores. Em todo caso, o texto traz muitas informações históricas sobre o racismo, visualizando seu início nos tempos modernos e que só tem sentido na sociabilidade do capital. Por isso sugere que ao se combater o racismo o faça também à divisão da sociedade em classes, objetivando, desse modo, implementar a emancipação humana. Palavras-chave: racismo; classe social; exploração; capitalismo; emancipação humana.

“Propomo-nos com este artigo analisar sucintamente o racismo sob a perspectiva marxista. Não afirmamos “ipso litteris” que não se tenham escrito muitos textos sobre o racismo numa concepção marxista. O nosso intuito, porém, é apenas focalizar a questão, demonstrar a pujança do marxismo e a sua grandiosa contribuição para pôr fim ao racismo, entendido este como subproduto de uma sociedade de classes.

Afirmamos, de início, que o racismo dá lucro. Posto sob este viés, nos reportamos aos albores do sistema capitalista, cuja iniciativa européia se fortaleceu por ocasião do aprisionamento de negros na África subsaariana, os quais foram capitaneados em navios tumbeiros para as plantagens do Novo Mundo.

O século XV foi marcado por grandes mudanças ocasionadas pelas navegações européias. Os europeus conseguiram, ao criar rotas de acesso mais fácil através do oceano Atlântico, chegar à Ásia e àÁfrica Ocidental, além de estabelecer relação com territórios que até então não tinham contato com o mundo externo, como as Américas e a região Centro-Ocidental da África subsaariana. Do lado Atlântico para a África, a política expansionista dos europeus, sobretudo das monarquias ibéricas (Portugal e Espanha), tinha como principal intuito a exploração econômica de lucros imediatos, obtidos por meio do comércio. (MATTOS, 2007, p. 63).

Três fatores estiveram imbricados no processo de capitalismo nascente: aescravização de africanos, a “descoberta de novas terras” e a expectativa de riqueza imediata. Essas possibilidades reunidas foram suficientes para que o mundo se tornasse em bem pouco tempo uma espécie de mercado comum, cujo centro era a Europa e o resto dos povos sua primeira periferia. Implementadas essas possibilidades, uma nova época revolucionária se instalou na humanidade, tendo como foco básico fundamental o lucro decorrente das relações mercantis.

As possibilidades do mercado, combinando-se com escrúpulos ou impedimentos relativos à escravidão de seu próprio povo ou de povos indígenas coloniais, foram muitas vezes responsáveis pela adoção sistemática da escravidão negra como a forma preferida de trabalho. (GENOVESE, 1983, p.15).

Karl Marx (1818-1883) não somente percebeu o expansionismo do sistema capitalista, como ainda se insurgiu contra a sua avassaladora onda de mundialização destrutiva. Desse modo, negou qualquer interpretação que venha acusá-lo de eurocentrista ou mesmo de racista1. Vejamos as palavras do próprio Marx:

O descobrimento de jazidas de ouro e prata na América, a cruzada de extermínio, a escravização e sepultamento nas minas da população aborígene, o começo da conquista e o saqueio dos índios orientais, a conversão do continente africano em zona de caça de escravos negros, são todos fatos que assinalam os albores da era da produção capitalista. Esses processos idílicos representam outros tantos fatores fundamentais no movimento de acumulação originária. Atrás deles, pisando em suas pegadas vem a guerra comercial das nações européias, cujo cenário foi o planeta inteiro. (MARX apud BOSI, 1992, p. 20).

A marca exuberante do expansionismo europeu foi a violência institucionalizada nas guerras de conquista e também o aprisionamento de escravos, os quais se opunham de todas as maneiras a esta espécie de sociabilidade. Desse modo, “onde houve escravidão houve resistência”.(REIS, 1998, p. 9).

No entanto, o agente civilizador desenvolveu diversas maneiras de apaziguar, pelo menos momentaneamente, os enfrentamentos praticados pelos escravos. E o fez inicialmente pela ideologia religiosa, que por ora deixamos de lado, por não ser objeto desse estudo e, sobretudo, através de práticas racistas. O racismo se constituiu em mote útil e necessário ao funcionamento “normal” do sistema, visto que foi através dele que se fez o apaziguamento de consciências, como também condicionou muitas vozes ao silêncio.

O racismo moderno constitui-se, enquanto forma de ideologia de dominação de uma classe sobre outra, dentro das relações de produção da vida material. […] O racismo é desta maneira, resultado de justificações e classificações ideológicas, com objetivo de subjugação e exploração da força de trabalho. Estas foram fundamentais para a solidificação do sistema capitalista no mundo. (ROCHA, 2006, p. 7).

