Lunaé Parracho, Especial para Terra Magazine
Os moradores da comunidade quilombola de Rio dos Macacos, localizada em Salvador próxima à Base Naval de Aratu – onde o ex-presidente Lula costumava passar suas férias e a atual presidente Dilma Rousseff passou o Réveillon – denunciam atos de violência praticados por militares da Marinha do Brasil e temem ser despejados a qualquer momento.
O acesso ao local é controlado pela Marinha, através da guarita da vila militar da Base Naval e os moradores afirmam que, frequentemente, são impedidos de entrar em suas próprias terras. Jornalistas e advogados também têm acesso restrito.
Cerca de 50 famílias de remanescentes de escravos vivem na área e afirmam que seus primeiros ancestrais chegaram ali há mais de 200 anos. A Marinha, que instalou uma condomínio de oficiais no início da década de 1970, reivindica a desocupação, alegando que trata-se de uma “área de interesse estratégico para a defesa nacional”.
Em nota enviada a Terra Magazine, a Marinha afirma não reconhecer o direito de ocupação dos quilombolas e declara ter “necessidades de implantação de projetos de ampliação e adaptação na área do Comando do 2°Distrito Naval, dentre os quais, cabe destacar o projeto de construção de uma futura área de adestramento do Grupamento de Fuzileiros Navais de Salvador (GptFNSa), que, em breve, estará se transferindo das suas atuais instalações, nas imediações do porto de Salvador, para o complexo da Base Naval de Aratu”. A instituição militar entende que “as invasões representam perigo de degradação do meio ambiente e de poluição hídrica, uma vez que ali existem nascentes que abastecem a Barragem dos Macacos”. [grifo deste Blog]
Em 4 de Novembro de 2010, uma decisão da 10ª Vara da Justiça Federal, a respeito de uma ação reivindicatória proposta pela Procuradoria da União, determinou, em caráter liminar, a desocupação do quilombo. O cumprimento da retirada dos quilombolas, no entanto, vem sendo adiado na Justiça. O último prazo venceu no dia 4 de março. Antes disso, em fevereiro, a Procuradoria Regional da União da 1ª Região peticionou nova postergação, que ainda não foi julgada.
Marinha desmente violência
A qualquer momento um juiz pode determinar a retirada dos quilombolas. Na madrugada de domingo (04/03) – relatam moradores -, quando venceu a última prorrogação, uma quilombola que voltava para casa teria sido abordado por dois militares da Marinha, que efetuaram um disparo de arma de fogo em sua direção. Durante a manhã, segundo os quilombolas e militantes de movimentos sociais que se dirigiram até o local, a área foi cercada por policiais e militares da Marinha. As movimentações indicariam a iminência do despejo. Quem chegava ao quilombo naquela noite podia sentir a tensão dos moradores, alguns deles reunidos em torno da casa mais próxima da vila militar, em vigília.
“As denúncias de violência contra os ocupantes irregulares que foram encaminhadas à Marinha foram sempre objeto de instauração de inquéritos policiais militares, os quais não concluíram pela sua ocorrência”, diz a assessoria de comunicação do 2º Distrito Naval.
“É mais uma noite sem a gente dormir aqui, porque a gente não sabe se eles vão voltar a qualquer momento”, desabafa Rosimeire dos Santos Silva, 33, liderança da comunidade, nascida e criada no quilombo. “Eles vieram aqui no dia 27 (de Fevereiro) e disseram pra gente que conseguiram cinco meses para o Incra terminar o relatório e que nesse prazo ninguém vai tirar a gente daqui, mas não recebemos nenhum documento, nem um papel comprovando isso”, diz, referindo-se à reunião em que representantes da secretaria-geral da Presidência da República garantiram aos quilombolas que não haverá desocupação em pelo menos cinco meses, período em que o Incra deve concluir um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação com o intuito de determinar há quanto tempo a terra é ocupada.
