No Brasil vivemos em um estado de racismo estrutural. Já é comprovado que raça é um conceito biologicamente inadmissível, só existe raça humana e pronto. Mas socialmente, nos vemos e construímos nossa realidade diária em cima de concepções raciais. Portanto, raça é uma realidade sociológica. Não é uma questão de que eu ou você sejamos pessoalmente preconceituosos. Mas é só olhar para qualquer pesquisa que veremos como existe um processo de atração e exclusão de pessoas para estes ou aqueles espaços sociais, dependendo de sua cor. Não é à toa que não temos quase médicos negros, embora eles sejam a maioria nas filas dos postos de saúde; que quase não vemos jornalistas negros, mas estes são expostos diariamente em páginas policiais; que não temos quase professores negros, especialmente em posições com melhores salários, e vemos alunos negros apenas em escolas públicas enquanto, na universidade pública quase só encontramos brancos.
A situação dos indígenas não é diferente, quando eles ainda sofrem lutando pelo direito mínimo de ter suas terras e aldeias, mesmo isso lhes é surrupiado pelos brancos. Vamos parar com esta falácia de dizer que não aceitamos cotas raciais na universidade, porque não queremos ser racistas: se vivemos no Brasil, se fomos criados nesta cultura, se construímos nossas vidas dentro deste conjunto de relações onde a raça é um elemento determinante, somos todos racistas! Não fujamos da realidade. Não usemos a falsa desculpa de que não queremos criar divisões entre raças no Brasil. Nossa sociedade poderia ser mais dividida racialmente do que já é hoje?
O estudo de Marcelo Paixão intitulado “Racismo, pobreza e violência”, compara o IDH dos brancos e dos negros dentro do Brasil. O IDH tenta medir a qualidade de vida das populações, combinando os três fatores que, por abranger, cada qual, uma imensa variedade de outros, seriam os essenciais para a medição: renda por habitante, escolaridade e expectativa de vida. Na última versão do IDH, de 2002, o Brasil ocupa o 73º lugar entre 173 países avaliados, mesmo possuindo todas as riquezas nacionais e sendo o 11º país mais desenvolvido economicamente no mundo. Porém, entre 1992 e 2001, enquanto em geral o número de pobres ficou 5 milhões menor, o dos pretos e pardos ficou 500 mil maior. [Consideram-se brancos 53,7% dos brasileiros; pretos ou pardos, 44,7%, que chamaremos, hora em diante de negros]. O estudo mostra que Brasil dos brancos seria, na média o 44º do mundo em matéria de desenvolvimento humano, ao passo que o Brasil dos negros estaria no 104º lugar!!!
Nada disso é novidade, porém, para quem aceita viver com os olhos minimamente abertos. Temos que reconhecer que vivemos num sistema estruturalmente racista, que se reproduz em cima de mecanismos constantes de exclusão e exploração dos negros e de privilégios naturalizados aos brancos. Em um sistema racista, pessoas brancas se beneficiam do racismo, mesmo que não tenham intenções de serem racistas. Nós brancos não precisamos enxergar o racismo estrutural porque não sofremos diariamente diversos processos de exclusão e tratamento negativamente diferencial por causa de nossa raça. Nossa raça (e seus privilégios) são tornados invisíveis dia-a-dia. Este sistema de privilégios invisíveis a nós brancos é que nos põe em vantagens a todo instante, por toda nossa vida, em todas as situações, e que destroça qualquer tentativa de pensarmos que estamos onde estamos apenas por méritos pessoais. Que mérito puro pode ter qualquer branco de estar no lugar confortável em que se encontra hoje, mesmo que tenha saído da pobreza, dentro de um sistema que lhe privilegiou apenas por ser branco, ao mesmo tempo em que prejudicou outros tantos apenas por serem negros?