O racismo está profundamente conectado ao sistema capitalista. Não somente afirma a escravidão como constituição social natural, mas tende a favorecer a opressão argumentando favoravelmente pela diversidade de raças, entendendo ser a “raça” negra inferior à branca. Com o avanço da ciência experimental, bem como da eugenia e da biologia, a inferioridade da “raça” africana foi elevada ao patamar de ciência.

O racismo tornou-se uma ideologia bem elaborada, sendo fruto da ciência europeia a serviço da dominação sobre a América, a Ásia e a África. E esta ideologia racista ganha força a partir da escravidão negra, adquirindo estatuto de teoria após a revolução industrial europeia. (SANT’ANA apud MUNANGA, 2008, p. 45).

O capitalismo expansionista condicionou as ações humanas aos interesses do mercado. O pensar, o agir e o sentir não somente se adaptaram à lógica do capital, mas viabilizaram a reprodução deste sistema, arrastando o homem e a natureza à vala comum da mercadoria. O signo do “encherem-se de riquezas em poucos dias” (DUSSEL,1977, p. 5) foi dinamizado, contrapondo-se de maneira natural à contínua pauperização de enormes contingentes humanos, os quais foram classificados de inferiores.

O racismo não surgiu de uma hora para outra. Ele é fruto de um longo processo de amadurecimento, objetivando usar a mão-de-obra barata por meio da exploração dos povos colonizados. Exploração que gerava riqueza e poder, sem nenhum custo extra para o branco colonizador e opressor. (SANT’ANA apud MUNANGA,2008, p. 38).

O racismo é, portanto, a face grotesca do sistema capitalista. Apresenta-se camuflado nas relações sociais de classe, sendo perceptível apenas quando se verificam os números e os dados que apresentam a população afro ocupando os últimos lugares da escalada social.

[…] embora biologicamente falando não existam raças humanas, os preconceitos que temos incorporados continuam a ensinar-nos e avaliar a capacidade dos indivíduos e coletividades de acordo com a raça biológica na qual os classificamos. Na prática, sempre que associamos um comportamento a uma característica biológica de um indivíduo ou grupo estamos raciocinando de forma racista. Em outras palavras, mesmo desmentidos pelas ciências os preconceitos racistas permanecem vivos nas mentes de muitos indivíduos e coletividades. (PRAXEDES apud ROCHA, 2006,p. 6).

É também o racismo um subproduto da sociedade de classes. E o seu fenecimento decorre do fenecimento do modelo social que impôs a sociabilidade classista como padrão, ou seja, o fim das classes porá fim também, como fator humanizante óbvio, o fim do racismo.

O racismo surgiu e cresceu com o capitalismo e ajuda a sustentá-lo. A sua abolição depende, portanto, de uma revolução socialista que rompa as estruturas materiais às quais estão vinculadas […]. Diz-se que o racismo é tão antigo quanto a natureza humana, e em conseqüência não poderia ser eliminado. Pelo contrário, o racismo tal como o conhecemos hoje desenvolveu-se nos séculos 17 e 18 para justificar o uso sistemático do trabalho escravo africano nas grandes plantações do ‘Novo Mundo’ que foram fundamentais para o estabelecimento do capitalismo enquanto sistema mundial. O racismo, portanto, formou-se como parte do processo através do qual o capitalismo tornou-se o sistema econômico e social dominante. As suas transformações posteriores estão ligadas às transformações do capitalismo. (CALLINICOS, 1993, p. 8).

O desenvolvimento do modo de produção capitalista fez com que a Inglaterra acolhesse em suas manufaturas matéria-prima vinda de suas colônias. Inicialmente foram levados ingleses pobres para trabalhar nas colônias americanas sob o regime de semi-escravidão, mas contratados por um período de até cinco anos.

Entretanto, os produtores se ressentiam, porque não podiam dispor dessa força de trabalho “livremente”. Daí porque mais adequado foi trazer negros africanos para suprir as necessidades de cultivo nas plantagens. Como justificativa dessa escolha elaborou-se a tese da inferioridade racial da pessoa de cor.

O racismo desenvolveu-se no contexto criado pelo desenvolvimento da escravidão sistêmica no ‘Novo Mundo’: a idéia de que os africanos eram (nas palavras de Hume) naturalmente inferiores aos brancos justificou o ato de negar-lhes os direitos dos ingleses e escravizá-los. (CALLINICOS, 1993, p. 16).

Para Marx a escravidão era uma anomalia, tendo em vista que o capitalismo exigia trabalhador livre paravender sua força de trabalho a quem quisesse comprá-la. Assim, o racismo se fortaleceu como ideologia justificadora dessa anomalia. E sobreviveu após a abolição chegando aos nossos dias. “[…] E, recebeu, aliás, uma elaboração teórica posterior durante o século 19 na forma da pseudo-científica biologia das raças” (idem, p. 19). O autor citado enfatiza com todas as letras: “as condições materiais do capitalismo moderno continuam a dar vida ao racismo” (op. cit., p. 20).