“Decisão judicial é desastrosa”, diz advogado
“A ação reivindicatória não comporta mais o quadro jurídico da questão, que ganhou novos contornos desde que esta comunidade foi reconhecida como uma comunidade quilombola certificada pela Fundação Cultural Palmares em 2011. E isso gera um conflito de interesses dentro da estrutura administrativa federal. O direito de propriedade aos quilombolas é constitucional. O Estado precisa apenas formalizar e conduzir o processo de regularização fundiária. A decisão judicial tomada há mais de dois anos se torna inóqua, sem sentido e desastrosa”, defende Pedro Diamantino, advogado da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais No Estado da Bahia (ATR) e professor de direito agrário da UNEB.
“O processo de abolição no Brasil não veio acompanhado de reforma agraria”, acrescenta o advogado. “Temos grupos de trabalhadores que ficaram, ao longo da história, à margem do direito formal à terra, mas que tiveram esse direito garantido pela Constituição de 1988. Só na Bahia são cerca de 500 quilombos e no Brasil são estimados cerca de 5 mil”.
Moradores relatam ameaças da Marinha
Os moradores denunciam que, desde 2010, houve um crescimento de atos de violência cometidos por militares da Marinha, incluindo um sargento e um tenente, conhecido pelos quilombolas como ‘capitão do mato’.
“Teve um dia que tinha três deles ali armados num pé de acerola, à noite, e eles iam atacar minha casa, miraram a arma para minha irmã. A gente parou de ir trabalhar na roça porque quando vamos, a gente é espancado”, relata Rosimeire. Um outro morador barrado na guarita enquanto voltava para a casa teria sido preso, deixado nu e espancado. “Eles falaram que ele não podia entrar, ele disse que tinha direito de ir pra sua casa, discutiu com eles e foi levado por eles (militares) como marginal”, conta Rosimeire.
A quilombola também relata que teve uma arma apontada para si por um cabo fardado da Marinha. Quando criança, conta, teria levado golpes de coronhada de um tenente, que descarregou a arma num balde à sua frente.
“A violência foi quando expulsaram os primeiros moradores. Em 1971 foram tiradas 50 famílias pra constuir a Vila Militar. Foram jogadas fora, chegaram com trator, derrubando casa. Naquele tempo não tinha com quem conversar ou dar queixa. Desde lá a vida da gente é um inferno aqui. E eles ainda tratam a gente como se fosse época de ditadura mesmo”, conta Edgar Messias dos Santos, 69, cujos filhos não puderam frequentar escola quando crianças porque eram impedidos de ir e vir.
“Agora”, diz Rosimeire, “eles não deixam a gente plantar, pra gente desistir e ir embora. Mas a gente não vai desistir, a gente não vai embora. Eles não deixam a gente entrar com cimento ou bloco pra reformar a casa da gente. Aqui não tem energia, nem saneamento ou posto médico e a gente é obrigado a fazer um gato pra ter luz. Eles já disseram que a qualquer momento a gente vai sumir do mapa. Uma liderança de outro quilombo que nos ajudava foi ameaçada de morte há duas semanas, ligaram pra ela e disseram: “Saia do meio das pessoas do Quilombo dos Macacos porque senão você vai morrer”.
A respeito dos relatos de violência, o Ministério da Defesa limitou-se a encaminhar o assunto para a Marinha que, por meio de uma nota da Assesoria de Comunicação do 2º Distrito Naval, reafirmou a improcedência das denúncias.
Rosimeire acredita que não é suficiente a instalação de inquéritos militares da Marinha, e conta que sempre que foi registrar uma queixa no 2º DN, saiu de lá sem documento, sem comprovante nenhum.
Em 2010, Rosimeire se ajoelhou na frente do então presidente Lula, durante a inauguração de um viaduto em Salvador, pedindo ajuda para a comunidade. Desesperada, acredita na possibilidade de uma conversa com Dilma: “Eu assisti na televisão que ela foi agredida na ditadura da mesma maneira que a gente tá sendo. Ela é humana e tem coração, ia me ouvir. Ela é mulher, eu sou mulher. E eu ia pedir um pouco de piedade”.
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