Quando o bem comum se torna uma mercadoria

[Unisinos] – “A razão da aversão à privatização não reside em um posicionamento apriorístico contra o privado. Em linha teórica, nada proibiria uma correta gestão da água por parte de uma empresa privada que assumisse seu serviço. O problema é que uma correta gestão de um bem comum só pode ser realizada por um ator fortemente radicado no território, que se coloque como objetivo o desenvolvimento daquele território, a sua proteção e a de seus habitantes e de seus direitos.”

Publicamos aqui o artigo de Carlo Petrini, presidente e fundador do movimento Slow Food, para o jornal La Repubblica, 06-05-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Eis o texto.

Cerca de 250 mil cidadãos assinaram o referendo “L’acqua non si vende” [A água não se vende], que, sem cair em tecnicismos, tem o objetivo de frear a privatização da água pública. Eu estou com eles, e assino. Não só isso: sou a favor dos protestos que estão chegando de mais partes para tornar efetiva a possibilidade das administrações locais de declarar o serviço hídrico “isento de interesse econômico”, excluindo-o assim do pacote de serviços a serem “liberalizados”, segundo o decreto Ronchi.

Esse decreto, de fato, permite a privatização dos aquedutos e dos vários serviços hídricos relacionados, prévia concorrência pública.  Fazendo isso, será permitido que poderosos grupos de interesse econômico tratem a água como se fosse uma mercadoria qualquer e, portanto, nos façam pagar não apenas por um serviço, como ocorre hoje em situações de gestão pública, mas pelo próprio bem, como se ele pertencesse a quem o “vende”. O privado tem como objetivo fazer lucro. Os caminhos são dois: aumentar os preços ou economizar nos investimentos.

Sou contra a privatização da água não porque sou contra a privatização “tout court”, mas porque o modo de proceder desse decreto está entregando as redes hídricas nas mãos de capitalistas, sem lhes impôr nenhuma regra que os obrigue a proteger a essência daquela que é um bem comum, a água: uma coisa de todos. Uma coisa que, entre outras, começa a escassear em nível planetário e que, portanto, atrai em nível econômico. Mas ela não deve ser simplesmente comprada e vendida. Deve ser gerida para que todos a tenham, para que não haja desperdício, para que não seja poluída ou usada para fins industriais e recolocada em circulação sem ser depurada, para que ainda exista por muito tempo.

Porém, gostaria de esclarecer uma coisa: a razão da aversão à privatização não reside em um posicionamento apriorístico contra o privado. Em linha teórica, nada proibiria uma correta gestão da água por parte de uma empresa privada que assumisse seu serviço. O problema é que uma correta gestão de um bem comum só pode ser realizada por um ator fortemente radicado no território, que se coloque como objetivo o desenvolvimento daquele território, a sua proteção e a de seus habitantes e de seus direitos. E é muito difícil que isso ocorra confiando a gestão da água, em vez de a entidades locais, a sociedades de capital ou a bancos.

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A água, porém, é apenas o ponto de partida para fazer uma reflexão mais ampla. Porque aqui estamos perdendo de vista uma coisa intocável: os bens comuns não devem fazer parte das lógicas de mercado. O que não significa que haja uma fórmula exata para a sua gestão. Quero dizer que não é obrigatório que o Estado, por força, deva se encarregar dela. Ele deve, ao invés, poder começar uma partilha real: que seja propriedade coletiva ou gestão privada, que seja totalmente público ou que seja uma mistura das duas coisas não tem importância, porque há fórmulas alternativas, velhas e novas.

Estamos vendendo e desvendendo tudo, dando em gestão a quem tem como único fim a monopolização, enquanto certas coisas não deveriam ser tocadas. Lembro-me de um grande do Barolo [tipo de vinho], o inesquecível Bartolo Mascarello, que se jogou contra a cúria de Alba, réu, segundo ele, por ter vendido vinhas históricas a empresas privadas, vinhas que eram de “benefício coletivo”, entre os melhores vinhedos de Langa.

Esse é só um exemplo dos tantos recursos comuns que a nossa Itália está perdendo e que tinham resistido também aos impulsos privatizantes típicos do século XVIII e XIX. “Vizinhanças”, “participações”, “comunalhas”, “ademprivi”, “sociedade dos originários”, bens comunais: bosques, terrenos agrícolas, praias e costas, pastagens, terrenos de uso cívico que, durante séculos, estavam à disposição de todos, dos quais a comunidade se encarregava para mantê-los e explorá-los com senso do limite e garantias para o futuro. Propriedades coletivas ou o conjunto de recursos naturais geridos pela Comuna, pela paróquia, por grupos de famílias, redes de vizinhanças e associações, segundo regras complexas que remontam, em muitos casos, até a Idade Média.

São aqueles que os ingleses chamam de “commons”. Existem ainda exemplos na Emilia Romana, com as participações agrárias que têm origem no tempo das primeiras formações comunais e ainda hoje são transmitidas por descendência direta de pai a filho: entidades privadas de direito público que têm um regulamento para a entrega (rotativa) das terras para o direito de uso e de cultivo. Ou pensemos nas regras que as comunidades sempre se deram para a colheita de verduras, frutas do bosque, fungos e lenha nos terrenos comuns. Por que devemos reduzir tudo a uma dicotomia entre público e privado, que é tão entediante quanto a dicotomia entre direita e esquerda?

Olho para o passado e vejo soluções de grande modernidade, que poderiam nos ajudar na gestão da água, no restauro das pastagens, na manutenção dos bosques e dos potreiros (que estão se tornando sempre mais campo de exploração em prejuízo dos “malgari” [pastores da “malga”, pastagens típicas dos alpes orientais italianos], os quais a cada ano veem o aumento arbitrário dos alugueis pelo preço de venda onde muitas vezes andam sozinhos, porque são os únicos que ficaram para fazer esse trabalho).

Olho para o passado e vejo geniais soluções para a exploração local das biomassas (pasto e lenha a ser jogado fora); lugares onde podem ser construídas hortas coletivas geridas talvez por aposentados em benefício da comunidade; uma paisagem defendida e valorizada; redes hídricas locais, vanguardistas e eficientes, que garantam água para todos, a preços que tendam a zero, senão totalmente grátis.

É preciso dar de novo dignidade jurídica a essas antigas formas de gestão, porque realizam o que nem o público puro, nem o privado puro são capazes de garantir: os bens aos quais todos têm direito, os recursos das nossas terras, mares e águas. Coloco entre eles também a comida, porque a mesma dignidade deve ser reconhecida a formas de participação em questão de alimento: o que são os grupos de compras solidárias, as hortas coletivas urbanas ou o modelo da “community supported agriculture”, nascido nos EUA, em que se prevê a compra antecipada de toda a produção de um agricultor por parte de um grupo de cidadãos, aos quais depois os produtos são entregues em casa regularmente, perfeitamente maduros e na estação?

São coisas nem públicas nem privadas, nem “leghiste” [referente à Liga Norte] nem comunistas, nem passadistas nem utópicas. Modelos que funcionam, coletivos e inovadores, que vão além dos esquemas fixos que só têm quase estes objetivos: fazer alguém enriquecer, escassear os recursos de todos, perder a nossa liberdade, o sentido de fazer parte de uma comunidade e de ter poder sobre as nossas próprias vidas, deixando-nos a sós, pagando contas sempre mais salgadas.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=32153

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