Marx esclarece que as práticas de racismo tendem a dividir a classe trabalhadora, opondo trabalhadores uns contra os outros. É o que fica claro na leitura da carta de Marx a Meyer eVogt, de 9 de abril de 1870, por ocasião das lutas dos irlandeses por autodeterminação.

Cada centro industrial e comercial na Inglaterra possui uma classe trabalhadora dividida em dois campos hostis, proletários ingleses e proletários irlandeses. O trabalhador inglês comum odeia o trabalhador irlandês como um competidor que rebaixa seu padrão de vida. Em relação ao trabalhador irlandês ele se sente um membro da nação dominante e, assim torna-se num instrumento dos aristocratas e capitalistas de seu país contra a Irlanda, fortalecendo a sua dominação sobre ele próprio. Ele aprecia os preconceitos sociais, religiosos e nacionais contra os trabalhadores irlandeses. A sua atitude é muito parecida a dos brancos pobres em relação aos negros nos antigos estados escravistas dos EUA. O irlandês lhe paga com juros na mesma moeda. Ele vê no trabalhador inglês ao mesmo tempo o cúmplice e o instrumento estúpido do domínio inglês na Irlanda. (MARX apudCALLINICOS, 1993, p. 22).

A divisão interna da classe trabalhadora só vem a dificultar o processo de libertação dos próprios trabalhadores. E o racismo parece ser a prática mais hedionda de divisão interna da classe oprimida. “Os esforços da classe capitalista para estabelecer e manter divisões raciais entre os trabalhadores (‘é intensificado pela imprensa, o púlpito, os jornais cômicos, em resumo por todos os meios à disposição das classes dominantes’)”. (idem, p. 25).

Enfim, a proposição fundamental que decorre da exposição feita até aqui é que a luta contra o racismo é carregada de significado, por isso deve continuar. Entretanto, o racismo fica bem mais esclarecido se entendido como subproduto da sociedade de classes, sendo, desse modo, uma forma peculiar de dominação em que a burguesia alimenta a divisão da classe trabalhadora dificultando a sua união contra o sistema que oprime a todos.

Marx não perdeu de vista esta situação, pois tratou dela por diversas vezes, numa perspectiva de totalidade, pois tinha como objetivo a superação radical do sistema capitalista e com ele todas as suas mazelas. Propôs finalmente para a humanidade algo possível e viável, qual seja a emancipação humana.

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1 Buonicore em artigo publicado pela Revista Espaço Acadêmico nº 53, de outubro de 2005, descreve alguns escritos de Marx e de Engels que foram interpretados como racistas e eurocêntricos. Conforme Buonicore, Marx e Engels, ao fazerem referência aos povos colonizados, chamaram-nos de povos sem história. No entanto, Buonicore, no mesmo artigo, faz a defesa de Marx e de Engels, ao comentar que os dois pensadores criticam a invasão da Índia pelos ingleses e defendem os irlandeses do domínio “ignóbil” da Inglaterra. Afirma que Engels, em artigo publicado pela Enciclopédia Americana, denuncia as monstruosidades praticadas pelos franceses contra os argelinos. No mais se percebe que “os saberes hegemônicos do Ocidente foram submetidos a uma ampla crítica nas últimas décadas denunciando seu caráter eurocêntrico e colonial” (http://www.espacoacademico.com.br/053/53buonicore.htm).

Referências

BOSI, Alfredo. Dialética da escravidão. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1992.

CALLINICOS, Alex. Capitalismo e racismo. São Paulo: Zahar, 2000.

DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação latino-americana. V. I. São Paulo: Loyola, 1977.

GENOVESE, Eugene. Da rebelião à revolução. São Paulo: Global, 1983.

MATTOS, Regiane Augusto de. História ecultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto,2007.

MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília, SECAD, 2008.

REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio. São Paulo: Companhiadas Letras, 1996.

ROCHA, Luiz Carlos Paixão da. Políticas afirmativas e educação: a lei nº 10.639/2003 no contexto das políticas educacionais no Brasil Contemporâneo. Universidade Federal doParaná, Curitiba, 2006.

* JOSÉ BEZERRA DA SILVA é mestrando em educação/CEDU/UFAL, licenciado em filosofia, graduado em direito e com especialização em educação ambiental.

** MARIA EDNA BERTOLDO é Doutora em educação e professora do Departamento de Educação – CEDU/UFAL. Líder do grupo de pesquisa trabalho, educação e ontologia marxiana.

http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/10666/5975

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