Vamos apresentar uma breve listinha de circunstâncias em nossas vidas que expõem nossos privilégios de brancos e que, embora não percebêssemos, embora os víssemos apenas como relações naturais para nós, por sermos pessoas normais e “de bem”, foram decisivas para nos trazer onde estamos (e por não serem vivenciados também por negros e indígenas, seu resultado é fazer com que seja tão desproporcional o número destas populações dentro da UFRGS, por exemplo):
1) Sempre pude estar seguro de que a cor da minha pele não faria as pessoas me tratarem diferentemente na escola, no ônibus, nas lojas, etc;
2) Estou seguro de que a cor da pele dos meus pais nunca os prejudicou em termos das busca ou da manutenção de um emprego;
3) Estou seguro de que a cor da pele dos meus pais nunca fez com que seu salário fosse mais baixo que o de outra pessoa cumprindo sua mesma função;
4) Posso ligar a televisão e ver pessoas de minha raça em grande número e muitas em posições sociais confortáveis e que me dão perspectivas para o futuro;
5) Na escola, aprendi diversas coisas inventadas, descobertas, grandes heróis e grandes obras feitas por pessoas da minha raça;
6) A maior parte do tempo, na escola, estudei sobre a história dos meus antepassados e, por saber de onde eu vim, tenho mais segurança de quem sou e pra onde posso ir;
7) Nunca precisei ouvir que no meu estado não existiam pessoas da minha raça;
8) Nunca tive medo de ser abordado por um policial motivado especialmente pela cor da minha pele;
9) Já fiz coisas erradas e mesmo ilegais por necessidade, e nunca tive medo que minha raça fosse um elemento que reforçasse minha possível condenação;
10) Posso ir numa livraria e perder a conta de quantos escritores de minha raça posso encontrar, retratando minha realidade, assim como em qualquer loja e encontrar diversos produtos que respeitam minha cultura;
11) Nunca sofri com brincadeiras ofensivas por causa de minha raça;
12) Meus pais nunca precisaram me atender para aliviar meu sofrimento por este tipo de “brincadeira”;
13) Sempre tive professores da minha raça;
14) Nunca me senti minoria em termos da minha raça, em nenhuma situação;
15) Todas as pessoas bem sucedidas que eu conheci até hoje eram da mesma raça que eu;
16) Posso falar com a boca cheia e ficar tranqüilo de que ninguém relacionará isso com minha raça;
17) Posso fazer o que eu quiser, errar o quanto quiser, falar o que eu quiser, sem que ninguém ligue isso a minha raça;
18) Nunca, em alguma conversa em grupo, fui forçado a falar em nome de minha raça, carregando nas costas o peso de representar 45% da população brasileira;
19) Sempre pude abrir revistas e jornais, desde minha infância, e estar seguro de ver muitas pessoas parecidas comigo;
20) Sempre estive seguro de que a cor da minha pele não seria um elemento prejudicial a mim em nenhuma entrevista para emprego ou estágio;
21) Se eu declarar que “o que está em jogo é uma questão racial” não serei acusado de estar tentando defender meu interesse pessoal;
22) Se eu precisar de algum tratamento medico tenho convicção de que a cor da minha pele não fará com que meu tratamento sofra dificuldades;
23) Posso fazer minhas atividades seguro de que não experienciarei sentimentos de rejeição a minha raça.
Esta realidade destroça meu mito pessoal de meritocracia. Minha vida não foi o que eu sozinho fiz dela. Muitas portas me foram abertas baseadas na minha raça, assim como fechadas a outras pessoas. A opção de falar ou não em privilégios dos brancos já é um privilegio de brancos. Se o racismo, e os privilégios dos brancos são estruturais, as ações contra o racismo devem ser também estruturais. Racismo não é preconceito: racismo é preconceito mais poder. Se não forçarmos mudanças nas relações e posições de poder em nossa sociedade, estaremos reproduzindo o racismo que recebemos. E agora chegou a hora de a universidade dizer publicamente: vai ou não vai “cortar na própria pele” o racismo que até hoje ajudou a reproduzir, estabelecendo imediatamente Cotas no seu próximo vestibular? Se mantivermos o vestibular “cego às desigualdades raciais” estaremos, na verdade, mantendo nossos olhos fechados para as desigualdades raciais que nós mesmos ajudamos a reproduzir sociedade afora.
Nós, brancos da universidade que assinamos esta carta já nos posicionamos: exigimos cortar em nossa própria pele os privilégios que até hoje nos sustentaram. Cotas na UFRGS já!”
http://www.geledes.org.br/cotas-no-stf/manifesto-dos-brancos-da-universidade-federal-do-rio-grande-do-sul.html