Por Cecília Olliveira
“Eu fui escorraçada da escola onde eu dava aulas, em Nova Iguaçu”, relatou Patrícia Roif, educadora da rede municipal. O episódio ocorreu quando ela, candomblecista desde o nascimento, solicitou férias prêmio para passar pelo ritual de iniciação, quando teria de andar de branco e raspar a cabeça. “Eu sempre escondia minha religião, até que chegou este momento e eu fui conversar com a direção da escola. Eu achava que eu não estava preparada para me assumir, mas é a escola que não está preparada pra isso. A diretora tomou um susto muito grande e disse que independentemente de eu tirar férias ou não, eu não ficaria mais na escola”.
Passaram-se três meses desde o renascimento (termo usado para se referir aos rituais iniciáticos da religião) de Patrícia, e sua preocupação maior era acerca do que a esperava na volta ao trabalho. “Fui iniciada e não sabia se eu poderia voltar a lecionar naquela escola. Como eu ficaria depois? Como eu seria tratada? Não me queriam ali. Ela [a diretora] não queria este problema. Mas sou filha de Dandalunda e ela me iluminou, abriu meu caminho e quando fui me reapresentar à Secretaria de Educação, havia vaga aberta em outra escola e eu saí de lá.”
As liberdades de expressão e de culto são asseguradas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal, portanto, professar fé não deveria ser barreira. Mas é. Tanto que o Estado Brasileiro instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (21 de janeiro), desde o ano de 2007, reconhecendo oficialmente o problema.
Na Educação, o debate sobre a intolerância, tem como principal fruto a Lei 10.639. Editada em 2003, ela estabeleceu diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, além de outras providências. Ou seja, a situação nas escolas é um ponto chave, visto que os educadores são responsáveis pela formação, ou não, de cidadãos que respeitam as diferenças.
“Depois do que passei me dediquei ao tema. Fiz o curso ‘A cor da cultura’ (projeto educativo apoiado na Lei 10.639/03, voltado para professores) por causa da minha religião, porque eu a aceitava. Muitos professores não aceitavam fazer o curso porque era ‘coisa de macumba’. A lei não tem nada a ver com isso! Primeiro porque Macumba é um instrumento musical! Enfim, foi muito complicado. As pessoas tinham medo de encostar em mim, não bebiam no mesmo copo, como se eu fosse amaldiçoada”, diz Patrícia, que observa: “Se você perguntar na escola se existe preconceito, 99% das pessoas vai dizer que sim, mas ninguém vai dizer que é preconceituoso. É sofrido por que você tem fé naquilo.”
Se a intolerância e o preconceito foram duros para Patrícia, adulta, como é com crianças? “Muitas preferiam se dizer católicas. Só achei uma criança que revelava sua fé. No período de recolhimento para o santo, quando precisam raspar a cabeça, algumas chegam a dizer que estão com leucemia ou que pegaram piolho”. Explica a autora do livro “Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com crianças de candomblé”, Stela Guedes, lançado na última semana.
Stela era repórter do jornal fluminense O Dia e, ao cobrir uma pauta sobre terreiros na Baixada Fluminense, despertou para o tema ao ver crianças desempenhando papeis importantes na religião. “A pesquisa mostrou que as crianças tinham grande conhecimento do yourubá, com os toques de atabaque, com os mitos, mas também mostrou queao mesmo tempo que elas sentem orgulho de sua religião e se sentem discriminadas na escola. Então as crianças desenvolvem táticas pra diminuir o preconceito. São estratégias de sofrimento. Ninguém quer esconder aquilo que ama, aquilo que é, aquilo que acredita”, reitera a pesquisadora, que explica que hoje, graças a ações dos terreiros e de movimentos negros, várias pessoas passaram a assumir o credo, mas, que, infelizmente, a escola não tem ajudado no processo.
De acordo com Guedes, os entrevistados, à época, crianças com idades entre dois e quatro anos, hoje adultas, tem filhos que passam pelo mesmo preconceito. “Eles associam a discriminação da religião com a racial. Mesmo os brancos sofrem por professar uma religião de negros. A implantação da educação religiosa nas escolas só piorou a situação”, revela.
Discriminação Racial x Intolerância Religiosa
“Conheço professor de língua portuguesa que evita usar a palavra moleque porque sua origem é africana. É uma palavra Bantu e que o professor diz que é do demônio!”, conta Patrícia, que hoje, além de professora da rede municipal, faz parte da equipe de formação de professores da Secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro. Ela também confirma que a intolerância religiosa se liga diretamente à discriminação racial. “As crianças na escola não se enxergam como negras. Não existe boneca negra na escola. Como as crianças da educação infantil vão se enxergar? Quando você abre um livro didático você vê que tudo o que é relativo ao negro é ruim, é pejorativo. Ninguém quer ser negro. Aí quando o aluno vê a Camila Pitanga dizer que é negra, dizem que ela é morena. Inventa uma cor pra ela. Porque quando você é negro você é da macumba, você não consegue emprego, você não tem ‘boa aparência’”.
As questões se entrelaçam. A intolerância religiosa deriva do racismo. “Na pesquisa eu pude ver que as crianças associam a discriminação da religião com a discriminação racial. Elas sabem que são discriminadas e elas dizem que são discriminadas pela religião que escolheram e pela cor, pela raça. Mesmo as crianças brancas, os adolescentes brancos, os adultos brancos dizem que são discriminados porque professam uma religião de negros”. De acordo com Stela, os filhos e filhas das crianças que entrevistou há 20 anos passam pelo mesmo preconceito. “É uma discriminação que vem sendo reforçada de geração em geração”.
http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/noticias/mostraNoticia.php?id_content=1177
Muito interessante a reportagem .Se quiserem a minha contribuição é só acessar o meu e-mail.Acredito ter muita coisa para repassar.Um abraço.