Histórias de preconceito e superação são contadas por pesquisador
Fábio Vasconcellos
RIO – O telefone toca num dos departamentos da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio. Do outro lado da linha, o representante de um importante escritório de advocacia pede a indicação do melhor aluno de direito. Semanas depois, o escolhido vai ao escritório. Após uma breve conversa com a secretária, ele entrega o currículo e se dirige ao elevador. Antes de deixar o prédio, retorna e pede novamente o documento para anotar o número do celular. No alto da folha, percebe que a funcionária havia escrito a palavra “mulato”. Imediatamente, ele risca o nome e escreve ao lado: “negro”. Em seguida, anota o telefone para contato e vai embora. Apesar do seu coeficiente de rendimento ser um dos mais altos da turma, não foi chamado para trabalhar no tal escritório.
O caso acima ocorreu em 2000 e é de conhecimento de professores da PUC, mas até hoje o nome do escritório e do aluno são mantidos em sigilo. Essa e outras histórias de estudantes negros de famílias pobres que conseguiram se formar numa das mais prestigiadas universidades da cidade, graças a bolsas de estudo fornecidas pela instituição, antes mesmo da adoção das cotas nas universidades em 2003, estão no livro “Afrocidadanização: ações afirmativas e trajetórias de vida no Rio”, de Reinaldo da Silva Guimarães. Atualmente, cerca de 51% dos estudantes da PUC (6.730) têm bolsa, boa parte relativa a ações afirmativas.
Com base na trajetória de 14 jovens que ingressaram na faculdade, muitos deles oriundos do Pré-Vestibular Para Negros Carentes (PVNC), programa desenvolvido em áreas pobres da Baixada, Guimarães revela que a formação universitária alterou positivamente a situação econômica e social desses ex-estudantes e suas famílias. Mas para chegar à nova realidade, eles tiveram que enfrentar dificuldades, entre elas, a falta de recursos para transporte e alimentação, além do preconceito racial que ainda persiste, embora, segundo o autor, de maneira velada:
— Na pesquisa, percebemos que os negros tiveram as suas vidas afetadas positivamente, mas no mercado de emprego as mudanças são mais lentas. Encontrei negros que conseguiram entrar no mercado de trabalho, mas depois a ascensão profissional passa a ser muito mais lenta que a de um profissional branco.
Sem dinheiro para chegar à universidade
Moradora de Caxias, Lady Christina de Almeida, de 37 anos, fez parte de uma das primeiras turmas beneficiadas pelo programa, no início dos anos 90. A euforia de ter sido aprovada para o curso de ciências sociais foi logo seguida por um choque de realidade: apesar da bolsa, ela não tinha dinheiro para frequentar a universidade. Lady é hoje professora da rede estadual e conta que a dificuldade foi superada com a ajuda dos funcionários da própria PUC. Eles organizavam um café da manhã comunitário e os negros, que não tinham condições de comprar nas lanchonetes da universidade, passaram a ser convidados. Hoje, a PUC mantém um programa de ajuda financeira para os alunos que não têm condições de pagar o transporte e a alimentação.
— Quando cheguei na fila da PUC para fazer a matrícula, levei um susto. As pessoas falavam de coisas e assuntos que não eram do meu universo. Marcas de carros, viagens, roupas. Já na fila pensava: meu Deus, isso aqui não é lugar para mim — conta Lady, que continuou os estudos, fez o mestrado e agora se prepara para o doutorado.
As dificuldades também bateram à porta da jornalista e apresentadora do telejornal da TV Brasil Luciana Barreto, de 36 anos. Diariamente, ela percorre os cerca de 40 quilômetros que separam o Centro do Rio de Nova Iguaçu, onde mora:
— Quando esse grupo de negros e pobres começou a entrar na universidade, começaram a escrever, em vários locais, expressões como “preto tem que morrer”. A experiência da PUC permitiu que muitos negros se formassem e entrassem no mercado, mas ainda há muito racismo na sociedade.
Professora de história diz que negros não têm como investir nos estudos
Miracema Alves dos Santos, de 47 anos, carrega um currículo invejável, apesar de não ter passado pelo grupo dos estudantes do Pré-Vestibular Para Negros Carentes (PVNC). Quando conseguiu passar no vestibular, em 1994, para o curso de direito da PUC, Miracema já havia se formado em história na extinta Universidade de Humanidades Pedro II (Fahupe), graças ao esforço da mãe e de seu emprego de auxiliar de escritório. A renda era praticamente toda usada para pagar a faculdade:
— Entrei na turma de direito e vi que só tinha eu de negra na sala. Uma vez, um professor me perguntou como eu tinha adivinhado uma questão que estava certa na prova. Ou seja, uma negra pobre não podia acertar a questão, mas adivinhar. Para mim soou como preconceito de cor, racismo.
Mas, durante o curso da PUC, Miracema foi demitida e teve que recorrer à bolsa da universidade para concluir os estudos. Depois da graduação, tentou o mestrado em direito também na PUC, mas foi reprovada na entrevista. Por falta de recursos, não conseguiu fazer o curso preparatório para a prova do Ministério Público. Nascida em São João de Meriti, hoje ela vive com o marido e o filho em Caxias. Para Miracema, o curso universitário ajudou a mudar a sua realidade, mas muito abaixo do esperado:
— Com o curso de direito, achei que fosse melhorar a minha renda. Nada disso. Não consegui continuar os estudos para fazer um concurso porque tive que trabalhar para pagar as contas. Hoje, vivo da renda das duas matrículas que tenho como professora de história do estado e do município de Caxias. Algumas vezes, ainda consigo advogar no campo do direito do consumidor, mas mesmo assim com ganhos muito aquém do que esperava. A história do negro do Brasil é assim: como temos que trabalhar muito, porque somos de famílias pobres, não podemos investir nos estudos como qualquer outro.
Reportagem publicada no vespertino digital O GLOBO A MAIS
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Compartilhada por Antonio Carlos de Souza Lima.
Passei e passo por situação muito semelhante. Minha profissão é outra, na área de geociências, mas sempre tive dificuldades em minha carreira em função da cor da pele, sofrendo perseguições racistas e assédio moral pesado. Por isso, penso em desistir da profissão em que me formei e voltar para a zona rural. Não tem saída, enquanto existir racismo. Em empresas de mineração ele é explícito!